Rafael Nadal custou-me cinquenta libras, mas não o posso culpar. Foi uma aposta puramente sentimental - o pior tipo de aposta que se pode fazer - e uma que sabia de antemão estar condenada ao fracasso; o grunhido derrisório do corrector da William Hill assumiu a eloquência necessária. Por motivos geográficos, acompanhei a carreira de Andy Murray mais de perto do que a de qualquer outro tenista contemporâneo, e sabia que, salvo uma desastrosa sucessão de erros por parte de Nadal, a vitória seria impossível.
Os motivos geográficos são auto-explanatórios; os emocionais são estes: Murray tem a personalidade mais interessante do ténis actual. Depois da década de sublimação da mediocridade que foi o bafiento reinado de Tim Henman (esse Kevin Costner das raquetes) Murray foi a melhor coisa que poderia ter acontecido à Grã-Bretanha - uma espécie de bálsamo em reverso, fazendo o oposto de tudo o que um bálsamo deve fazer.
Por temperamento e por experiência, sou um céptico quanto à existência real de identidades nacionais, mas tenho de admitir que a feroz Scottishness de Murray é a chave desse interesse: o equilíbrio precário entre self-love e self-loathing, as puras reacções de menino mimado (a rábula da lesão dorsal no segundo set contra Nadal é uma performance que ele repete ciclicamente, sempre que está a perder), e um instinto auto-destrutivo que parece, infelizmente, estar a ser cerceado. Em 2006, duas semanas antes de Wimbledon, onde iria jogar perante uma plateia sedenta de um ídolo local sem chispes de argila, Murray informou casualmente um jornalista que ira torcer por todas as equipas que jogassem contra Inglaterra no Mundial. Três milhões de escoceses aplaudiram furiosamente, mas o rapport com as multidões de Wimbledon nunca mais foi o mesmo.
Mas agora, o manto diáfano das Relações Públicas parece ter sido estendido sobre a sua cabecinha quente; Murray comporta-se - nas conferências de imprensa, pelo menos - como alguém submetido a uma cura intensiva de chás e xaropes. Conseguiu até exibir alguma graciosidade na derrota, algo que - chamem-me sentimental - é a última coisa que eu quero ver num atleta profissional. O mínimo que se exige é que insultem genericamente a Humanidade depois do match point e se recusem a falar ou a apertar a mão ao adversário, mostrando às câmaras apenas um par de olhos vermelhos. (No melhor dos mundos possíveis, o derrotado nas finais do Grand Slam arrebataria o troféu das mãos do organizador e fugiria na direcção dos balneários gritando "You'll never catch me alive!")
Há quem diga que Murray precisa de canalizar a sua agressividade. Há quem diga que Murray precisa de um treinador diferente. Há quem diga que Murray precisa de mais chá e mais xaropes. Pessoalmente, acho que Murray precisa de menos pessoas a dizerem-lhe o que ele precisa, e de soltar o hooligan de Glasgow dentro de si. Apesar de ser tecnicamente muito bom, nunca será o nº1; mas caso não cometa o erro de se civilizar, pode ser o top-ten mais entusiasmante dos últimos anos.
No lado oposto do espectro está Federer, que parece cada vez mais jogar com o auxílio de dois gnomos invisíveis, um em cada metade do court. Aqueles forehands a pingar, que mudam de trajectória três centímetros antes da linha, são altamente perturbantes, de um ponto de vista metafísico. No séc. XXI é possível aplicar-lhes úteis e giríssimos gráficos computorizados, e explicar tudo de forma a que até os leigos consigam entender o que se passa, mas não tenho dúvidas de que há quinhentos anos atrás, o Suiço seria queimado numa gigantesca fogueira. A plateia entoraria em coro "Burn, witch, burn" enquanto a camada exterior de cera derreteria lentamente, até não restar nada sobre a pilha de carvões fumegantes a não ser um inexpugnável coraçãozinho metálico, com a inscrição SADI CARNOT, Inc.
Dois comentários espontâneos ajudaram a definir com precisão o que foi o Open. Primeiro, a eloquente sinopse teológica que Roddick fez da situação, no 3º set das meias-finais, depois de ter sido escrupulosamente demolido na meia-hora de ténis mais sobrenatural que eu vi na minha vida: «Goddamn everything, it's all God damn it».
O outro foi fornecido por um comentador da BBC durante a final, quando o ombro de um cabisbaixo González era massajado pelo seu treinador: «Oh, he looks, uh, González there, looking very uncomfortable with some sort of, uh, discomfort».
O desconfortável desconforto do resto da Espécie, perante a anomalia não-transpirante, gelidamente sentada na outra cadeira.
