quinta-feira, agosto 30, 2007

A grande transferência do defeso (sem contar com a do Celsinho)

James Wood passou-se da terceira melhor revista do mundo para a segunda melhor revista do mundo, acto que suscitou os seguintes comentários ao editor da terceira melhor revista do mundo:


(O ranking é flutuante, mas não-negociável. A New Republic era, até Julho deste ano e em virtude de ter Wood nos seus quadros, a segunda melhor revista do mundo. A New Yorker era a terceira, porque tinha [e tem] o Anthony Lane e o Louis Menand. A tranferência de Wood não pode senão resultar em imediata re-hierarquização. A New Republic não desce mais lugares apenas porque continua a enviar-me links gratuitos por mail, apesar de a minha subscrição já ter caducado há meses. A quarta melhor revista do mundo é a Prospect. A primeira é tão óbvia que vou aproveitar o espaço tipográfico destinado ao seu nome para escrever outra palavra, precedida de artigo definido, nomeadamente, "o Celsinho".)

terça-feira, agosto 28, 2007

As saudades que eu vou ter do Channel 4


Não há, infelizmente, bons programas sobre Ciência em número suficiente para se poder detectar padrões de influência, mas quer-me parecer que já se pode falar em dois modelos distintos. O «modelo Sagan» implica um escopo megalómano e aposta na figura do cientista como educador deslumbrado; a câmara e o texto acompanham o pasmo sapiente do apresentador. Isto continua a funcionar, mas apenas na medida em que funcionaria numa sala de aula: a figura central tem de ser forçosamente imaginável como um bom professor. Carl Sagan era televisionável de uma forma bastante idiossincrática, mas julgo (e falo como alguém formado nas zonas de guerra da Penha de França e da linha da Azambuja) que seria difícil respeitá-lo como professor. Em termos muito primitivos: parece-me que seria tristemente fácil dar porrada em Carl Sagan. Dois meses na C+S de Sacavém e o senhor já estaria na fila da Segurança Social a meter os papéis para a baixa.
O segundo modelo - Richard Dawkins - é um caso diferente, e urge que comece a formar descendentes. A área de intervenção é usualmente mais restrita e a abordagem não é tanto pedagógica como militar. Há algo do hooligan inglês em Dawkins que intimidaria o mais veterano bully de bairro. É transtornantemente fácil imaginá-lo a interromper um debate sobre processos não-adaptativos quebrando um tubo de ensaio no rebordo da mesa e gritando para um colega indefeso: "Dr. Gould, are you calling me a cunt?"
Quando Dawkins perde a compostura, há qualquer coisa que cede no seu rosto: o efeito é comparável ao desenrolar da súbita avalanche que revela um vulcão inesperada e perigosamente activo. Para deleite do telespectador, Dawkins irrita-se com uma facilidade desconcertante. Isto de uma pessoa se irritar é um talento como qualquer outro: trabalha-se e desenvolve-se. E, justiça lhe seja feita, Dawkins coloca-se perante situações e pessoas eminentemente irritantes.
The Enemies of Reason foi o seu mais recente documentário, transmitido em duas partes pelo Channel 4. Foi também o último programa de televisão que vi em Inglaterra e a despedida não poderia ter sido melhor. Os alvos da guerrilha - médiuns, espanta-espíritos, cartomantes, homeopatas, mercadores de horóscopos e outros charlatães avulsos - podem parecer demasiado fáceis, mas todos eles praticam os dois pecados capitais da teologia Dawkinsiana: acreditam em coisas sem evidências e/ou utilizam jargão pseudo-científico para insuflar de credibilidade aldrabices místicas.
Isto, mais do qualquer outro fenómeno, desperta o Hulk que há em Dawkins. Submetendo-se com admirável restrição a processos de realinhamento de chakras, e mantendo todos os sinais exteriores de tolerância enquanto uma senhora o informa que só faltava "colocar o último triângulo", Dawkins quase explode quando alguém lhe começa a falar em "energias psíquicas" ou "terapia quântica".
Grande parte do seu arsenal céptico é dirigido à Homeopatia, uma prática fundada sobre a premissa de que a água se lembra de coisas. Perito após perito garantiu que o ingrediente activo nos medicamentos homeopáticos é tão mais poderoso quanto a solução for diluída (uma variação histérica do Mitridatismo), porque a água retém uma "memória molecular" desse mesmo ingrediente. Dawkins colocou a objecção óbvia: se concedermos que a água retém de facto essa memória - e isto não é suportado por qualquer princípio Físico conhecido - então teremos de admitir que a mesma memória se estende a outras substâncias, nomeadamente flúor, petróleo e o mijo das criancinhas da Fonte da Telha. É que a água é um líquido notoriamente promíscuo. A água, meus amigos, anda por aí que nem uma rameira leviana. Mas para os praticantes da homeopatia, a água está vestida de branco, algures no paraíso, a lembrar-se só das coisas certas. E enquanto um estudante de medicina tem de andar cinco anos a navegar esgotamentos e a estudar vinte horas por dia antes de poder pensar em exercer, um charlatão ambicioso que queira abrir um consultório de homeopatia (prática que tem agora direito a fundos do NHS, apesar de não estar sujeita a regulamentação governamental) não necessita de qualquer qualificação, ou sequer de um seguro. O que até faz todo o sentido, uma vez que os senhores se limitam a prescrever água mineral - ainda que da variante não-amnésica.
A Homeopatia tem um historial relativamente decente de pesquisas inconclusivas, embora alguns dos seus praticantes mais honestos se orgulhem de uma disparidade evidente no efeito placebo em relação à medicina convencional. Esta disparidade parece-me fácil de explicar quando comparamos um típico centro de atendimento do Serviço Nacional de Saúde com um típico salão do pessoal dos cristais. De um lado, atrasos crónicos, má-educação institucionalizada e salas de espera claustrofóbicas que se assemelham muitas vezes a entrepostos de germes; do outro, higiene fulgurante, flautas de pã, plantinhas pelos cantos, e o patois tranquilizante e xaroposo da balela pseudo-mística. Não admira que os tratamentos inertes surtam efeitos superiores. Eu próprio, depois ver Dawkins deitado num colchão imaculado durante cinco minutos, ao som de música dos andes, senti a minha constipação a dissipar-se.
Mas Dawkins depressa deixou outra vez os seus chakras de pantanas. Bufando e revirando os olhos para a câmara a intervalos regulares, enquanto se dedica a actividades tão enriquecedoras como passear por uma feira New Age ou participar numa sessão de espiritismo, Dawkins apresenta toda a satisfação predatória de um gajo a enfiar o carregador na pistola. Por vezes a dúvida instala-se: não estará ele a levar aquilo demasiado a sério? Ele próprio se questiona, sensivelmente a meio do programa: "Am I taking this too seriously?" Isto meros dois minutos depois de alguém lhe ter prometido despertar todo o seu DNA dormente.
É difícil não pensar que sim, mas mais difícil é não partilhar a sua incredulidade para com o desprezo que pessoas aparentemente inteligentes reservam para os alicerces da civilização.
O astrólogo do Observer, Neil Spencer, esteve muito, muito perto de admitir que não acreditava no método científico, mas acabou por se fixar num ligeiramente menos comprometedor "I don't believe in the experiment you're proposing". O "experiment" que o Dawkins lhe "propose" era uma simples análise estatística da validade das suas previsões astrológicas, um instrumento que pode servir para muita coisa, mas que por alguma razão misteriosa não deve ser "arrogantemente" aplicado à perturbante problemática de os Sagitários serem todos um bocado reles.
O único grupo disposto a submeter-se a um double-blind trial foi o dos water dowsers, aquelas pessoas patuscas que se acham capazes de descobrir lençóis de água subterrâneos com a ajuda de um cabide. Os resultados - previsivelmente catastróficos - foram recebidos com desculpas - previsivelmente esfarrapadas. Se a água não adivinhada tiver de facto boa memória, há-de passar anos a rir-se do incidente.
Entretanto, Deepak Chopra e outras luminárias da indústria das "terapias alternativas" formaram filas ordeiras diante da câmara para debitar os clichés da praxe (a "arrogância da ciência moderna" e baboseiras afins). Foi algo surpreendente, mas tristemente apropriado, que o maior chorrilho de disparates tenha surgido, não de um curandeiro de Vilar de Perdizes, mas de Steve Fuller, um sociólogo da Universidade de Warwick, comicamente à deriva na retórica exasperantemente frívola das piores caricaturas das Ciências Sociais. Segundo as minhas trémulas notas, a posição de Fuller é qualquer coisa como: «Qual é a autoridade do Presidente da Royal Society para eu aceitar as suas afirmações sobre o funcionamento do Mundo?» A implicação é de que o conhecimento científico pode não ser objectivo, mas apenas uma codificação das ideologias dominantes e relações de poder da cultura que o produziu.
Tudo isto ecoou na memória com deprimente familiaridade: trata-se de uma reciclagem séria e quase verbatim do nonsense deliberado com que Alan Sokal tentou desmascarar o vácuo relativista que passa por pensamento nos recantos mais sombrios dos departamentos de Estudos Culturais. Nestes universos paralelos, cuja origem remonta a um texto de Thomas Kuhn extravagantemente mal interpretado por duas ou três gerações de professores de Humanidades (e que era a bíblia de dois ou três professores da FLUL no tempo em que lá andei), a evolução da ciência é sociologicamente determinada, e os oceanos estão cheios de gotas de água oprimidas, impedidas de cumprir o seu potencial pelos paradigmas artificiais reinantes.
Enfim, um cenário de ir à bruxa. E neste combate, pelo menos, a agressividade de Dawkins (por vezes tão exagerada quando se volta para a religião) é enfaticamente bem-vinda.

