quinta-feira, dezembro 07, 2006

Nove notas biográficas sobre Michiko Kakutani


«. . . Thus Ishmael, who proceeds to attempt to transcribe the whale's brow for us. 'I put but that brow before you. Read it if you can.' We can read the book, but the book cannot read the brow. So it is, and so Ishmael knows it to be.»

(Tony Tanner, Scenes of Nature, Signs of Man, Cambridge University Press, 1987.)


1. a sua infância em New Haven é uma série de decisões radicais, rapidamente ignoradas. No relatório de uma professora primária pode ler-se «Michiko é impulsiva, mas incapaz de assumir compromissos». Os seus sonhos são agitados. Confessa-se assombrada pelo constante crepitar de invisíveis chicotes. Um pacote pré-pago de dez sessões terapêuticas com um discípulo de Rollo May produz resultados inconclusivos;

2. por ocasião do seu oitavo aniversário, o pai (o matemático Shizuo Kakutani) oferece-lhe um exemplar das Fábulas de Esopo. Michiko deixa-lhe uma curta nota de agradecimento no bolso interior do casaco: "Querido Papá. O cisne, a raposa, a lebre e a tartaruga são meros recortes genéricos, abdicando da Universalidade conferida por uma maior densidade psicológica. Não passam de figuras unidimensionais, perdidas numa floresta de clichés. As ilustrações, contudo, são bastante competentes. Amor, Miki.";

3. na sua mesa-de-cabeceira, além de um retrato autografado de Spiro Agnew, Michiko guarda um lenço, bordado em Imperial typeface, tamanho 8.7, com as seguintes palavras: "Nothing odd will do long, nothing odd will do long, nothing odd will do long";

4. depois de ler no original um obscuro panfleto de 1824 (Réflexions sur la puissance motrice du feu et sur les machines propres à développer cette puissance) comenta com um editor-adjunto: «Senti que tudo não passava de um daqueles jogos pueris em que o autor vai inventando regras novas para prontamente as esquecer. É o leitor que sente a fadiga de artilhar cada página ex nihilo. Duvido que este livro exista realmente»;

5. é fluente em cinco línguas modernas, mas não sente paixão por nenhuma delas. As palavras portuguesas de que mais gosta são "resiliência", "magnólia", "sinecura" e "ostrogodo". Consciente da sua predilecção, tenta utilizá-las com "parcimónia" (palavra que detesta);

6. sempre que lhe chega às mãos um livro que exceda as oitocentas páginas, Michiko observa-o demoradamente, como se estivesse diante do mais arrebatador dos segredos. Ouvem-se-lhe estalidos, sussurros, cacofonias guturais. Uma empregada de limpeza (que acabaria por vender a história ao National Enquirer) testemunhou várias vezes esta ocorrência: «Ela assume uma postura hirta, com as mãos cercando o volume fechado, e diz coisas como 'o que é que tu me podes dizer sobre mim própria' ou 'ainda e sempre, a ignomínia da abundância', coisas assim, percebe? Por vezes, atinge um tal grau de concentração que nem sequer ouve o telefone, ou a campaínha, ou as minhas perguntas preocupadas. Nunca me consegui habituar; acabei por cessar unilateralmente o meu contrato. Não sei se ela sente a minha falta.»;

7. sob a influência de Anaxágoras, também ela postula uma pluralidade de elementos individuais imperecíveis, a partir dos quais surgiu toda a ordem. Por vezes acha que é impossível distinguir esses elementos uns dos outros, sensação que se agrava na Primavera;

8. no restaurante onde o corpo editorial do New York Times mastiga as suas sorumbáticas reuniões semanais, Michiko lê a seguinte mensagem num bolinho da sorte: «Há uma frase, e apenas uma, que a pode salvar; está escrita a lume, no interior das suas pálpebras, a soma ardente de todas as coisas que nunca aprendeu. Se abrir os olhos diante de um espelho, poderá discernir o clarão da verdade a sumir-se para sempre pelo tecto». Depois da sobremesa, dobra meticulosamente a tira de papel, camuflando-a entre os destroços da melancia;

9. Michiko Kakutani é solteira.

Sem comentários: