sexta-feira, janeiro 22, 2010

So fucking cold


Ah, a farsa. Vou agora explicar-vos o segredo da boa farsa: o segredo da boa farsa é cercar o temperamento inadequado com as circunstâncias mais adequadas para revelar a inadequação desse temperamento. Esta simples fórmula de meter o homem certo no sítio errado foi utilizada para produzir algumas obras-primas da comédia, tais como a colocação de Basil Fawlty nas imediações de um hotel, David Brent nas imediações de uma empresa, Pacheco Pereira nas imediações de um partido político, e Ricardo Sá Pinto nas imediações de uma sociedade. Estou muito irritado com a situação do Ricardo Sá Pinto, mas não estou irritado com o Ricardo Sá Pinto. Ficar irritado com o Ricardo Sá Pinto faz tanto sentido como ficar irritado com o dióxido de carbono: ele anda cá para cumprir a sua função, que é produzir efervescência; a culpa dos acidentes é de quem o enfia na botija errada, ou, no caso em questão, lhe abriu indevidamente a porta da jaula.
Já temos um forte candidato a texto mais irritante do ano. Estou muito irritado com o texto, mas não estou irritado com o Christopher Hitchens. Ficar irritado com o Christopher Hitchens faz tanto sentido como ficar irritado com a fotossíntese: o homem é um cretino, sempre foi um cretino, e há-de continuar a ser um cretino enquanto houver dióxido de carbono.
É possível ver naquele panfleto anti-Vidal um caso extremo de projecção - uma espécie de roman à clef involuntário em que Hitchens cartografa o seu próprio declínio intelectual - mas nós somos melhores e muito mais profundos que isso, por isso é que andamos aqui todos metidos em blogues. A noção de projecção inconsciente é, de facto, amplamente justificada pelo texto - uma catástrofe de construção, argumentação e auto-flagelação: Hitchens acusa de Vidal de revisionismo paranóico ao acreditar que Roosevelt teve conhecimento prévio do ataque a Pearl Harbour, quando o próprio Hitchens andou anos a martelar a teoria revisionista paranóica de que Churchill teve conhecimento prévio do ataque ao Lusitania; Hitchens impugna Vidal (que viveu 40 anos com um judeu) com um “muito, muito leve” anti-semitismo, quando Hitchens, antes de descobrir as suas raízes judaicas já na meia-idade, foi um fervoroso apoiante de alguns negacionistas do Holocausto; etc. Mas esta sugestão de simetria é falsa, e está longe do essencial.
Vou agora explicar-vos o segredo do essencial: uma linha clara de declínio é a consequência natural de uma longa carreira. E os intelectuais públicos - tal como pugilistas profissionais ou líderes do PSD - parecem estar constitucionalmente impedidos de encenar vénias graciosas, especialmente aqueles que atrelam o seu método argumentativo a uma personalidade que depende da consistência e não das circunstâncias. Estilos mais dependentes de uma inteligência difusa e especulativa, que cortejam activamente o ridículo - como Norman Mailer: o melhor exemplo do mundo de todos os tempos de uma inteligência difusa e especulativa, que corteja activamente o ridículo - têm mais facilidade em mascarar este declínio, pois refundam-se para acomodarem cada tendência cultural. As suas especulações são demasiado irregulares para se detectarem padrões: a esperança é de que, por puro acidente estatístico, a catarata de disparates produza ocasionalmente algo que se assemelhe a profecia.
Hitchens não pertence a nenhuma destas estirpes, e uma linha clara de declínio é precisamente o que não se consegue encontrar nele: um gráfico da sua carreira não teria a forma de uma gradual curva descendente, mas sim de uma epiléptica sucessão de trambolhões. De cima para baixo, de baixo para cima, de baixo para mais baixo - qualquer movimento do homem é sempre um espalhanço. Tal como a Natureza, o debate de ideias abomina o vácuo. No espectro das posições teoricamente passíveis de serem adoptadas sobre qualquer assunto, o bom senso tende a deixar espaços em branco; "Christopher Hitchens" é a forma que a Natureza arranjou para os preencher. Tendo ancorado a sua ontologia na infalibilidade, mede a sua proximidade à razão pelo número de pessoas que pensam exactamente o contrário. Mais do que provar que outros estão errados enquanto ele está certo, Hitchens efectua as suas calibrações argumentativas e sacudidelas posicionais em resposta a um impulso mais primordial: alguém, algures, tem uma opinião que exige uma opinião contrária; e lá vai Hitchens a correr, aos berros, com um espelho na mão, bêbado gordo feio que é.
Gore Vidal é sóbrio, bonito, magro. Os seus soundbytes recentes não demonstram, em rigor, um declínio intelectual, mas um declínio retórico, o que é perfeitamente compreensível, e deveria ser varrido para debaixo do tapete por qualquer pessoa suficientemente adulta para compreender o conceito de gratidão: aquilo são transparentes reduções ao absurdo de fórmulas exaustas, ricochetes de uma pose mecânica que já não consegue fingir espontaneidade através de mestria retórica. “Gore Vidal” foi uma convenção literária concebida por Gore Vidal para ter sempre muita razão num mundo repleto de estúpidos. A convenção, no entanto, emancipou-se muito cedo, e decidiu permitir-lhe apenas escrever muito bem num mundo repleto de pessoas que escrevem mal: escrever muito bem naquele tom patenteável de alegre e incrédula exasperação, como quem relata os disparates de um filho cretino (sendo que o filho cretino é a raça humana). O deleite na imaginação do desastre é uma pose cheia de limitações, que a longevidade tende a agravar, pois perpetua um ciclo vicioso: a pose serve para expressar uma sensibilidade literária e intelectual cuidadosamente artilhada, mas também para validar as suas manifestações, pois se ela não fosse uma consequência natural das respostas aos factos, nunca lhe permitiria escrever tão bem (isto é uma falácia na qual caíram pessoas bem melhores que nós, pelo que não vale a pena empertigarmo-nos). Com o tempo, todas as energias criativas são empregues num único propósito: evitar que a personalidade encontre os prosaicos atritos da realidade, que às vezes fazem uma pessoa (menos eu, que sou realmente infalível) mudar de ideias. Estas personalidades, esculpidas com tanto afinco, deixam por fim de ter a elasticidade suficiente para responder às necessidades, numa altura em que já não há capacidade nem paciência para explorar tácticas novas; e afundam-se no seu próprio ADN, como as pessoas de idade.
Vou agora explicar-vos o segredo das pessoas de idade: as pessoas de idade envelhecem, tornam-se abruptas e inconvenientes, perdem uma fracção das maneiras e a totalidade do timing, lançam piropos a enfermeiras e dizem mal dos brasileiros, babam-se nas golas da camisa e chamam José ao Luís. O que as pessoas que ainda não são de idade fazem é ignorar tudo isto, mantendo um silêncio decoroso, porque um dia aquela pessoa de idade seremos nós, e vamos precisar da tolerância de quem nos ature. Não se aproveita a oportunidade para apontar, como quem descobre a pólvora, que o avô já não é o que era, ou para ganhar as discussões que se perderam quando as regras eram outras.
A entrevista ao Independent que provocou em Hitchens aquela falsa e sórdida indignação é uma entrevista a um homem com 84 anos, que já respondeu a todas as perguntas muitas vezes, e já não se dá sequer ao trabalho de olhar para as cábulas; um homem que sobreviveu à família, aos amigos, aos inimigos, ao companheiro de toda a vida, e às suas próprias pernas; um homem que costumava saudar entrevistadores com abusos pansexuais e citações de Cícero, e que agora se limita a dizer "It is so cold in here," he says, by way of introduction. "So fucking cold"." É um homem que conquistou o direito a ser este homem, e a ter frio, a ter muito frio. Confrontado com isto, Christopher Hitchens foi abrir mais janelas, porque ainda pode. Nem o Ricardo Sá Pinto, por amor de Deus. Nem o Ricardo Sá Pinto.

