quarta-feira, agosto 26, 2009

Elvis Oitavo


A televisão dotada de um apreciável pacote TV Cabo a que tenho tido acesso nos últimos dias foi sintonizada com tamanha anarquia (a SIC é o canal 17, o Hollywood é o 4, etc.) que as probabilidades de encontrar qualquer coisa decente num zapping fortuito são tão desoladas como as odds da lotaria italiana. Tanto quanto pude perceber, acabei de perder uma transmissão do Tootsie (um dos melhores guiões cómicos de sempre, eu um dia explico) para ficar a ver os últimos 25 minutos do que suponho ser uma mini-série sobre a vida de Elvis Presley, em que o papel de Elvis é representado por Jonathan Rhys Meyers, um buraco negro de carisma que consegue sugar qualquer vestígio de qualidade que passe nas suas imediações para um funil cósmico.
Elvis representa a experiência quintessencial do século XX sobre fenómenos de sucesso global: uma alteração cultural geológica efectuada a cem à hora e condensada em poucos anos. O processo já é suficientemente transtornante. Condensá-lo nas poucas horas de uma mini-série é transtornante ao quadrado. Condensar essa experiência nos últimos 25 minutos de uma mini-série pode ser conducente à catalepsia. A primeira coisa que eu vi foi Elvis a disparar uma arma contra um jornal. Depois vi Elvis a comprar um carro. Depois vi Elvis a perguntar ao seu cabeleireiro Larry "O que é a verdade, Larry?". Depois vi Elvis a dizer a um grupo de amigos que Deus existe. Depois vi Elvis à procura de comprimidos ("Devem estar na casa-de-banho. Vou lá!") Depois vi Elvis a ter um filho, e a garantir a Priscilla que não gostava de ir para a cama com gajas que já tivessem tido filhos.
Um célebre momento da sua biografia é recriado (com intrigantes e desnecessárias alterações, mas vá lá). Durantes as preparações para o '68 Comeback Special, o produtor Steve Binder, ao ver Elvis rodeado com um pequeno exército de guarda-costas e penduras, apostou que ele seria capaz de sair à rua sem protecção, porque ninguém o reconheceria. A mini-série mostra um estupefacto Elvis a percorrer Sunset Boulevard perante a indiferença geral de uma multidão de hippies, sintonizados numa onda alternativa. A história é boa (e melhor contada aqui), mas há que colocar a hipótese de a multidão de hippies se ter limitado a pensar que não valia a pena arrancar os cabelos e entrar em parafuso só porque estava ali a passar o Jonathan Rhys-Meyers
Rhys Meyers já tinha interpretado o papel de Henrique VIII como se Henrique VIII fosse o Joaquin Phoenix, e agora interpretou o papel de Elvis Presley como se o Rei do Rock fosse um Robbie Williams anoréxico e atarantado, a estremecer no palco à espera que os restantes Take That se materializem à sua volta. Se Elvis tivesse aquele aspecto, francamente, nunca teria sido Elvis: teria sido apenas Jonathan Rhys-Meyers.
(Interlúdio homoerótico: o rosto de Elvis não correspondia rigorosamente às noções clássicas de beleza masculina. Na verdade pode dizer-se que Elvis, juntamente com Brando, inventou as noções modernas de beleza masculina. Elvis tinha o rosto de uma estátua grega injectada com colagénio e depois esmurrada repetidamente em todos os sítios certos. O rosto de Rhys-Meyers não é clássico, nem moderno, nem sequer pós-moderno. É apático. Não se passa nada. Tem aquele ar permanentemente espantado, com boquinha indignada, e sobrancelhas vegetarianas, de quem abre o frigorífico a meio da noite para descobrir que se acabaram os espargos. Fim de interlúdio homoerótico).
A última sequência mostra um Elvis VIII sozinho no palco com um backdrop de néon, vestido de branco, com a poupa já na sua fase agnóstica, os ombros a tremer, os olhos esbugalhados, a balbuciar o «If I Can Dream» como se fosse o Demis Roussos. Só que o Demis Roussos não teria feito pior. O Dustin Hoffman vestido de Dorothy não teria feito pior. Eu próprio, mesmo tendo de me levantar às 9:10 para ir jogar ténis de praia, não teria feito pior.

