terça-feira, fevereiro 20, 2007

39º

A medicina - nas suas variantes mainstream e alternativa- deixou-me, mais uma vez, ficar mal. Um amigo escocês, a estudar para ser médico, disse-me gravemente que o meu sistema imunitário é uma anedota, e que eu preciso de adicionar mais zinco à minha dieta. Uma tia portuguesa aconselhou-me a pendurar o rosto por cima de uma tigela com água a ferver, até "sentir a maleita evaporar".
Amizade e família, leitor; estas são as nossas bases.
Num sentido, pelo menos, o meu amigo está errado: o meu sistema imunitário não é uma anedota. Na verdade, é capaz de ser o sistema imunitário com o pior sentido de humor do planeta. Os meus linfócitos comportam-se como descendentes de João Calvino: não há três horas de divertimento que não sejam invariavelmente punidas com três dias de inferno viral.
Com uma febre alta e constante, e duas noites seguidas sem dormir, achei que estavam reunidas as condições ideais para me sentar novamente em frente a um televisor ligado.
No Channel 5, Batman Returns. Desenvolvi nos últimos anos a seguinte teoria: Tim Burton é uma fraude e qualquer filme seu - com a excepção de Beetlejuice - tem tendência a piorar consideravelmente de cada vez que o vimos, mas neste caso senti-me tentado a dar-lhe o benefício da dúvida, e a apontar o dedo acusador ao responsável pela montagem. Burton deve ter rodado película suficiente para uma comédia genial e para um fétido e fumegante petit-guignol; o editor tramou-o e misturou tudo. Talvez a hora tenha coincidido com o período de maior febre (eventuais delírios, etc.) mas fiquei convencido de que deixas como «Perhaps when I held my Tiffany baby rattle with a shiny flipper, and not five chubby digits, they freaked», diálogos como « 'He's like a frog that became a prince.' 'No, he's more like a penguin.' », ou cenas como aquela em que Danny DeVito informa histericamente uma plateia de simpáticas aves palmípedes de que «Male and female ... hell, the sexes are equal with their erogenous zones blown sky-high» mereciam um filme melhorzinho.
Pequeno zapping para apanhar o Gladiator, que revi pela primeira vez desde que estreou nas salas de cinema. Gostei mais agora. O esqueleto da história, que é tão antigo como a Literatura (homem quer regressar a casa depois de uma guerra e não o deixam) é suficientemente forte para sustentar algum diálogo esfarrapado. Foi algo desconcertante ver o Johnny Cash, com uma coroa de louros na cabeça, a ser tão mau para as pessoas. Ele próprio termina o filme bastante mal tratado, mas já depois da queda do Império, o venerável Rickus Rubinus viria a reabilitá-lo. Final feliz também para ele.
A noitada acabou - e a febre finalmente baixou - com um documentário sobre W. H. Auden. Os documentários das televisões britânicas sobre romancistas ou poetas são invariavelmente bem pesquisados e bem escritos, mas pecam pelo uso abusivo do mais irritante recurso audiovisual que conheço: a "reconstituição". A "reconstituição" resume-se a isto: um actor baratucho e desconhecido pavoneia-se de um lado para o outro tentando parecer pensativo (olhando, para este efeito, através de uma janela, enquanto segura um lápis) ou atormentado (rasgando/queimando papéis, ou insultando Deus/os elementos através da mesma janela através da qual já olhou pensativamente segurando um lápis). Este documentário evitou a farsa, porque teve a sorte de poder recorrer a extensivas imagens de arquivo, algumas delas inéditas.
O rosto de Auden, familiar das fotografias a preto e branco, parece outra coisa, em movimento e a cores. Parece, aliás, merecer um documentário próprio; nunca tinha visto tantas rugas em coexistência pacífica num espaço tão exíguo.
Uma legenda informa o espectador de que a entrevista foi gravada em Londres, nos anos 60, mas era possível adivinhar a antiguidade do fragmento mesmo antes de ver o corte dos casacos ou o padrão da alcatifa do estúdio: entrevistador e entrevistado seguravam (entre dedos esplendidamente encardidos) dois cigarros sem filtro, que fumaram com brio ao longo da meia-hora seguinte
Espero que os futuros actores do Reino tenham estado atentos, e tirado notas: Auden não mostrou muita vontade em parecer pensativo ou atormentado. A dada altura, o entrevistador discorreu longamente sobre um dos poemas juvenis de Auden sobre a Guerra Civil de Espanha. Este esperou que ele terminasse, piscou os olhos e disse: «Well, frankly, no. Nearly everything that you have just said is rubbish.»
E depois de um ataque de tosse de quatro estrofes, explicou-lhe pacientemente porquê.

2 comentários:

MANHENTE disse...

Concordo plenamente: a reconstituição cinematográfica, geralmente, para além ser pouco fidedigna, é castradora da imaginação. Contrariamente, cada vez menos se convida o espectador à descoberta através de vários tipos de sugestões/ dados reais. - Uma das maiores lacunas do audiovisual.

André Moura e Cunha disse...

Meu caro,
Falas bem de um dos meus ódios de estimação, o inefável Tim Burton. O homem até pode realizar uma obra-prima que eu, no meus estilo Waldorf & Statler, negarei qualquer virtude. Depois, até já vejo o Pedro Abrunhosa com uma cabeleira despenteada (será o seu doppelganger?) na sua melodiosa voz roufenha com pronúncia cá do burgo, a fazer a sua vez num documentário: [ar pensativo, súbito espasmo]: Eureka!
Encontrei a frase para o joker: "The pen is truly mightier than the sword".
Como já me esqueci da primeira acção do proverbial conselho "avinha-te e abafa-te".
As melhoras,
André