quarta-feira, outubro 28, 2009

No fundo é isto, mas com "card-counting"



«He had adopted a strict daily routine of botanical drawing, electrical experiments, animal dissections, deck-walking, bird-shooting and journal-writing.»

(Terceiro parágrafo da página 1 do melhor livro que li este ano)

segunda-feira, outubro 26, 2009

Flaming globes of Sigmund


Sempre gostei muito daquelas histórias - apócrifas ou não - de súbitas revelações nocturnas, em que uma pessoa se levanta a meio da noite depois de um espasmo de criatividade, anota tudo num papel e descobre horas mais tarde que a criatividade não sobreviveu à transferência de suporte. Hitchcock a sonhar uma ideia brilhante para um filme, a escrever a sinopse de olhos fechados, e a acordar para descobrir apenas um papelinho garatujado com a frase "boy meets girl"; Bolaño a sonhar um romance maior do que o Ulysses, a escrever a sinopse de olhos fechados, e a acordar para descobrir apenas um papelinho garatujado com o 2666; ou o caso ainda mais trágico de Carlos Azenha, a sonhar uma longa e respeitada carreira profissional no futebol europeu, a escrever a sinopse de olhos fechados, e a acordar para descobrir apenas um papelinho garatujado com o plantel do Vitória de Setúbal.
Estas histórias têm pathos, porque condensam numa narrativa limpinha um dos grandes mistérios humanos: as calamidades que podem acontecer à inspiração e às aspirações naquela fracção de segundos em que são transmitidas do córtex para o mundo.
Sempre gostei muito destas histórias, mas nunca tinha participado - até que há três noites atrás me levantei a meio da noite com uma solução para o problema do défice orçamental. Quando acordei de manhã, absolutamente convencido de que iria ganhar o próximo Nobel da Economia, encontrei apenas uma folha A5 ao lado da caminha com a seguinte frase: «O défice está no Brasil - é preciso fumá-lo».
Bem, o défice está no Brasil; e é preciso fumá-lo. Suponho que isto, como a Bíblia, não é para ser interpretado literalmente, até porque uma simples análise logística permite-nos verificar as dificuldades operacionais envolvidas: mesmo que o défice fosse efectivamente localizado no Brasil, seria complicadíssimo isolar as suas propriedades tangíveis de forma a conseguir emboscá-lo com mortalha e filtro. (Na verdade, uma segunda camada de complexidade é lançada sobre o versículo pelo duplo sentido do verbo fumar, que poderia até levar ao surgimento de uma corrente herética que pretendesse não aspirar o fumo resultante da combustão do défice, mas sim desidratar o défice num fumeiro, o que em princípio levaria à sua preservação, etc, etc, e é bom de ver que temos logo aqui um problema maior do que o Pelagianismo).
Tudo isto foi com certeza provocado pelo livro que li na noite anterior - Liar's Poker, de Michael Lewis - especificamente, uma passagem em que ele compara a assimilação do jargão financeiro à aprendizagem de uma língua estrangeira: primeiro faltam-nos as palavras para determinados conceitos, depois começam-nos a surgir palavras para conceitos que não sabíamos possuir, e finalmente acabamos a sonhar com derivativos japoneses. O livro é muito bom e proporcionou-me muita diversão mesmo antes de a palavra "blackjack" na página 125 me ter provocado o equivalente literário a uma ejaculação precoce. A história de Howie Rubin, o trader que perdeu 250 milhões à Merril Lynch em 1987, e que começou a carreira a contar cartas em Las Vegas, vale, só por si, o preço do livro (que não faço ideia qual seja; uma ignorância apropriada, até porque no mundo do livro ninguém sabe o preço de nada).
O elemento espectacular é este: Howie Rubin tornou-se bond trader porque aquilo lhe fazia lembrar o blackjack (o único jogo de casino em que eventos passados influenciam eventos futuros), mas chegou à conclusão de que a vida em Las Vegas era uma coisa muito mais digna e racional. A sua revelação, codificada implicitamente no axioma de que é mais arbitrário trocar obrigações hipotecárias do que jogar blackjack, é que o dinheiro é mais estúpido do que um baralho de cartas. Rubin ainda anda ali às voltas a tentar convencer-se de que o facto de eventos passados não influenciarem eventos futuros no mercado das obrigações hipotecárias está relacionado com o comportamento errático dos homeowners americanos, mas não engana ninguém. Os homeowners americanos e as pilhas de 312 cartas bem baralhadas podem ser volúveis, mas são um modelo de estabilidade comparados com o dinheiro. O fio condutor de Liar's Poker é este: o dinheiro é completamente maluco. Não se pode confiar nele. Num momento pode estar ali ao canto, tranquilo, ocupado a ser muito, e no momento seguinte pode estar deitado numa viela, a vomitar na sarjeta, sem se lembrar quem é nem onde mora. Bom, este blogue acaba aqui. Obrigado a todos por terem vindo, foram três anos extraordinários, mas agora a minha vida é isto:

