quinta-feira, janeiro 25, 2007

Hoje ouve-se


Lost in a Roman wilderness of pain
And all the children are insane
All the children are insane
Waiting for the s...
for the s...
for the s...


- The Doors, «The End», The Doors (1967)

(Quando tinha 13 anos, no auge da minha curta enfatuação com os Doors, o filme de Oliver Stone estreou na RTP. Por motivos que não recordo, e que não vêm ao caso, passei essa noite em casa dos meus avós, e consegui, graças a uma combinação de feroz diplomacia e despudorada chantagem emocional, negociar uma inédita sessão televisiva nocturna.
O que aconteceu é algo previsível (eram os dias de leite e rosas da pré-insónia): adormeci antes de o filme começar. O factor-surpresa foi a minha avó, que fez questão de o ver do princípio ao fim, provavelmente porque eu, na minha febril campanha, tinha feito Jim Morrison passar por uma espécie de Dr. Schweitzer com laivos de António Calvário, o que lhe deve ter aguçado a curiosidade. Na manhã seguinte, entre torradinhas queimadas, perguntei-lhe o que tinha achado e ela, olhando-me com incontida censura, respondeu: "Aquele moço era um grande mafarrico".
É bastante fácil fazer pouco dos Doors. Vamos, portanto, ceder à tentação, e fazer pouco dos Doors. Começando pela música, que nos piores momentos lembra a banda sonora de um soft-porn oitentista. Alguns dos arranjos são perturbantemente parecidos com as batidas pré-definidas que vinham na memória daqueles órgãos Casio que as madrinhas tinham o hábito de oferecer antes de os pares de meias e agendas terem estendido o seu inexplicável domínio satânico sobre todas as ocasiões especiais.
Mas é claro que o pior não é isso. Os Doors têm o condão de sublimar o pior da adolescência: o pretensiosismo isolado, a pose torturada, a solenidade labrega. Ninguém está imune. A primeira vez que fui a Paris, em '95, passei a obrigatória tarde no Pêre Lachaise, e pousei para a lamentável fotografia da praxe diante da campa do artista. Está lá tudo: a cabeleira farta, o rosto sisudo, as roupas pretas, colar índio comprado na feira e até (juro) o livro de Rimbaud na mão direita. Só não tenho uma tabuleta ao pescoço a dizer "Palhaço" porque esta seria, com toda a franqueza, redundante.
Dito isto, há muito para recomendar na obra dos Doors. E convém lembrar que o grupo saiu de um meio - musical, social e geográfico - invulgarmente predisposto ao ridículo. É possível descortinar algum valor retro-kitsch em muita da psicadelia hippie da segunda metade dos anos '60, mas experimentem sujeitar as vossas sensibilidades modernas a «Atlantis» de Donovan ou às piores coisinhas dos Jefferson Airplane. Em comparação com "My antediluvian baby, oh yeah", a fantasmagoria carnavalesca dos Doors - as cenas esquisitas dentro da mina de ouro - parecem não apenas originais como positivamente benéficas e conducentes à Paz Universal.
Mas se precisarem de um motivo adicional para voltar a ouvir «The End», o Pastoral Portuguesa está aqui para ajudar. Coloquem o cd na aparelhagem (não funciona com Real Audios nem I-pods) e deixem a faixa correr até ao minuto 3:31, em que Morrison inicia o verso "Waiting for the summer rain"; quando ouvirem o sibilar do primeiro 's' de 'summer', primam ao de leve o botão rewind, soltando-o logo de seguida, repetindo novamente o processo assim que voltarem a ouvir o 's'. Não é difícil apanhar o jeito, e assim que o conseguirem, terão o privilégio de ouvir, no conforto do vosso lar, o Rei Lagarto, o Batman, esse grande mafarrico, gritar um portuguesíssimo 'foda-se' num loop contínuo. God is in the details.)

3 comentários:

Miguel G Reis disse...

Caro Rogério, abaixo assinado. Eu, por acaso, não adormeci e vi o filme. Foi o meu primeiro contacto com a musica dos Doors e fiquei fã até hoje.
Como diz, God is in the details!

Abraço
Miguel

Anónimo disse...

AHAHAH! Excelente.

Viva os Pink Floyd!

Pedro Ludgero disse...

Há sempre qualquer coisa que redime na palhaçada do palhaço. Espero que o seu afastamento das idiotices da adolescência não o tenha afastado de Rimbaud.