Under the Volcano é o «livro da vida» de muita gente. Não será o meu, porque essa posição está muitíssimo bem ocupada, mas admito perfeitamente que pudesse ser, caso lhe tivesse chegado um pouco mais cedo, ou um pouco mais tarde. Tenciono confirmar as memórias difusas que dele tenho nos próximos dias (não lhe pego há quase dez anos); na altura, essa experiência adolescente representou uma turbulenta dilatação das possibilidades da literatura: a ideia de que um livro podia ser um enorme tecido alusivo, remetendo continuamente para precedentes, referenciando tanto a high como a low art; e a revelação (na altura) de que era possível escrever quatrocentas páginas lúcidas sobre uma broega infinita, em que muito pouca coisa acontece fora da consciência do protagonista.
A edição da HarperCollins - cuja capa se pode admirar três posts abaixo - é bastante recomendável. (Os livros com esta chancela têm várias vantagens, das quais destaco duas: uma boa relação peso-volume, que julgo dever-se ao tipo de cola utilizada, e uma encadernação extraordinária que permite manter o livro aberto durante a refeição sem a necessidade de recorrer a contrapesos, e sem afectar a sua integridade).
Vem também acompanhada de uma introdução inconstante e algo repetitiva de Stephen Spender, que denuncia irremediavelmente a sua vetustez (o texto é de 1965) com esta infeliz sugestão: «Someone should write a thesis on the influence of cinema on the novel». Quarenta anos depois, é possível navegar até ao México numa jangada construída com este tipo de teses.
Spender recolhe alguns aplausos da plateia quando tenta evitar a preguiçosa inclusão do romance numa tradição modernista específica dos anos 20 e 30, mostrando como a complexa utilização de mitos e símbolos por parte de Lowry é radicalmente diferente da de Joyce, Eliot ou Faulkner, mas deita tudo a perder quando recorre aos mais estafados lugares-comuns para explicar o horror que Lowry tinha à sobriedade. «The real cause of alcoholism is the complete baffling sterility of existence as sold to you». A frase é de Lowry, mas podia ser de qualquer outro bêbedo eloquente, meia-hora antes de ser corrido do bar. Spender engole o isco, a linha, o anzol, e ainda lança olhares gulosos à cana de pesca: «...Lowry anticipates later artists - Jackson Pollock, for example - self-involved yet selfless, intoxicated yet wholly lucid, drinking themselves into sobriety, who in their very excesses seem to acquire some quality of saintliness, as though undergoing what in others might appear to be vices, for the sake of the rest of us». A tese, portanto, é esta: Lowry, e outros mártires de taberna, enfrascavam-se não por eles, mas pelos pecados da humanidade. Uma ideia suficientemente lunática para induzir no leitor um desejo irreprimível de ir até ao bar mais próximo martirizar-se um bocadinho.
O que levou Lowry a vomitar órgãos internos em metade dos tascos do hemisfério norte não foi um qualquer complexo messiânico, mas sim a mesma pulsão masoquista que sempre coordenou a sua biografia. E parece-me igualmente evidente que se Lowry tivesse combatido a "esterilidade da existência" através do consumo compulsivo de amendoins ou da ocasional partidinha de canasta, as lombadas com o seu nome nas livrarias do mundo seriam muito mais numerosas, aí sim, com incontornáveis benefícios para a humanidade.
O livro esteve disponível na Fnac do Chiado pela muito razoável quantia de doze euros e cinquenta e seis cêntimos, mas eu comprei o último exemplar e trouxe-o para a margem Sul, o que não augura nada de bom para vocês, os privilegiados, os felizes, os do lado de lá.
(A propósito do mórbido alcoolismo de Lowry, uma teoria alternativa foi ensaiada por Martin Amis, num dos parágrafos mais cómicos da sua carreira:
«Dipsomaniacs are either born that way, or they just end up that way. Vastly distinguished in the sphere of dipsomania, Malcolm Lowry, it seems, actually planned to be that way, from childhood. The gift was not inherited. In an early short story the narrator records his (Methodist) father"s disapproval of a local lawyer, who lacked "self-discipline"."He did not know," Lowry wrote, "that secretly I had decided that I would be a drunkard when I grew up." While most schoolboys dreamt of becoming engine-drivers or cattle-punchers, little Malcolm dreamt of becoming an alcoholic. And the dream came true. Excluding a few dry-outs, in hospitals and prisons, and the very occasional self-imposed prohibition, Malcolm Lowry was shitfaced for thirty-five years.»
O texto está incluído na colecção The War Against Cliché)
5 comentários:
E edições portuguesas das obras do pynchon? onde é que uma pessoa bem-intencionada, do lado de cá do deserto, encontra?
cris
Por curiosidade: qual é o livro da tua vida?
Francisco Alves
O mesmo Was against cliché que ficaste de me emprestar há meses? (suspiro)
xodades....
Anónimo Cris: os dois primeiros livros estão traduzidos, e são tão fáceis de encontrar como dois bons ovos de páscoa. (Obrigadinho por aquilo do lion-tamer).
Anónimo Alves: chama-se Herzog.
Anónima Rinhau: apesar de a história até me parecer plausível, eu não me lembro de nada disso. Mas pode ser que o leve quando for até ao sítio.
Rogério, deixei há tempos um link no meu blogue para um artigo sobre escritores e alcoolismo:
http://www.unhooked.com/sep/writers.htm.
tenho algumas opiniões sobre essa relação, mas limito-me a dizer que não concordo muito com «se Lowry tivesse combatido a "esterilidade da existência" através do consumo compulsivo de amendoins (...) as lombadas com o seu nome nas livrarias do mundo seriam muito mais numerosas, aí sim, com incontornáveis benefícios para a humanidade.
»
Talvez fossem mais numerosas mas seriam melhores ou um benefício melhor para humanidade? O paradigma disto, para mim, é Bukowski, que não existiria sem o seu alcooliso. Mas mesmo Jack London ou Hemingway, em que o tema nem sequer aparece assim tanto, pelo menos em obras emblemáticas dos mesmos, não seriam os mesmos sem o alcoolismo. Para compreender o estado "febril" de uma existência autodestructiva e decadente, e também do seu oposto (a existência pura e feliz) talvez seja preciso sentir ambas. Dostoiévski é um exemplo, mas há milhares.
Acho que alcoolismo é predominante nos escritores porque a escrita é uma actividade predominante num certo tipo de pessoas, mais neuróticas ou sofredoras, e o alcool é um paleativo, uma cura, um analgésico, e não propriamente a causa da escrita (porque há, evidentemente, grandes escritores sóbrios :)!)
um abraço
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