Correntes!

Recebi nas últimas semanas, pela minha saúde, três mails diferentes de três pessoas que não conheço a perguntarem-me a minha opinião sobre aquilo do ponto de exclamação. As coisas chegaram mesmo a este ponto? Três mails de três pessoas que, tanto quanto sei, nem sequer têm blogues (estamos em 2009, por amor de Deus). Se me vão enviar mails, sugiro que seja com apostas sobre a próxima jornada. Mas era preferível abrirem um blogue e mandarem-me correntes - como aquela corrente dos 15 filmes na qual ainda ninguém teve a decência de me incluir.
Quanto ao ponto de exclamação, a verdade é que tentei, na altura própria, emitir a minha opinião, mas acabei sempre por perder os sentidos e desmaiar em cima do computador, o que fez com que minha empregada moldava tivesse de me vir acordar ao nascer do sol, descolando-me a cabeça do teclado com o cabo do espanador. As minhas perdas de consciência costumam ocorrer com timing perfeito, e é evidente que a polémica foi tão escandalosamente artificial que só pessoas extremamente com blogue a poderiam levar a sério. Ainda por cima está tudo facilitado - esta é daquelas em que basta um único exemplo contrário para embaraçar a oposição. O Portnoy's Complaint deve ter aproximadamente trezentos e noventa pontos de exclamação e não há um único que possa ser retirado sem tornar o livro pior. De resto, creio que a proposta de banir o uso de uma convenção gráfica por causa da minoria que a abusa é tão absurda que se refuta a si própria. Seria como banir o uso de gravatas apenas porque alguns excêntricos a gostam de usar virada para as costas, ou dentro das calças, enrolada à volta do Portnoy. Se todas as discordâncias retóricas fossem tão fáceis de resolver, nunca teria havido necessidade de inventar o diálogo socrático, o argumento crítico sofisticado, ou o Pacheco Pereira. É evidente que há maus escritores que usam mal o ponto de exclamação; mas é altamente provável que os que o fazem também usem mal as reticências, a vírgula, a metáfora, e a cabeça. Nas imediações de um ponto de exclamação abusivo há sempre delinquências tão ou mais relevantes a serem cometidas. E isto acaba por dizer mais sobre as pessoas que quiseram levar a arma do crime a tribunal - não como prova, mas como réu - do que sobre os esporádicos infractores. Se num mau livro, ou numa passagem particularmente má de um mau livro, o maior defeito que o equipamento estético do leitor consegue detectar é um ponto de exclamação mal posicionado tacticamente, então o leitor é tão superficial quanto o escritor que está a tentar denunciar. Três mails sobre isto, três, numa altura em que eu tenho de me levantar às 9:10 da manhã para ir jogar ténis de praia.

terça-feira, agosto 18, 2009

Que fazer? (as questões palpitantes do nosso movimento)

