segunda-feira, setembro 14, 2009

Gilgamesh

Estes três momentos são momentos-espelho em que os personagens são confrontados com o Eu que é Outro, a lenda erguida em torno das façanhas de cada um. Dom Quixote torna-se grave e sério, temendo que o infiel não seja fiel à verdade. Ulisses comove-se, consciente do tempo que passou. Hadji-Murat sente-se lisonjeado com a possibilidade de ser personagem de uma leitura do czar. Nas histórias vemo-nos reflectidos. São as histórias que fecham o círculo que começa na acção e que, ao regressar ao mesmo ponto, já se fez narrativa; que começa no homem e, seja a enfrentar moinhos, ciclopes ou russos, acaba no herói.

Neste post fabuloso, o Bruno Vieira Amaral fala de um truque literário que eu acreditei durante anos ter sido prefigurado na Epopeia de Gilgamesh: confrontar o protagonista, dentro da narrativa, com uma representação das suas façanhas. Quando digo que acreditei durante anos que isto estava tudo no Gilgamesh, não o faço apenas para falar no Gilgamesh e ter portanto uma oportunidade para escrever Gilgamesh, pois embora Gilgamesh seja uma palavra engraçada, não é esse o aspecto mais importante desta situação do Gilgamesh. Li um texto de alguém, algures (não me lembro se numa revista, ou num texto de apoio da faculdade, mas gostava imenso de saber quem foi o sacana) que não só fazia um resumo inacreditavelmente distorcido da história de Gilgamesh, como tinha até a desfaçatez de a melhorar. Lembro-me que a paráfrase da tábua XI indicava que ao regressar a Uruk, depois da sua longa e infrutífera procura da imortalidade física, Gilgamesh via um grupo de pessoas a desenharem as suas façanhas nas muralhas da cidade, e compreendia que essa era a única imortalidade a que podia aspirar. Isto, para um texto que, salvo erro, precede Homero em para aí uns mil anos, pareceu-me na altura impossivelmente adulto.
O problema é que as duas versões existentes da Epopeia não confirmam aquela sinopse fantasma. O que acontece na tábua XI é que Gilgamesh aponta para as muralhas que ele próprio ajudou a erguer e pergunta (creio que retoricamente, embora haja ali um conveniente barqueiro):

300. Then Gilgamesh said this to the boatman:
"Rise up now, Urshanabi, and examine
Uruk's wall. Study the base, the brick,
the old design. is it permanent as can be?
Does it look like wisdom designed it?

A natureza da revelação é evidentemente semelhante: isto é uma manifestação de orgulho no seu trabalho, uma aceitação de que a sua proeza funcionou tanto ao nível comunitário (deu ali uma parede às pessoas), como ao nível pessoal e egocêntrico (é esse trabalho que tornará a sua memória permanente). Mas chamo a vossa atenção para o facto de não haver nada nas muralhas que se assemelhe às tais representações pictóricas dos feitos de Gilgamesh. Quem é que me enganou? Se alguém me conseguir esclarecer este mistério, ficarei eternamente grato. Andei anos a pensar injustamente que um qualquer blogger anónimo da Suméria tinha sido melhor do que Homero.

(Na quinta e última secção de 2666, Reiter regressa, já depois do final da II Guerra, à aldeia russa de Kostekino. No edifício onde se escondera durante o Inverno de 1942, descobre que «alguém se tinha entretido a desenhar nas paredes - e no tecto! - cenas quotidianas dos alemães que lá tinham vivido». No meio dos desenhos, Reiter descobre-se a si próprio. Quando li esta cena, pensei imediatamente "olha: isto é como no Gilgamesh"; afinal aquilo não é bem como no Gilgamesh).

sexta-feira, setembro 11, 2009

Eu também quero acrescentar o seguinte

A mesma extraordinária funcionalidade do google que me alertou aqui há uns anos para a existência de um dentista brasileiro chamado Rogério Casanova, alertou-me agora para o facto de o cidadão Hélder Beja alimentar algumas dúvidas quanto à minha mais elementar espectacularidade em matéria de dizer coisas sobre livros:

«Quero acrescentar o seguinte: Rogério Casanova, todos sabemos, venera Pynchon. Nenhum mal vem ao mundo, cada qual gosta do que quer. O que é grave é que Casanova, nesta crítica a O Leilão do Lote 49, escreva algo tão disparatado como que o livro tem «uma revisão competente e, a espaços, inspirada». A revisão é, só, do pior que me passou pelas mãos desde que ando nisto dos livros.»