segunda-feira, outubro 12, 2009

Eu nasci heterossexual, não há qualquer problema

Sondagem Aximage/Liedson

Numa pequena sondagem à boca da baliza efectuada na noite de Sábado, foi revelado que três elementos destabilizadores no café aqui da rua não festejaram o segundo golo da selecção. Foi portanto sem qualquer surpresa que, através deste esplêndido site, verifiquei a existência de quatro nazis na minha freguesia (o quarto deve ser o careca que mora no prédio à frente do meu, e que passa a noite a jogar Metal Gear Solid com o volume no máximo, mas que dá a ideia de até nem ser má pessoa).
É muito bonito quando o "político" e o "social" coincidem assim de uma forma tão evidente que até eu consigo perceber tudo.

Insulto gratuito póstumo do mês

Sobre Katharine Hepburn: «She had Parkinson’s. She shook like a leper in the wind.»
Adivinhem lá.

sexta-feira, outubro 09, 2009

Vamos dar-lhes porrada nas praias

Não me lembro que idade tinha, mas não era ainda idade suficiente para ter aprendido a distinguir a palavra "irónicos" da palavra "eróticos" (situação que entretanto já rectifiquei), pelo que o primeiro livro que li de um escritor Nobelizado foi o Contos Irónicos, do Heinrich Böll . A edição portuguesa tinha na capa a imagem de um porco numa banheira, o que me pareceu indicação suficiente de que aquilo devia ser tudo uma enorme e fisiologicamente lucrativa javardice. Na verdade eram trezentas páginas de órfãos e padres deprimidos, que me afastaram da pornografia durante os melhores meses da minha pré-puberdade - um tempo precioso, que desperdicei a ler o Livro de Job e os Federalist Papers, e que nunca consegui recuperar.
Como já devem ter adivinhado, fui hoje barbaramente acordado às duas da tarde por alguém que pretende ser meu amigo, mesmo não tendo ainda assimilado as noções mais básicas sobre o meu calendário de repouso: «Já leste esta gaja?». Não só não li esta gaja, como nunca tinha ouvido falar desta gaja, embora tenha sido informado poucos minutos depois que sou a única pessoa cá em casa que não leu esta gaja nem nunca tinha ouvido falar desta gaja. Omiti este dado ontem porque sou um saloio supersticioso, mas tinha apostado 15 libras no Magris e outras 10 no poeta coreano cujo nome, apesar de consistir em apenas quatro letras, vai ser um profundo mistério durante o resto da minha vida. A minha opinião genérica sobre a atribuição do Nobel a Herta Müller é, segundo me informaram, extremamente positiva.
De realçar também que, enquanto eu andava por aí a cruzar-me com o João Botelho em oitenta e sete ruas lisboetas, o Eduardo Nogueira Pinto, o Pedro Lomba e o Miguel Góis fizeram um blogue novo. Perdi quase uma hora a teorizar sobre o facto de o blogue se chamar "Suction with Valcheck" em vez de "Suction with Valchek", porque os fãs do Wire costumam jogar esta coisa toda a um nível muito superior e - digo-o sem pinga de erotismo - tive medo que me estivesse a escapar alguma coisa.
Tendo em conta que já há iluminações de Natal à venda no sétimo piso do El Corte Inglês, decidi antecipar a minha lista de melhores blogues do ano, por ordem de qualidade, e em número de sete:

1. A Causa Foi Modificada
2. Yesterday Man
3. b-site
4. Ouriquense
5. um blog sobre kleist
6. Circo da Lama
7. Gravidade Intermédia

