quarta-feira, agosto 27, 2008

Charlemagne

O início da Liga Sagres foi tão bom, tão repleto de momentos memoráveis, que nem os mais entusiásticos entusiastas dos Jogos Olímpicos (cujo acompanhamento me parece requerer uma devoção sobre-humana) terão tido tempo para sentir a ressaca emocional.
Começando pelo fim, é de saudar o regresso do Domingo Desportivo, agora apresentado pelo Carlos Daniel. A última edição do Domingo Desportivo de que tinha memória fora apresentada pelo Ribeiro Cristóvão, pelo que a diferença de qualidade é estarrecedora. O facto de Carlos Daniel representar uma melhoria significativa sobre qualquer outro português - vivo ou morto - que o tenha precedido em qualquer cargo pode ser hoje elevado com segurança à categoria de dogma.
O novo Domingo Desportivo tem três lugares para comentadores: dois permanentes e um rotativo. Num mundo ideal, Carlos Daniel ocuparia os três. Num mundo ideal, Carlos Daniel apresentaria, comentaria, faria as reportagens, desenharia os cenários, e governaria o país. Mas, como Rui Santos escreveu esta semana no Record, estamos condenados a viver na imperfeição imperfeita deste mundo apenas aparentemente perfeito, e temos de nos resignar às presenças de João Vieira Pinto (campeão em título do mergulho semântico) e Luís Freitas Lobo (ainda imbatível no arremesso do facto). Não tenho nada contra Luís Freitas Lobo. É difícil ter algum problema substancial com alguém que sabe mais sobre um avançado da Naval chamado Michel Simplício (ex-Esporte de Pelotas) do que eu sei sobre mim próprio. Aliás, Luís Freitas Lobo, algures no seu arquivo Borgesiano, deve ter uma ficha com o meu perfil, currículo e estatísticas completas. Luís Freitas Lobo existe neste mundo como argumento teológico: prova irrefutável de que a omnisciência é possível e está ao alcance de todos; mas dá imenso trabalho, e oblitera quaisquer outras virtudes.
Quanto ao futebol propriamente dito, os três grandes começaram exactamente como se esperava. É agora aparente para todos que Hulk representa um problema gravíssimo para a competitividade do campeonato. O golo foi fabuloso, mas a sua maior proeza foi a lesão que infligiu a Mariano González. Desta vez acertou no jogador errado, mas, com o acompanhamento técnico de Jesualdo Ferreira, será apenas uma questão de tempo até começar a contribuir activamente para a formação da lista de convocados, e para a resolução de eventuais problemas disciplinares. É provável que, nas próximas semanas, Guarín, Stepanov e o intrasferível Quaresma sejam discretamente convidados a formar barreira num treino.
Em Alvalade, o acidente geomorfológico conhecido como Rochemback continua a implementar a sua abordagem geológica à prática futebolística. As coisas acontecem lentamente no meio-campo do Sporting. Processos de erosão não observáveis a olho nu provocam o súbito colapso das defesas adversárias. Colisões entre placas litosféricas provocam compressões extremas, resultando na elevação de talentos tão improváveis como Djaló ou Izmailov. Se um jogo de futebol durasse dez milhões de anos, Rochemback seria melhor do que Platini. Em virtude deste inultrapassável obstáculo cronológico, o mais a que pode almejar é ser melhor do que a equipa à sua volta, tarefa na qual não terá grandes dificuldades.
Não vi o jogo de Vila do Conde, mas tanto a Rádio Renascença como o jornal Record elegeram Nuno Gomes como o melhor jogador em campo, um dado que dissipou aquele calorzinho de preocupação que as pré-temporadas do Benfica conseguem sempre - contra o mais elementar bom senso - fazer chegar às minhas axilas. Pablo Aimar, que meteu os papéis para a reforma antecipada em 2005, continua a sua tranquila transição administrativa: de substituto de Rui Costa a substituto de Caniggia em menos de doze jornadas. Suspeito que, no jogo contra o Porto, assim que Hulk se preparar para marcar um livre directo, Pablo Aimar será discretamente convidado a formar barreira sozinho.

quinta-feira, agosto 14, 2008

Genes

No último número da revista do filho do Paul Johnson, pode ler-se um texto sobre uma tradução da Eneida, que começa assim:
«Translating the Latin of Vergil’s Aeneid into English verse requires first a Trojan war of interpretation, and then an odyssey of re-encryption.»
O autor do texto chama-se Louis Amis, e uma fotografia sua (com seis aninhos) pode ser vista no livro Experience, de Martin Amis (que um dia escreveu, sobre o gajo do Silêncio dos Inocentes: «Harris has become a serial murderer of English sentences, and Hannibal is a necropolis of prose.»)
Kingsley, Martin, e agora Louis. Não faço ideia como é que esta transmissão darwiniana funcionou tão bem, mas o Jordi Cruyff e o Jakob Dylan cada vez têm menos motivos para não se matarem.