Não sei há quanto tempo o cidadão Hélder Beja anda "nisto dos livros", e o equívoco até pode ser da minha inteira responsabilidade, mas reside aqui: quando falei na revisão, referia-me à revisão da tradução, como conseguirá perceber qualquer pessoa que leia o que vem antes e depois na mesma frase. Falo na correcção de tempos verbais em relação ao original inglês; falo na correcção de lapsos de tradução e na introdução de lapsos novos. De tradução. Sobre a revisão do texto, sobre a fiscalização gráfica, falo muito de raspão, e sempre a caminho do grande objectivo de 90% dos meus porejamentos sobre as massas, que é fazer uma piadinha antes de falar de coisas extremamente sérias do ponto de vista da seriedade antes de fazer outra piadinha. A tradução, no geral, e com uma ou outra falha (em particular quando decide editar a sintaxe do original), continua a parecer-me boa, ou pelo menos aceitável, tendo em conta a trabalheira sisífica que é traduzir Pynchon.
Quanto às gralhas, sendo mais ou menos consensual que o Thomas Pynchon não trabalha para a Relógio D'Água e não teve nada a ver com o assunto, estou-me moderadamente a cagar para elas, especialmente quando há ali um livro sobre o qual é preciso falar. Eu, por coincidência, falo sobre livros aí em sítios (ainda não tenho Meo em casa) e gastar um milímetro que seja do exíguo espaço que dão a uma pessoa como eu para andar aí nos sítios a falar de livros em pormenores como acentos graves e agudos parece-me tão pertinente como fazer uma crítica ao Inglourious Basterds falando nos estofos dos assentos no Alvaláxia. Regra geral (eu tenho regras gerais) gosto de pensar num livro traduzido como um artefacto cuja vulnerabilidade ao pacote mais inepto não deve ser reforçada por uma crítica que se centre no aparato em torno do livro (o aparato publicitário, o aparato gráfico) em vez de se centrar no seu objecto essencial que é, digamos assim, o conjunto de virtudes e defeitos estéticos de uma obra escrita por um gajo que provavelmente não sabe que a língua portuguesa desenvolveu acentos graves e agudos para lhe complicar a vida. As gralhas que me incomodam são gralhas de estilo, de inteligência, de imaginação. Quando falo de livros (eu falo de livros) eu tento falar disto e não de outras coisas. Cada um fala do que quiser quando fala de livros, evidentemente; mas o meu texto era essencialmente sobre O Leilão do Lote 49, não era sobre literacia, sobre a competência dos funcionários da Relógio D'Água ou sobre a qualidade das gráficas nacionais - tudo áreas que me interessam tanto como a programação dos quatro canais terrestres neste preciso momento.

