domingo, novembro 26, 2006

. . .Ellipsis. . .

Há sinais de pontuação que, no meu entender, pertencem a determinados escritores. O uso que lhes deram - por ter sido revolucionário ou simplesmente exaustivo - devia consagrar-lhes o direito a um ™/© nos compêndios. Duvido, por exemplo, que alguém tenha utilizado a vírgula como Henry James, ou o ponto e vírgula como Virginia Woolf. E Philip Roth parece-me o único autor contemporâneo a perceber para que serve, e como se usa, um ponto de exlamação. Sem esquecer Nabokov, que tinha o hábito enternecedor de atordoar com "aspas" as palavras mais inofensivas.
E as desgraçadas reticências, quem as redime, quem lhes acode?
Sempre foram as triplas ovelhinhas negras da Literatura. E na era do e-mail e do sms, nenhum sinal de pontuação sofreu tantos abusos como a sequência de três pontos - tragicamente despromovida a uma delegação de responsabilidade cognitiva ou, no seu pior, a um mero desvelo de brejeirice, um wink wink, nudge nudge, com ainda menos subtileza.
Um dos efeitos secundários da escrita de Thomas Pynchon tem sido uma reabilitação sistemática e gradual das reticências. Praticamente sozinho, ele resgatou-as ao domínio da indeterminação empírica, usando-as para sinalizar mudanças de foco narrativo, ou tornando-as agentes catalizadores daqueles desvios temporais, grávidos de significado, em que sua ficção é pródiga; dotando-as, em última instância, de faculdades mais consentâneas com a sua designação em inglês, ellipsis, termo com uma ambiguidade diferente da sugerida pela língua portuguesa, e que evoca outra figura de retórica preferida por Pynchon.
Gravity's Rainbow sem reticências seria menos do que é. Seria como o Orlando sem semicolons; perder-se-ia não apenas o sentido de alguns parágrafos mas a própria essência da obra. (Esta afirmação exigia ser validada com algumas citações, mas o meu exemplar de Gravity's Rainbow foi vítima de um recente pedido de empréstimo e temo não o voltar a ver. E "citar de memória" neste blog é uma piada de mau gosto).

Depois de tudo isto, é com algum pesar que revelo um notório défice de reticências nas primeiras páginas de Against the Day. Se o facto indicia um maior auto-domínio formal ou, pelo contrário, uma redução do ângulo de visão, isso terão de ser as restantes oitocentas páginas a confirmar.
Mas continua a ser muito complicado não amar um escritor que compara nuvens de tempestade a pedras derretidas esvaindo-se em colunas de luz, no mesmo capítulo em que nos presenteia com a imagem de um embriagado Arquiduque Francisco Fernando fugindo de um bar em Chicago, perseguido por uma turba furiosa.

2 comentários:

Samuel Úria disse...

Este blogue parece-me excessivamente pouco comentado! E a exclamação é muito devida.

"Rogério Casanova" disse...

E muitos dos comentários são teus.
A minha mãe - que lê isto todos os dias, abençoada - estava convencida que "Samuel Úria" tinha sido inventado por mim, ou que era um leitmotiv como "Sadi Carnot" e o "carteiro".
Tive de lhe explicar que não, que Samuel Úria não leva aspas, e existe.