Tenho-me preocupado bastante nos últimos tempos com a falta de preocupação dos adeptos do Sporting em relação ao Benfica. Como um judeu alemão em 1933, o adepto do Sporting insiste em abanar a cabeça e sorrir, ao mesmo tempo que tenta convencer os pequenos Joshua e Sapphira de que vai correr tudo bem. Continuar a defender publicamente a ideia de que o Benfica é só ímpeto e entusiasmo artificial é neste momento blasfemo. Os noventa minutos do Benfica contra o Borisov, que eu fui ver ali com o Sérgio aqui há umas semanas, antes de tropeçar no João Botelho na Bica - noventa minutos de Benfica a meio-gás e sem três titulares importantes - foram francamente aterrorizantes. Já devia ser evidente para todos que estamos na presença do Mal absoluto.
Não é o facto de não ter havido um único lance de ataque inconsequente até aos 82 minutos. Não é o facto de não se ter visto uma única jogada começar com um passe longo de um dos centrais para o jogging acéfalo de um dos avançados (o gambito Polga-charuto-Djaló que tem sido o plano B do Sporting em todas as ocasiões em que não é o plano A). Não é o facto de jogadores do Benfica fazerem agora passes com força e a meia altura para a linha lateral, sem exibirem qualquer sinal de dúvida sobre a capacidade do colega de equipa para controlar a bola (a única pessoa a fazer isto no Sporting no passado recente foi o Rochemback, por inconsciência). Não é sequer o facto de dois antigos YouTubes de 5 minutos chamados Di Maria e Fábio Coentrão andarem agora por ali a ter aplicação prática constante - uma conversão de fantasia em realidade tão obscena como se duas actrizes pornográficas quisessem de repente casar connosco pela igreja.
O que foi realmente assustador foram as exibições de César Peixoto e Rúben Amorim: dois funcionários competentes, que se tivessem nascido dez anos mais cedo estariam hoje condenados a lugares de destaque em qualquer lista de barretes famosos do Benfica. O César Peixoto e o Rúben Amorim não são melhores do que o Nelo e o Tavares; mas vão andar por ali, vão ser esporádicos titulares "úteis", vão ser frequentes suplentes "eficazes". E depois disto, por duas vezes, o Benfica jogou mal e ganhou, como os Nazis na Batalha de Creta em 1941. Por amor de Deus, eu tenho visto o João Botelho com mais frequência do que vejo a minha mãe: aquilo é um homem sorridente e descansado da vida, porque sabe que pertence a uma raça superior. Ou o Jesualdo will fight them on the beaches ou estamos todos perdidos.

quarta-feira, outubro 07, 2009

Noble horses


Esta listinha de probabilidades para o Nobel não envergonha ninguém, mas também não exalta propriamente a Ladbrokes. Pelo menos cinco dos nomes estavam mal grafados (dois foram entretanto corrigidos, embora os misteriosos Umberto Ecco e Antoni Tabucchi continuem lá), mas o mais grave é a quantidade de candidatos com odds tão baixas, o que sugere que estão a manter as bases todas cobertas e que, ao contrário do ano passado, quando a súbita escalada de Le Clézio denunciou um maroto em Estocolmo que desatou a enviar SMS aos amigos, ninguém faz a menor ideia do que se vai passar. Em abono da verdade, suspeito que se pedissem ao Times Literary Supplement para organizar uma lista de favoritos para a Grand National, o resultado não seria muito mais edificante.
Debrucemo-nos então sobre algumas pilecas improváveis:

Thomas Pynchon, 9/1 - As odds de 9/1 mais inexplicáveis desde que as mesmas foram atribuídas a um golo do Polga num jogo contra o Bolton aqui há 2 anos. Têm-se ouvido sugestões de que um americano poderia voltar a ganhar este ano, mas creio que o Jon Bon Jovi ou o Steven Seagal têm mais probabilidades do que Pynchon. Dois dos últimos três americanos a receberem o galardão foram citados, respectivamente, "for his impassioned narrative art which, with roots in a Polish-Jewish cultural tradition, brings universal human conditions to life" (Singer, 1978) e " (...) novels characterized by visionary force and poetic import, gives life to an essential aspect of American reality" (Toni Morrison, 1993). Pynchon escreve os melhores desenhos animados da literatura, mas sejamos sérios: ele nunca give life to essential aspects of reality na sua vida inteira.

