quarta-feira, junho 17, 2009

Ficção engomada


Foram umas férias excelentes, cuja excelência não foi sequer posta em causa pela súbita e inesperada revelação de que a direcção do Sporting prestes a ser substituída pelo tio do Pedro Granger poderia ter angariado fundos suficientes para financiar a recontratação do atleta português Cristiano Ronaldo através de um expediente logisticamente complexo, mas perfeitamente ao alcance da família sportinguista: matar oito milhões de criancinhas à fome. Não sei como é que nenhum núcleo se lembrou de fazer um abaixo-assinado.
Enfim, a ficção “experimental”. De vez em quando, normalmente quando estou a passar a ferro, dou comigo a reflectir sobre a ficção "experimental". Estas soberbas reflexões, que já colocaram em risco a integridade de inúmeras t-shirts do catálogo Printemps, não se costumam afastar muito da mesma crosta, que é o facto de a ficção "experimental" ser, regra geral, praticada por dois tipos de autores: génios aborrecidos com o seu próprio talento, e mediocridades indignadas com a sua ausência de talento.
A última vaga de reflexões foi despoletada por dois objectos recém-adquiridos: um exemplar do livro The Raw Shark Texts, de Steven Hall, e umas calças extraordinariamente obstinadas, adquiridas por 39 euros (para evocar a quantia em termos mais actuais, esclareço que o atleta português Cristiano Ronaldo poderia adquir 25 calças idênticas por hora durante os próximos cinco anos e ainda ficar com dinheiro suficiente para cobrir as despesas de alimentação do João Gobern). Como tantos outros livros hoje em dia, The Raw Shark Texts é a história de um homem perseguido por um tubarão conceptual. As perspectivas de vida não são boas, mas um capítulo intitulado "The Crypto-Zoology of Purely Conceptual Sharks, Dictaphone Defense Systems and Light Bulb Code Cracking" sugere algumas medidas preventivas. A mais segura é montar um sistema de defesa formado por quatro dictafones de reprodução contínua, cujo objectivo é “gerar um ciclo conceptual não divergente”, e presumivelmente permitir ao protagonista ser processado por plágio pelos herdeiros de John Cage.
O livro pertence a uma nova estirpe literária: o livro-evento. Evento, não no sentido publicitário, mas no sentido comunitário, em que o acto de estar sentado a virar páginas é apenas metade da experiência. Depois, num géiser de geekalhice, somos arremessados para os fóruns, para os wikis, à procura de ovos de Páscoa e de co-obcecados. Também há fotos e rabiscos,


o mais arrojado dos quais se prolonga por quarenta e cinco páginas, e consiste na representação gráfica da aproximação de um tubarão feito de palavras, uma versão ligeiramente mais sofisticada daquilo que qualquer pessoa aprende a fazer aos sete anos, com duas tiras de papel e um lápis:

Isto é tudo muito divertido, e já se fizeram livros excelentes através de métodos semelhantes (o fabuloso House of Leaves estabeleceu o padrão de qualidade a que se deve almejar). Mas também sugere que a linha de evolução na ficção experimental - que começou por traduzir impaciência com um espartilho específico de convenções do realismo - começa agora a traduzir impaciência com tudo e mais alguma coisa. Uma coisa é usar as estratégias da ficção para explorar limites formais e estruturais; outra, bem diferente, é abraçar métodos tão radicalmente diferentes que resultarão inevitavelmente numa forma de expressão que só por hábito ou condescendência continuará a merecer a designação de literatura. Quando o foco do "experimentalismo" é apenas o moldar do texto à última inovação - ficção hiper-textual, ficção twitter, etc. - a literatura arrisca-se a ser apenas a expressão de uma tecnologia, o que não deve ser nada bom, e é provavelmente altura de perder uns minutinhos a passar a ferro e a pensar na vida. (Provavelmente havia escritores vitorianos entusiasmadíssimos com a ideia de "épico metalúrgico" ou de "poesia a vapor", mas os seus esforços não perduraram).
The Raw Shark Texts, já agora, foi recentemente traduzido e publicado pela Presença (com o título Memória de Tubarão), e pode ser adquirido por 22 euros. Para evocar a quantia em termos mais actuais, digamos que o atleta português Cristiano Ronaldo poderia adquirir um exemplar de dois em dois minutos durante os próximos cinco anos, e ainda ficar com dinheiro suficiente para snifar oitocentas linhas de cocaína directamente da nádega da esposa do autor através de uma palhinha com banho de ouro, rodeado por uma trupe de anões montados em uniciclos cantando versões a capella dos grandes êxitos dos Oasis.

8 comentários:

jaa disse...

Concordo inteiramente com o texto mas parece-me um pouco longo. Seria talvez possível resumi-lo a algo como "a literatura experimental é quase sempre uma forma de masturbação à David Carradine: o objectivo é interessante mas os meios fazem qualquer um revirar os olhos".

Claro que tanto tempo de férias e estar a colocar posts no blogue às cinco da manhã justificam muita coisa. Pela minha parte, vou continuar a tentar construir a imagem final no meu limitado cérebro.

Antónimo disse...

Casanova, não li o texto ainda. Mas quero dizer de antemão que não é longo. Se esrever um texto 50 vezes maior que este (sobre qualquer coisa) eu ficaria grato. Por quê? Porque o senhor escreve bem. É o que interessa. Não as opiniões. Opiniões eu tenho as minhas. Outra coisa muito à propósito, vou economizar este post e ler duas linhas por dia. Porque sabe-se lá quando o senhor terá paciência e boa-vontade comigo, conosco (teus leitores). Grande abraço.

Bloga-mos disse...

Despoletada? Ai o caralho!

jaa disse...

Antónimo: lamento que o humor no meu comentário não seja perceptível. Especialmente porque Rogério Casanova também pode tê-lo lido como crítica negativa - que não era. Apenas uma ligeira provocação. Garanto que tinha um sorriso nos lábios quando o escrevi. OK, Rogério?

R. Casanova disse...

Sinceramente, eu ainda estou a pensar como é que se mete um livro com quarenta e cinco páginas de tubarões em movimento no kindle.

Anónimo disse...

Eu diria que mesmo um predador pode ser reduzido a bites...

... ou bits...

Luck

R. Casanova disse...

Mas aquilo na prática é um pequeno flick book dentro do livro; o efeito depende do acto de virar as páginas muito depressa. Duvido que possa ser reproduzido num leitor digital.
Eu ando há semanas a tentar achar defeitos incontornáveis no kindle, portanto agradeço antecipadamente que não venham aqui explicar-me que estou errado.

Antónimo disse...

Jaa,

se não havia lido sequer o post do senhor Casanova, porque cargas d´água teria eu lido o teu comentário? Não o li (antes). Mas - depois de lido - garanto, o teu humor é mesmo bastante imperceptível. Abraço.