terça-feira, agosto 12, 2008

Sinto-me tão pouco preocupado com o Benfica que chego a colocar a hipótese de ter entrado em pânico sem dar por isso

Foi com uma dilacerante sensação de orgulho ferido que notei que os bloggers Lourenço Cordeiro e Bruno Sena Martins se envolveram num debate sadio sobre os méritos de Saturday sem que nenhum deles me tenha endereçado um convite explícito para brincar com eles também. Até James Wood foi recomendado na minha ausência. Porque sei ler nas entrelinhas, e porque não gosto de me meter nas conversas das outras pessoas, vou circunscrever a minha intervenção a três frases que me causaram particular indignação, passando, logo de seguida, para a leitura dos artigos assinados por Rui Miguel Tovar no Record de hoje, garantindo ainda que nunca mais brincarei à literatura com os bloggers Lourenço Cordeiro e Bruno Sena Martins sem que justificações convincentes sejam antes providenciadas para todo este lamentável incidente.

«Saturday não é um romance político»

Vou ser generoso e interpretar esta frase como uma daquelas coisas que uma pessoa só escreve quando está sóbria, e às quais não se deve dar demasiada importância. Se Saturday é excluído da definição “romance político”, estamos a raquitizar (palavra que certamente existe, mãe) essa definição até ao tamanho de um quadrozinho de especificidades que só vai provavelmente admitir coisas escritas pelo Gorky. É possível falar de Saturday como um romance político sem o diminuir artisticamente, sem limitar os seus ruídos aos de um megafone propagandístico. E também é possível fazer isto sem cair no extremismo oposto de insuflar a definição de “romance político” até que seja possível falar de Enid Blyton como escritora de romances políticos, como ouvi eu um dia a uma senhora no supermercado. “Romance político” não é uma etiqueta reducionista, nem um atestado de obsolescência instantânea. A não ser que assim o queiramos.

«não se pode ler Saturday à luz do comentário político que daí se poderá extrair»

Mau. Então não pode porquê? Só é preciso substituir a palavra “comentário” por outra palavra qualquer, preferencialmente uma palavra que exista (ao contrário da palavra “raquitizar”, cuja não-existência acabei de confirmar com bastante mágoa). Pode ler-se Saturday a dúzias de luzes distintas; uma delas terá forçosamente de ser a difusa e tacteante reflexão política do seu protagonista. É claro que estas duas frases do Lourenço não são discordâncias em relação à categorização do romance, mas sim tentativas de o blindar a críticas de pendor ideológico, desviando o foco para a tal «mestria narrativa» (que é, diga-se, bastante menos evidente do que em Atonement, Amsterdam ou Enduring Love; não tendo ainda lido o recente One Chiseled Bitch, reservo o meu julgamento). Entre as duas formas de reducionismo, até sou capaz de preferir, também, a formalista. Mas não há nada de intrinsecamente errado num “romance político”, nem em fazer uma leitura política de um romance. E Saturday é um “romance político”, não é um panfleto. É um “romance político” em que se reflecte politicamente, não um em que se teoriza sobre Política. Não tenta ilustrar as virtudes de um determinado sistema, mas sim dramatizar a ausência de um sistema. Ideologicamente, os personagens de Saturday não são profundos; as suas trocas de opiniões reproduzem os debates de pessoas relativamente bem-informadas, mas cuja informação é principalmente mediada pela televisão e pelos jornais, não pelos livros de John Rawls ou Leo Strauss. Os seus argumentos rodopiam entre a ansiedade factualmente correcta, o lugar-comum bem-intencionado, e a episódica afirmação relevante.
O excerto de Bellow que serve de epígrafe ao romance fala, salvo erro (não tenho aqui o livro, estou num ciber-café, apelo à calma, não me venha com coisas, mãe) no “late failure of radical hopes”. É este o território intelectual em que as personagens do romance reflectem politicamente. E essa reflexão passa necessariamente pelo desencanto com agendas políticas de larga escala; pelo facto de pessoas como Perowne (e até o filho) se verem forçadas a reduzir o perímetro do seu contentamento civilizacional à escala do quotidiano aquisitivo e da pequena intimidade; e com o definhar da esperança em soluções políticas para problemas universais. Todas estas questões são políticas, e todas são cruciais nas reflexões do protagonista do livro. Se se defende que «não se pode ler Saturday» a esta luz, está-se a ser tão reducionista com os que o lêm apenas a essa luz.

