domingo, maio 27, 2007

Venho por este meio espojar-me humildemente aos santos pés de Pipi Romagnoli

«Ganhar a Taça é como ganhar a Liga» - epigrama de Paulo Bento, que deveria ser imediatamente transformado em graffiti e espalhado por todo o país (o epigrama, e não Paulo Bento, cuja actual composição química e estado físico indivisível este blogue aprova inequivocamente).

Parecem-me mais ou menos evidentes os motivos pelos quais o Sporting Clube de Portugal venceu hoje (peúgas, chuva, Fátima, cachecol da sorte, lesão do Amaral, comentários abertos na Causa, problema dorsal do meu melhor amigo, etc), pelo que me vou abster de os explicar aqui.
A minha maior preocupação dos últimos tempos (superando, neste aspecto, até o enredo complicadíssimo do livro policial que ando a ler) era saber como iria a equipa reagir quando fosse finalmente confrontada com a inevitabilidade de não marcar um golo praticamente antes de o jogo ter começado. Noventa minutos de domínio intelectual confirmaram o descabimento do receio; nenhum dos adolescentes em campo deixou acumular as tensões de décadas que assombram o vulgar adepto, continuando todos a tratar o resto do jogo como se o senhor árbitro tivesse acabado de apitar para o rola-bola, independentemente de certas acções atrevidas de jogadores do Belenenses, inexplicavelmente alheios à superioridade metafísica do oponente. Os nervos, esses, estavam todos nas bancadas. (Uma situação que revela curiosos paralelos com o referido livro: Ellery Queen cheio de paciência metafísica, e eu a roer as unhas do lado de fora das páginas, tentando perceber se a incongruência no horário dos comboios no capítulo VII é relevante ou mero erro tipográfico).
O resultado é justíssimo, e a nação sportinguista poderá agora dedicar-se a uma preocupação racional e muito mais urgente: a permanência de Leandro Atilio Romagnoli. O ritual estival mantido por sucessivas direcções ao longo dos anos repetir-se-á: um vice-presidente virá para os jornais falar de "contenção financeira" e o desgraçado do rapaz regressará ao México, sendo prontamente substituído por um internacional "B" peruano emprestado por um clube austríaco, após recomendação de um cunhado de Carlos Janela. Aviso desde já que estarei indisponível para campanhas que envolvam NIBs e slogans embaraçosos ("Fica Pipi!"), mas não queria deixar de salientar que se a porção do orçamento para esta temporada empregue nos obscenos salários do não menos obsceno Alecsandro e do verdadeiramente pornográfico Carlos Bueno tivesse sido investida nos cavalinhos Slim Pickings (Grand National) e Dun Doire (Cheltenham), os retornos teriam sido mais do que suficientes não apenas para garantir a continuidade de Romagnoli até ao final da sua trágica carreira, mas também para trazer mais três ou quatro internacionais argentinos.
(Dr. Soares Franco, a Royal Ascot é na terceira semana de Junho. Seja inteligente. Pergunte-me como.)
Parece-me também cada vez mais óbvio que o Sporting conseguiu, por meios certamente sobrenaturais, instaurar um sistema táctico-dinâmico perpétuo, que é independente do treinador, e que está directamente relacionado com as características do seu centro-campista dominante. O Sporting de Rochemback (nunca houve um "Sporting de Peseiro", e gostaria, aliás, de não voltar a ler nem a ouvir essa caluniosa expressão) movia-se com a graça e acutilância dos elefantes de Aníbal. Era uma tropa pesadona e lenta - muita mais física que esta -- cujo famoso losango se dedicava a fabricar um tecido ininterrupto de toma-lá-dá-cás, na esperança de que, mais tarde ou mais cedo, o adversário ficasse tão encantado com a coisa que escancarasse os Pirinéus. E Rochemback e Pedro Barbosa, além de quatro colecções de tarsos e metatarsos como já não se fazem, tinham a vantagem de possuír arcaboiços normalmente associados com grandes mamíferos, que lhes permitiam caminhar por ali cheios da paciência que o público ingrato raramente tinha, rodopiando e atropelando gente com sucessivas cargas de ombro, até que fosse possível prosseguir a jogada sem envolver o Custódio.
Já o Sporting de hoje - além de ser abençoado com o melhor 'trinco' português desde Paulo Sousa - é indiscutivelmente o Sporting de Romagnoli. O sacrossanto losango é o mesmo, mas o bicho é diferente, com menos afinidade com elefantes do que com uma praga de gafanhotos bíblicos. Rochemback atropelava romanos, e parecia mais pesado do que era; Romagnoli esvoaça entre eles, e parece mais pessoas do que é (é apenas um, tomei o cuidado de verificar). Vi muito poucos jogos completos esta época, mas parece-me que a jogada-padrão aperfeiçoada pelo Sporting é arranjar maneira (não sei como) de colocar Romagnoli sozinho numa das quinas da área, sem qualquer adversário num raio de cinco metros. Isto acontece vezes sem conta, e o adversário nunca aprende (nem eu). Romagnoli, com a bola nos pés, é tão bom como os melhores médios estrangeiros que vi jogar no Sporting (Balakov, Rochemback e, respirar fundo, Roberto Assis). Mas sem bola, é melhor que todos eles.
E pelo tal sobrenatural processo de osmose, a própria equipa parece adaptar-se à essência de Romagnoli. O losango de Rochemback era gordo, lento, tecnicamente perfeito, rematava bem de longe e dividia o seu tempo entre esmagar equipas por 4 ou 5-0 e perder com clubes dolorosamente inferiores, sempre com 80% de posse de bola. O losango de Pipi é pequenito, móvel, tecnicamente perfeito, só domina no máximo metade do tempo de jogo útil, e não sabe chutar à baliza, mas a brincar, a brincar, já ganhou uma Taça de Portugal, o que é precisamente um título a mais do que os conquistados pelo losango de Rochemback.
Por tudo isto, e por mais uma série de motivos que as lágrimas nos olhos me impedem de desenvolver, sugiro as seguintes prioridades para 2007/08: contratem Romagnoli por tudo quanto ainda é sagrado neste mundo cão. Contratem um guarda-costas para o impedir de fumar durante as folgas. Contratem um cardiologista para o acompanhar a partir da linha lateral sempre que o jogo passar dos 60 minutos. Contratem o João Cutileiro para lhe fazer a estátua que ele merecerá no final da época.