Os motivos geográficos são auto-explanatórios; os emocionais são estes: Murray tem a personalidade mais interessante do ténis actual. Depois da década de sublimação da mediocridade que foi o bafiento reinado de Tim Henman (esse Kevin Costner das raquetes) Murray foi a melhor coisa que poderia ter acontecido à Grã-Bretanha - uma espécie de bálsamo em reverso, fazendo o oposto de tudo o que um bálsamo deve fazer.
Por temperamento e por experiência, sou um céptico quanto à existência real de identidades nacionais, mas tenho de admitir que a feroz Scottishness de Murray é a chave desse interesse: o equilíbrio precário entre self-love e self-loathing, as puras reacções de menino mimado (a rábula da lesão dorsal no segundo set contra Nadal é uma performance que ele repete ciclicamente, sempre que está a perder), e um instinto auto-destrutivo que parece, infelizmente, estar a ser cerceado. Em 2006, duas semanas antes de Wimbledon, onde iria jogar perante uma plateia sedenta de um ídolo local sem chispes de argila, Murray informou casualmente um jornalista que ira torcer por todas as equipas que jogassem contra Inglaterra no Mundial. Três milhões de escoceses aplaudiram furiosamente, mas o rapport com as multidões de Wimbledon nunca mais foi o mesmo.
Mas agora, o manto diáfano das Relações Públicas parece ter sido estendido sobre a sua cabecinha quente; Murray comporta-se - nas conferências de imprensa, pelo menos - como alguém submetido a uma cura intensiva de chás e xaropes. Conseguiu até exibir alguma graciosidade na derrota, algo que - chamem-me sentimental - é a última coisa que eu quero ver num atleta profissional. O mínimo que se exige é que insultem genericamente a Humanidade depois do match point e se recusem a falar ou a apertar a mão ao adversário, mostrando às câmaras apenas um par de olhos vermelhos. (No melhor dos mundos possíveis, o derrotado nas finais do Grand Slam arrebataria o troféu das mãos do organizador e fugiria na direcção dos balneários gritando "You'll never catch me alive!")
Há quem diga que Murray precisa de canalizar a sua agressividade. Há quem diga que Murray precisa de um treinador diferente. Há quem diga que Murray precisa de mais chá e mais xaropes. Pessoalmente, acho que Murray precisa de menos pessoas a dizerem-lhe o que ele precisa, e de soltar o hooligan de Glasgow dentro de si. Apesar de ser tecnicamente muito bom, nunca será o nº1; mas caso não cometa o erro de se civilizar, pode ser o top-ten mais entusiasmante dos últimos anos.
No lado oposto do espectro está Federer, que parece cada vez mais jogar com o auxílio de dois gnomos invisíveis, um em cada metade do court. Aqueles forehands a pingar, que mudam de trajectória três centímetros antes da linha, são altamente perturbantes, de um ponto de vista metafísico. No séc. XXI é possível aplicar-lhes úteis e giríssimos gráficos computorizados, e explicar tudo de forma a que até os leigos consigam entender o que se passa, mas não tenho dúvidas de que há quinhentos anos atrás, o Suiço seria queimado numa gigantesca fogueira. A plateia entoraria em coro "Burn, witch, burn" enquanto a camada exterior de cera derreteria lentamente, até não restar nada sobre a pilha de carvões fumegantes a não ser um inexpugnável coraçãozinho metálico, com a inscrição SADI CARNOT, Inc.
Dois comentários espontâneos ajudaram a definir com precisão o que foi o Open. Primeiro, a eloquente sinopse teológica que Roddick fez da situação, no 3º set das meias-finais, depois de ter sido escrupulosamente demolido na meia-hora de ténis mais sobrenatural que eu vi na minha vida: «Goddamn everything, it's all God damn it».
O outro foi fornecido por um comentador da BBC durante a final, quando o ombro de um cabisbaixo González era massajado pelo seu treinador: «Oh, he looks, uh, González there, looking very uncomfortable with some sort of, uh, discomfort».
O desconfortável desconforto do resto da Espécie, perante a anomalia não-transpirante, gelidamente sentada na outra cadeira.
2 comentários:
Não se pode dizer que Tim Henman tenha reinado no ténis mundial. Se aquilo foi reinado, foi curtinho. Sampras, sim, foi um reinado medonho, feito ases esses sim bafientos. Talvez o rei do ténis mundial mais desajeitado de sempre: em força, sem técnica, sem rede (e sem grande fundo, também). Um jogador mediano com um grande serviço e uma força mental e física extraordinárias.
Quando falei no reinado do Henman estava a falar de um reinado de popularidade a restringi-lo aqui à monarquia local: a imerecida devoção que ele recebeu dos britânicos durante os tais dez anos.
Mas, em boa verdade, eles não tinham mais ninguém para aplaudir.
Enviar um comentário