«Por exemplo, se sair uma combinação ganhadora depois de um período em que não saiu nada, é provavel que nas dez jogadas seguintes essa combinação saia mais uma, duas ou três vezes (é o chamado “chorrilho”). Também é importante deixar a máquina descansar. As pausas de cinco a dez minutos tornam-na mais generosa. Por isso, ganha-se eficácia ao jogar em duas ou mais ao mesmo tempo. É, ainda, uma máquina com que se pode ter um diálogo mental. Já estou com saudades.»
(ENP, n'A Sexta Coluna)
À primeira leitura julguei que isto era um daquelas analogias codificadas sobre relações, nas quais a Laura Abreu Cravo se especializa, mas depois confirmei, não sem uma pontinha de desapontamento ("As pausas de cinco a dez minutos tornam-na mais generosa", enfim, isto tinha algum potencial eufemístico-analógico por espremer, já para não falar na noção exageradamente optimista de que se ganha "eficácia ao jogar em duas ou mais ao mesmo tempo"), que o Eduardo estava mesmo a escrever sobre fruit-machines. O meu veneno é muito outro, e até serei o primeiro a admitir que Monte Carlo e Blackpool orbitam em planetas diferentes, mas queria deixar aqui uns retalhos de cautionary tale. É que a minha experiência não tem nada a ver com aquilo.
Por exemplo, se sair uma combinação ganhadora depois de um período em que não saiu nada, é provável que o beneficiário não seja eu, mas sim um oriental baixinho, sorridente e seco de carnes, que ocupou o meu lugar depois de eu ter ido buscar um guardanapo para fazer taciturnos cálculos a lápis. E se, nas dez jogadas seguintes, essa combinação sair mais uma, duas ou três vezes, é provável que eu não dê por isso, ocupado que estarei a consolar um amigo com um orifício no bolso das calças superior à dívida externa de Moçambique, e o cartão de débito do Lloyd's aprisionado nas entranhas da ATM do casino. E, se houver diálogo, este não será mental, mas violentamente físico. E se houver saudades, será da escola primária, e do jogo do galo.
(ENP, n'A Sexta Coluna)
À primeira leitura julguei que isto era um daquelas analogias codificadas sobre relações, nas quais a Laura Abreu Cravo se especializa, mas depois confirmei, não sem uma pontinha de desapontamento ("As pausas de cinco a dez minutos tornam-na mais generosa", enfim, isto tinha algum potencial eufemístico-analógico por espremer, já para não falar na noção exageradamente optimista de que se ganha "eficácia ao jogar em duas ou mais ao mesmo tempo"), que o Eduardo estava mesmo a escrever sobre fruit-machines. O meu veneno é muito outro, e até serei o primeiro a admitir que Monte Carlo e Blackpool orbitam em planetas diferentes, mas queria deixar aqui uns retalhos de cautionary tale. É que a minha experiência não tem nada a ver com aquilo.
Por exemplo, se sair uma combinação ganhadora depois de um período em que não saiu nada, é provável que o beneficiário não seja eu, mas sim um oriental baixinho, sorridente e seco de carnes, que ocupou o meu lugar depois de eu ter ido buscar um guardanapo para fazer taciturnos cálculos a lápis. E se, nas dez jogadas seguintes, essa combinação sair mais uma, duas ou três vezes, é provável que eu não dê por isso, ocupado que estarei a consolar um amigo com um orifício no bolso das calças superior à dívida externa de Moçambique, e o cartão de débito do Lloyd's aprisionado nas entranhas da ATM do casino. E, se houver diálogo, este não será mental, mas violentamente físico. E se houver saudades, será da escola primária, e do jogo do galo.
Mas isto são pormenores, insignificantes pormenores. Um facto que importa reter: a única petição que assinei na vida foi dirigida à entidade que regula as fruit-machines no Reino Unido (Campanha Fairplay, 2003). Esta ocasião de intervenção cívica é algo de que me orgulho bastante*. Ajudei a mudar uma lei perversa. E tu, que me lês, já ajudaste a mudar alguma lei perversa?
Outro facto a reter: o indivíduo com maior sentido empresarial que eu conheço é um natural das ilhas Orkney que se mudou para Edimburgo, alugou uma superfície comercial mesmo ao lado do casino, e abriu uma loja de penhores. Em menos de um ano, já tinha mudado de carro, de casa e de esposa, para além de ter acumulado uma respeitável colecção de aquários. Em situações de crise financeira, disse-me ele, o peixinho dourado é sempre a primeira vítima.
(*Também me orgulho muitíssimo da minha atitude numa situação mais recente, que pode parecer, ao leitor mais organizado, pertencer a um post diferente: ontem à noite, na fila para os táxis no Cais do Sodré - 50 ridículos minutos de espera - um turista americano passou uma eternidade a queixar-se dos calos nos pés, mergulhando indecorosamente no detalhe clínico específico (aprendi uma palavra inglesa nova: 'glabrous'). Revelando enorme empatia, acabei por me abrir com ele, confessando os meus problemas gástricos, a minha insónia crónica, e a minha mágoa por não ser um romancista judeu de 80 anos, com milhares de dólares em pensões alimentícias para pagar. A diferença que essa condição em particular provocaria na minha rotina diária é algo que apenas posso imaginar com um brilho nos olhos.)
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