sexta-feira, setembro 04, 2009

O último filósofo comunista do século XX

2666, cujas mil páginas eu vou reler pela terceira vez durante o pequeno-almoço só para afrontar os koalas, está atulhado de sonhos. Os sonhos na literatura costumam ter má imprensa ("tell a dream, lose a reader", etc). O argumento canónico é o mesmo argumento contra o uso excessivo de símbolos: se encaixam organicamente, se funcionam, parecem artificiais e afectados; se não encaixam, se a sua incongruência é demasiado boa para ser eficaz, então é tudo uma grande perda de tempo. Há sementes de verdade neste quintal, mas não se deve atirar para o lixo um mecanismo narrativo que já cá andava a funcionar desde que o Agamemnon sonhou com a glória e que vai continuar a funcionar pelo menos durante o meu pequeno-almoço.
2666 está atulhado de sonhos; e todos funcionam. A maneira como funcionam já é outra conversa, pois estamos a falar de um romance que trata aquilo que nós mortais chamamos "significado" mais ou menos como um camionista mexicano trata uma prostituta. Os sonhos são quase todos sobre buracos: buracos metafóricos - que sepultam a memória da dor e da violência - e buracos reais - onde se enterram coisas, ou cadáveres. Um buraco em particular, que cumpre a função dupla de enterrar uma memória e uma resma de cadáveres é cavado por um Nazi chamado Sammer; e é o mesmo tipo de buraco de onde um judeu chamado Sammler saiu para ressuscitar a civilização. (Encontramos os amigos todos em 2666, é como ir ao café do bairro).
O segundo melhor sonho de 2666 tem a participação de Boris Yeltsin. É isto:

« ... Amalfitano sonhou que via aparecer num pátio de mármore cor-de-rosa o último filósofo comunista do século XX. Falava em russo. Ou melhor dizendo: cantava uma canção em russo enquanto o seu corpanzil se deslocava, fazendo esses, em direcção a um conjunto de majólicas listadas de vermelho intenso que sobressaía no plano regular do pátio como uma espécie de cratera ou latrina. (...) Quando o último filósofo do comunismo já estava finalmente a chegar à cratera ou à latrina, Amalfitano descobria com estupefacção que se tratava nem mais nem menos de Boris Yeltsin. É este o último filósofo do comunismo? Em que espécie de louco me estou a transformar se sou capaz de sonhar disparates? O sonho, contudo, estava em paz com o espírito de Amalfitano. Não era um pesadelo. Além disso, proporcionava-lhe uma espécie de bem-estar leve como uma pena. Então Boris Yeltsin olhava para Amalfitano com curiosidade, como se fosse Amalfitano a irromper no seu sonho e não ele no sonho de Amalfitano. E dizia-lhe: escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou explicar-te qual é a terceira perna da mesa humana. Eu vou explicar-te. E depois deixa-me em paz. A vida é procura e oferta, ou oferta e procura, tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia nas lixeiras da História, que por sua vez está permanentemente a desmoronar-se nas lixeiras do vazio. Por isso toma nota. A equação é esta: oferta + procura + magia. E o que é a magia? Magia é épica e também é sexo, e bruma dionísiaca e jogo. E depois Yeltsin sentava-se na cratera ou latrina, mostrava a Amalfitano os dedos que lhe faltavam e falava da sua infância, e dos Urales, e da Sibéria, e de um tigre branco que errava pelos infinitos espaços nevados. Seguidamente tirava uma garrafa de vodka da algibeira e dizia:
- Creio que está na hora de beber um copinho.
»

(Roberto Bolaño, 2666, pp. 267-268)

Santa Teresa


terça-feira, setembro 01, 2009

文表示願為台灣這塊土地承受所有苦難。

Devido ao marketing agressivo da indústria hoteleira do sudoeste asiático, as pessoas e autómatos que quiserem comentar a qualidade dos numerosos posts semanais deste blogue vão ter, a partir de agora, de copiar letras para um formulário. Peço desculpas sinceras a todos pelo incómodo, mas acredito que a partir de um certo limite, qualquer informação adicional sobre brides from mainland China e thermostat-free chocolate se torna redundante.
Entretanto, o Pedro Mexia tem um blogue novo. Para as pessoas não julgarem que era um impostor, tratou de colocar, no espaço de cinco posts, uma referência a um filme do James Gray, um youtube dos Smiths, e um diálogo com um taxista. Pessoalmente, enquanto não aparecer lá uma foto da Eva Mendes e um recibo da Fnac, não vou dormir descansado. E agora, um anagrama: "Pedro+Mexia+A+Lei+Seca = Sai a morcela de peixe". Faltava só uma letra para conseguir "Ele deixa meias porcas". Perdemos aqui uma grande oportunidade.
O melhor post do Verão chama-se "Caderno de Palermo" e está aqui.