Bom dia. É uma da tarde. Creio estar a cingir-me aos factos quando digo que é terça-feira. Estou prestes a deitar-me. Escrevo estas linhas na cidade de L. no ano de 20__ enquanto saboreio gressinos torinesi besuntados com maionese do Lidl. Estão 25 graus, e o gentil leitor enverga significativamente mais cuecas do que eu. Não pego no livro do Pynchon há dez horas e meia, embora, no mesmo período de tempo, tenha lido na íntegra os quarenta e sete textos linkados ontem pelo Bookforum. A não ser que o conhecimento de uma estrada em Malta que liga Zebbug e Mdina me venha um dia a safar de uma situação delicada com, hipoteticamente, ciganos, não me lembro de ter aprendido nada de relevante. O meu esquentador faz um barulho esquisito, mas é provável que ele pense o mesmo de mim. Já emigrei por muito menos. Faltam pouco mais de seis horas para o Sporting entrar em campo contra a Fiorentina, uma equipa italiana da classe média-alta. Ao longo da sua história, várias equipas do Sporting, em diferentes e variadíssimos estados de consciência, foram tranquilamente eliminados de provas onde não deviam ter entrado por equipas italianas da classe média-alta, imunes ao desenvolvimento político das forças produtivas. Esta eliminatória não vai ser excepção. Não vejo qualquer hipótese de a Fiorentina não conseguir vencer o Sporting. Na verdade, a única hipótese de o Sporting não perder esta eliminatória de uma forma catastrófica seria artilhar uma exibição de tão confrangedora incompetência que a Fiorentina se sinta embaraçada por estar a praticar aquilo que é, essencialmente, a mesma modalidade desportiva, e se torne transigente, permissiva, decadente, antes de nos fazer o mesmo que o Mr. Miyagi faz ao Kreese no princípio de Karate Kid II: apertar-nos o nariz em amável galhofa, em vez de nos transferir o septo para o hipotálamo, pagando a respectiva cláusula de rescisão.
E contudo, há pessoas felizes. Alguns amigos e conhecidos sportinguistas, nem todos psicopatas, apresentam um transtornante optimismo nas suas esporádicas interacções comigo. Não percebo. Alguns falam de tácticas, mas também não percebo. Vi o Nacional-Sporting do primeiro ao último minuto e não percebi. Passei os primeiros minutos a tentar identificar o sistema táctico utilizado pelo Sporting (na companhia de pelo menos cinco dos jogadores titulares). O Bruno Sena Martins ("Paulo Bento ensaiou uma alteração táctica de molde a converter o losango (4-4-2) num 4-2-3-1.") quer convencer o país de que percebeu tudo, mas eu tenho as minhas dúvidas. Aceito aquele '4' inicial, mas rejeito enfaticamente todos os algarismos subsequentes. Eu não sei o que se passou em campo no Sábado à noite e duvido que alguém saiba. O sistema táctico do Sporting 2009/2010 é mais instável do que um mapa interactivo da Polónia. O cosmos deu uma volta tão grande que o enredo de um livro do Pynchon é mais fácil de seguir do que o sistema táctico do Sporting. Isto é particularmente doloroso para mim. Desde pequenino que consigo identificar o mais dedáleo sistema táctico em dois minutos de televisionamento. Desta vez, ao fim de vinte minutos tive de ir buscar papel e lápis. A última vez que tinha ido buscar papel e lápis foi em 1994, ao ver a selecção da Bulgária no Mundial dos Estados Unidos. Qualquer conversa de losangos e triângulos nesta fase dos acontecimentos é um insulto, não apenas a Euclides e Hipócrates de Quíos, como a mim e à minha pobre mãe, que está cheia de saudades minhas.
O que é o que o Miguel Veloso tentou fazer na primeira parte do jogo? Ninguém sabe. Qualquer pessoa que diga que sabe está a mentir. O Miguel Veloso por quem me apaixonei na sua estreia contra o Inter em 2006 tinha a missão de receber a bola à frente da defesa, rodopiar duas vezes para cada lado, e depois telegrafar a bola a uma pessoa com um projecto de vida sensivelmente parecido com o seu. O Miguel Veloso de Sábado estava, nas palavras de um optimista comentador da TSF, "descaído sobre a meia-esquerda", encarando cada lance que se desenrolava à sua volta com a mesma perplexidade com que Hamlet encarava o fantasma do pai. Sem um jogador à frente da defesa que possa interromper a potencialmente infinita troca de bola entre os dois centrais mais nervosos da história do futebol, a chamemos-lhe "construção de jogo" do Sporting passa agora por Abel - o mesmo Abel que consegue receber a bola a cinco metros da linha de meio-campo, e sem um único adversário num raio de dez, com a mesma serenidade de um guarda-redes a receber um atraso com os pés pressionado pelo Romário. Algures mais lá para a frente, o João Moutinho que se parece cada vez menos com o João Moutinho e cada vez mais com o Bob Geldof em 1985, anda de um lado para o outro a tentar furiosamente alimentar a África inteira com duas barras de nougat. O Djaló, que numa encarnação anterior deve ter chegado de avião à Fantasy Island e pedido ao Ricardo Montalban para ser extremo-direito, recebe a bola com a canela junto à linha lateral, simula uma breve lesão osteocondral em frente ao lateral contrário, corre três metros para a frente e efectua um passe em profundidade para um dos jogadores prestes a fazer exercícios de aquecimento. O Postiga, cuja missão em campo me parece agora consistir em recuperar a bola quando o Sporting tem a bola, e manter a bola quando o Sporting não tem a bola, passou grande parte do jogo a pressionar adversários imaginários perto de uma bandeirola de canto imaginária. O Rochemback. O Rochemback continua a ser um excelente futebolista e gostaria que a SAD efectuasse um esforço financeiro no sentido de comprar o seu passe a Satanás. Gosto muito muito do André Marques, que tem duas das qualidades essenciais num lateral moderno: quando a bola é cruzada da faixa oposta consegue não sofrer um súbito aneurisma cerebral; e quando tem a bola aos seus pés esforça-se activamente por endossá-la a alguém que apresente notórias semelhanças físicas com um colega de equipa. O Daniel Carriço também me agrada muito. Assumo que tenha recebido a rigorosa educação que a Academia reserva para os defesas-centrais. Os defesas-centrais de um clube grande, dizem os docentes, passam 75% do jogo sem nada para fazer, portanto a sua virtude essencial deve ser a concentração. Infelizmente, depois de uma época a titular, a concentração é a única qualidade do Daniel Carriço impossível de avaliar. O Daniel Carriço passa o jogo inteiro a acudir a emergências, e deve chegar ao final dos noventa minutos numa pilha de nervos, com vontade de ir percorrer a estrada entre Zebbug e Mdina à procura de uma prostituta para assassinar. A minha vida, basicamente, acabou. Mas quero que sejam felizes quando eu já cá não estiver, porque a existência é uma dádiva e não devemos desperdiçá-la.