(E, já agora, façam regressar o Varela do deserto espiritual da Margem Sul para onde o baniram. Se o Varela tem começado o jogo de hoje no lugar de Alecsandro, o Sporting teria falhado pelo menos doze oportunidades claras antes do intervalo, em vez daquelas parcas três ou quatro.)


(Adenda com olhitos semi-secos: uma pequena observação sobre Nani, que empena um pouco a teoria, já que, pelas suas características, tem muito mais em comum com o "losango Rochemback" do que com o "losango Pipi". Estarei aqui para comer estas doutas palavras, caso isso se prove necessário, mas creio que Nani nunca terá sequer o sucesso de Quaresma (falta-lhe a precisão no cruzamento e remate) ou de Simão (falta-lhe um clube dependente dele), quanto mais o de C. Ronaldo (falta-lhe a potência) ou de Figo (falta-lhe tudo). Mas parece-me que, com o acompanhamento certo, Nani poderá, em vez dessa coisa quase banal nestes tempos Alcochetianos que é ser o novo Figo ou o novo Ronaldo, ser uma coisa muito mais rara, e muito mais benéfica para a Humanidade em geral: o novo Pedro Barbosa. Para isso, e para uma longa carreira de mártir, atraíndo a parcela maior dos injustos e irritantes assobios dos sócios, só precisa de se libertar do vício de fazer aqueles arranques idiotas, dos quais só 10% têm conclusão satisfatória. Para correr está lá a bola. E o Abel Hargreaves...)

3 comentários:

tlpg disse...

Excelente. Ah, e é preciso não deixar fugir o Custódio porque, no dia em que ele se for embora, o Sporting fica uma equipa muito melhor e deixa de ser o Sporting, com todo o tipo de textos e piadas que isso acarreta.

Um abraço,
Tiago.

António Pista disse...

Antes de mais parabéns pelo blog!
Convido-o agora a visitar:

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Futebol e política num só!

Anónimo disse...

Análise (quase) perfeita. Estive perto da lágrima em duas momentos: a menção a Roberto Assis (saudade) e à estratégia de corrida para comprar o nosso Pipi. O Nani acabou de assinar pelo clube mais certo que podia ter escolhido e Inglaterra corre o risco de ter uma equipa maravilha para o ano. Abraço!