Haruki Murakami, 9/1 - Um recente e preocupante acrescento às listas de favoritos (o ano passado, salvo erro, estava a 25/1). O que é que se passa com esta gente? Murakami é uma daquelas modas orientais, como o yoga ou o sushi, que aterram de repente em Londres e Telheiras e nunca mais de lá saem. O mais intrigante é que esta moda específica é brutalmente ocidentalizada: Murakami é um yakisoba de referências americanas (Carver, Philip K. Dick, jazz, film noir). Temos aqui uma pessoa a traduzir o Ocidente de volta a si próprio como um Babelfish demente, mas não temos um Edward Said local para meter ordem na situação. Os romances que dele li nunca foram menos nem mais do que moderadamente interessantes, embora sejam todos reféns daquela inventividade estéril, fraudulenta e sem humor, em que as coisas acontecem porque sim: um adolescente apreciador de jazz apaixona-se pela rapariga da loja de discos e vão os dois passear pela praia, onde são surpreendidos por um veterano de guerra filósofo e um gato falante, antes de passarem para outra dimensão, onde há unicórnios e chove bacalhau. Enfim, isto tem o seu charme, mas chamar "génio literário" a Murakami, como já li em dois jornais, é como chamar génio científico ao Lysenko.

Ko Un, 16/1 - O algoritmo selectivo da Academia Sueca pode também voltar a apontar para um poeta com um nome esquisito, o que já não acontece desde 1996. Ko Un é um poeta coreano, facto incontroversamente confirmado pela wikipedia: «He has written poems in almost every conceivable form on virtually every topic», o que prenuncia uma espécie de António Ramos Rosa com logogramas.

Ian McEwan, 100/1 - A carreira de McEwan está em ponto morto. A expansão anunciada por Atonement (um daqueles livros characterized by visionary force and poetic import, que gives life a toda uma panóplia de essential aspects) parece ter abrandado, mas a Academia nunca se preocupou muito com picos de forma. Mais problemático, para mim, é o facto de o próximo livro, que é mais ou menos "sobre" o Aquecimento Global, chegar tão perto do penúltimo, que era mais ou menos "sobre" a invasão do Iraque. Se isto continua por este caminho, ainda vamos ver o homem a escrever sobre a gripe suína ou o grande colisionador de hadrões, e eu prefiro-o a escrever sobre Dunquerque e crianças sociopatas. A perseguição febril ao tópico noticioso mais próximo pode correr bem, mas implica um risco desnecessário: o registo histórico, tal como a wikipedia, é actualizado a cada minuto; o tema evolui, mas o seu tratamento literário literal fica ali gravado no papel, sem se poder adaptar. Pode parecer uma excelente e ousada ideia na altura, mas o autor arrisca-se a tentar entrar na posteridade de calças à boca de sino. Vou de seguida enviar um mail sucinto ao Ian McEwan, expondo as minhas preocupações.

Paul Auster, 100/1 - É muito simples: no dia em que isto acontecer eu mato-me.

Yesterday Man, I love him so

Aqui:

«Francamente, trocava quase toda a carreira do Pollack por vê-lo a despachar mais uma pêga no Eyes Wide Shut».

«Vi a encenação do Siegfried gravada no São Carlos (all four hours of it), com germanos vestidos de hooligans a falar com passarinhos dependurados de uma vara movida por uma badass chick (ah, sim, a desconstrução, murmurei, impávido) e valquírias com pinta de knackwurst embrulhada em lingerie a receber um extra por baixo do camarote ao fazerem em palco o teste industrial dos limites de elasticidade dos modelos da Victoria's Secret e que só saíam out of character (ah, pois, a desconstrução da desconstrução, cogitei, involuntariamente, impávido) pela ausência de um fiozinho de sauerkraut infiltrado no canto da boca».

« E só não vi o seu spin-off Jail, porque andam (juro) a promovê-lo como o desenvolvimento natural do cinéma verité (coisa hilariante para designar, a tomar pelo modelo, um produto visual cujas condições de verdade são precisamente o que deliberadamente se mantém fora de campo, o que a torna mais tv aldrabée que a ficção mais artificiosa; mas que, enfim, até dá para o cinéma verité que se intitulou cinéma vérité aprender no que é que dá intitular-se cinéma vérité) e eu não gosto que cauções intelectuais (não há nada mais abjecto do que pretender traficar elevação junto com o contrabando vaginal em dia de visitas) interfiram na minha fruição de exercícios panópticos propedêuticos sobre massa crocante de estereótipos sociais (só o genérico, com uma música, reggae, intitulada Bad Boys, e os seus disclaimers de innocent until proven guilty in a court of law, devem ocupar a totalidade da cadeira de Dimwit Semiotics na UCLA)».

Etc, etc, etc.