domingo, agosto 16, 2009

sexta-feira, agosto 14, 2009

Vou amar esta pessoa o resto da minha vida

Sauncho now answered the phone in some agitation. "Doc! Have you got the tube on?"

''All's I get here's a three-minute call, Saunch, they've got me in Compton, and it's Bigfoot again."

"Yeah well, I'm watching cartoons here, okay? and this Donald Duck one is really been freaking me out?" Sauncho didn't have that many people in his life to talk to and had always had Doc figured for an easy mark.

"You have a pen, Saunch? Here's the processing number, prepare to copy—" Doc started reading him the number, real slowly.

"It's like Donald and Goofy, right, and they're out in a life raft, adrift at sea? for what looks like weeks? and what you start noticing after a while, in Donald's close-ups, is that he has this whisker stubble? like, growing out of his beak? You get the significance of that?"

"If I find a minute to think about it, Saunch, but meantime here comes Bigfoot and he's got that look, so if you could repeat the number back, OK, and—"

"We've always had this image of Donald Duck, we assume it's how he looks all the time in his normal life, but in fact he's always had to go in every day and shave his beak. The way I figure, it has to be Daisy. You know, which means, what other grooming demands is that chick laying on him, right?"

(Thomas Pynchon, Inherent Vice, p.28 - Vou andar tão feliz nos próximos tempos.)

terça-feira, agosto 04, 2009

Grandes Momentos da História da Legendagem

Num episódio do novo Knight Rider transmitido este fim-de-semana pela TVI, podia ler-se a dada altura mais ou menos isto: «Queres rimar como um Beastie Boy/ Mas só consegues rimar como o Toy». Não faço ideia do que foi dito no inglês de origem, mas duvido que tenha sido melhor.
Entretanto, já em pleno estágio de preparação para ler o novo coiso do Pynchon, decidi que esta semana apenas vou ouvir músicas do Roky Erickson. A decisão revelou-se, até ver, extremamente benéfica, senão mesmo inspirada. (Queria meter aqui o «Burn the Flames», mas não está no YouTube; esta ausência, sublinhe-se, é uma das situações mais embaraçosas em que já apanhei a internet).