sexta-feira, agosto 24, 2007

O que eu fiz nas minhas férias

Comprei pilhas contrabandeadas, inutilizei dois telemóveis, insultei inadvertidamente um cidadão panamiano, ouvi uma explicação sobre torneiras de mistura dada por um canalizador eslovaco com um dente de ouro, fui multado por estacionar à porta de um Lidl sem fazer compras no Lidl, desenvolvi uma atracção quase pornográfica por pickles, li o To the Finland Station do Edmund Wilson, anotando copiosamente as margens do capítulo sobre Enfantin com ideias para uma sitcom, atravessei dois aeroportos com trinta e seis quilos de livros às costas, pronunciei criativamente o nome de vários reforços do Sporting, descobri que há electrodomésticos que tratam da sua própria higiene, perdi uma quantia absurda num cavalo chamado Ignoble, fui semi-apanhado numa inundação, descobri a obra de Stephen Jay Gould, senti o apelo mudo do país real, mudei de casa, mudei de país.

Aprés la sieste


«One morning at half-past six, before Enfantin was out of bed, he was visited by a man named d’Eichtal, a member of the brotherhood and also a Jew. D'Eichtal was in a state of extreme exaltation; he had been to communion at Notre Dame the night before and there it had been suddenly revealed to him that "Jesus lives in Enfantin" and that Enfantin was one of a holy couple, the Son and Daughter of God, who were to convey a new gospel to humanity. Enfantin was at first cautious: until the appearance of the female Messiah, he told d’Eichtal, he could not name himself nor could he be named, and in the meantime he begged his apostle to let him go back to sleep.»

(Edmund Wilson, To the Finland Station)