«mestria narrativa à parte (talvez com excessivo “topem só este domínio”), convém dizer que Saturday tem a subtileza de um Levantado do Chão no que à presença da libido política do seu autor diz respeito»

Não percebo isto. Julgava que havia mais hipóteses de encontrar vestígios de sectarismo ideológico em bivalves do que neste livro. Se a libido política de McEwan está presente em Saturday, só posso concluir que se trata de uma libido política claramente bissexual-platónica; a libido de alguém cujas hormonas estão cheiinhas de vontade, mas se recusam a tomar decisões executivas. Saturday é um livro que faz um fetiche da recusa em adoptar uma posição inabalável. Acusar isto de falta de subtileza, sinceramente, não lembra à New Statesman.
A ambivalência de Perowne não é uma pose. A sua posição sobre qualquer assunto tem tendência a oscilar - isto é reiterado duas ou três vezes ao longo do romance - de acordo com a posição do seu interlocutor. Este é um género de oscilação que muitas pessoas devem ter experimentado nesse febril pedaço de contemporaneidade que foi Fevereiro de 2003. Numa altura em que o debate pós-Blix e pré-bombardeamento se resumia a uma simétrica enumeração de banalidades ideologicamente determinadas, era praticamente impossível lermos um artigo do António Ribeiro Ferreira sem sermos acometidos por um irreprimível desejo de sair pelas ruas a cantar o «Imagine», ou lermos outro do Fernando Rosas sem ficarmos cheios de vontade de napalmizar (mãe?) o Médio Oriente inteiro. Num território intelectual pejado de certezas ocas, os disparates momentaneamente não-ouvidos soavam sempre mais lúcidos do que aqueles à nossa frente. A “libido política” de Perowne (não sei se o Bruno a equivale à do autor) é uma desconfiança militante em relação aos argumentos de ambas as partes.
O discurso político de Saturday foi acusado de ser trivial (entre outros por John Banville, que escreveu uma crítica extravagantemente imbecil ao livro), mas o que é interpretado como trivial é na verdade uma resposta instintiva às frenéticas certezas dos que pareciam fazer gala em abdicar da ambivalência, e em espezinhar nuances debaixo dos seus pezinhos atarefados, enquanto dançavam as respectivas valsas marciais ou kizombas pacifistas.
Tenho a certeza de que há duas ou três citações do livro que demonstrariam inequivocamente a minha razão em tudo isto, mas o livro está noutra margem, eu deixei caducar o passe da Fertagus, e os bilhetes de ida-e-volta estão pela hora da morte, pelo que com licença.

quinta-feira, agosto 07, 2008

Coisas que enfurecem o mais pacato cidadão

Nas palavras cruzadas do jornal Público, a pista "Unidade de medida da irradiação ionizante absorvida" foi utilizada quatro vezes (quatro) nas últimas sete edições, duas delas (duas) em dias consecutivos. O que fazem as autoridades competentes enquanto este escândalo se perpetua? Nada, pois então. Fecham os olhos e fingem que nada se passa. E assim vai definhando a nossa civilização, num processo passivamente avalizado pela apatia da sociedade civil, e pelo silêncio conivente do João Miranda. Está à vista de todos o vácuo moral criado pela ausência total de valores. Que mundo é este que estamos a deixar aos nossos filhos?

(A solução é RAD, já agora)

A bowl of Martian fatworm soup

«... He crossed the waiting room to the Padre booth; seated inside he put a dime into the slot and dialed at random. The marker came to rest at Zen.
"Tell me your torments," the Padre said, in an elderly voice marked with compassion. And slowly; it spoke as if there were no rush, no pressure. All was timeless.
Joe said, "I haven't worked for seven months and now I've got a job that takes me out of the Solar System entirely, and I'm afraid. What if I can't do it?
The Padre's weightless voice floated reassuringly back to him. "You have worked and not worked. Not working is the hardest work of all."
That's what I get for dialling Zen, Joe said to himself. Before the Padre could intone further he switched to Puritan Ethic.
"Without work," the Padre said, in a somewhat more forceful voice, "a man is nothing. He ceases to exist."
Rapidly, Joe dialled Roman Catholic.
"God and God's love will accept you," the Padre said in a faraway and gentle voice. "You are safe in his arms. He will never - "
Joe dialled Allah.
"Kill your foe," the Padre said.
"I have no foe," Joe said. "Except for my ownweariness and fear of failure."
"Those are enemies," the Padre said, "which you must overcome in a jihad." (...)
Joe dialed Judaism.
"A bowl of Martian fatworm soup_" the Padre began soothingly, and then Joe's money wore out.»


(Philip K. Dick, Galactic Pot-Healer)

segunda-feira, agosto 04, 2008

Galactic Pot-Healer


Estou a divertir-me tanto com isto que acho que nunca mais quero ler um livro que não comece com um ceramista desempregado a receber uma mensagem de uma divindade extraterrestre através do seu autoclismo.

Um monólogo de Sérgio Gouveia, por Sérgio Gouveia

Sérgio Gouveia: «Uma vez lá é mesmo difícil perceber como ouvir outro género qualquer. Torna-se chato. O que é que vai substituir o balanço, e o offbeat, aquela coisa tão orgânica? Embora acabe sempre nos mesmos discos, e às vezes temas, comigo foi um pouco diferente. Quis sempre ter tudo. Tudo do Miles Davis, tudo do Ellington, tudo do Charlie Parker e do Gillespie, e chegava a ter, por vezes. Mas o que ouvia e ouço acaba por se limitar ao mesmo de há anos atrás.
A certa altura achei que devia combater a minha falta de talento e ir para a escola do Hot Clube, aprender contrabaixo. Isto não é nenhuma falsa modéstia, é mesmo um ouvido muito mau, dedos pouco ágeis e coordenação motora sofrível. Ainda assim descobri exactamente o que tinha esperança ser verdade: é possível com muitas horas de trabalho um cepo tornar-se um músico medíocre e saber mais ou menos o que está a fazer. Lamentavelmente já eu tinha um emprego e uma licenciatura tirada sem grande razão. Isto foi com 28 anos. Agora tenho 32, desisti no fim do segundo porque já não tinha dinheiro para pagar aquilo. Mas valeu pelo que de lá tirei e descobrir que por mais que eu acredite que o jazz se aprende nas caves, num palco, também é possível ensiná-lo de alguma forma em salas de aula.
O mais comovente eram as aulas de História com o Bernardo Moreira, um fundador do Hot Clube com uns 70 e poucos anos e que viu os discos a serem lançados. Insultava-me bastante, sempre com razão. A certa altura divagava o homem por harmonias diatónicas e de como uma melodia em tom menor poderia estar encaixada numa harmonia em tom maior (estou a inventar) e pergunta-me 'acha isto possível?', ao que respondi que sim e o homem grita-me que eu acho que sim porque sou um crédulo, mas que não faço ideia se acho ou não que sim. E voltou a dizer com segurança "Crédulo!". Sempre que me insultava, no entanto, emprestava-me um ou dois discos no fim, para me explicar o que queria dizer. Aliás o que este homem passava para fazer os miudos ouvirem os discos. Quase todos eles tinham menos de 20 anos e 85% naquele ano estavam a aprender guitarra o que enfurecia naturalmente o Bernardo Moreira (que chegava a oferecer metade da propina - 850 € por semestre - a quem mudasse para trombone. Oferecia a propina e um trombone!).
A juntar a isto tinha as histórias do hot clube. Diz ele que foi tocar contrabaixo porque era mau musico e porque ninguem ia para contrabaixo, o que lhe serviu para tocar com toda a gente, e ser necessário em toda a parte. Ou que nos anos 40 o Hot era apenas um sítio onde os gajos se juntavam a ouvir discos. Ouviram tantas vezes os mesmos que quando alguem trazia algo novo faziam blindfold tests, adivinhando cada um dos músicos de um tema de ouvido. Segundo ele havia um tipo que identificava o estúdio onde foi gravado o álbum porque sabia distinguir entre pianos (e na altura cada estúdio tinha um piano apenas). Claro que nunca me interessou saber se alguma destas histórias era ou não verdade. Ou ainda como o Villas-Boas, que trabalhava no aeroporto, verificava as listas de passageiros de todos os vôos de Nova Iorque para Paris que faziam aqui escala por uma noite e caso encontrasse um nome que conhecesse convencia-o a vir ao Hot tocar. E se não estivesse lá tinha dado instruções a todos os colegas para o caso de algum preto lhes perguntar onde se podia fazer uma jam em Lisboa. Conseguiu assim ter a tocar em jam sessions com eles o Dexter Gordon, o Horace Silver e outros de quem os nomes esqueço sempre. Se andares por estes lados a uma terça-feira não deixes de ir lá. Às vezes tem-se sorte.»


(Escrito por Sérgio Gouveia, e retirado daqui, sem a devida autorização de Sérgio Gouveia)