14 comentários:

prosinečki disse...

«É um homem que conquistou o direito a ser este homem, e a ter frio, a ter muito frio.»

momento hemingway.

Anónimo disse...

O B-SITE tem em comum com o agrafo e o chumo, ou lá que é, ser estremamente aborrecido e irrelevante mas, por qualquer mistério insondável, são todos muito apreciados pelo casanova e pelo maradona, provavelmente os melhores blogers da praça. Coisas.

marta morais disse...

Nunca tinha ouvido falar neste senhor mas parece ser um palhaço com pê grande. Porquê tanta irritação (não com ele mas) com o seu discurso?
PS - o senhor mesmo com 84 continua so fucking beautiful.

Tolan disse...

Eu acho que devia haver um lar só para intelectuais idosos, uma espécie de paraíso deles. Os quartos seriam temáticos, as notícias cuidadosamente seleccionadas etc.

joshua disse...

Brilhante e escarninho!

Pedro disse...

ÓÓÓÓ, vai levar uma mantinha ao velhinho, vai Rogério.

Plúvio disse...

«Hitchens impugna Vidal (que viveu 40 anos com um judeu*)»
* Mas não foi para o foder?

«posições teoricamente passíveis de serem adoptadas»
"passíveis de ser"?
Ciberdúvidas

«às vezes fazem uma pessoa (menos eu, que sou realmente infalível) mudar de ideias.»
"eu não/não eu, que sou"?

Mesmo que eu esteja a ver bem, são merdices que não passam de vestígios rarefeitos de poalha difusa sobre a perfeição fúlgida de intenso génio.
Viva, Sr. Rogério!

Rita disse...

pronto, vá, eu gosto de ti ainda que te deva cada vez mais dinheiro :)

Ana Grama disse...

Sabes o que te digo, Plúvio, apontar pintelhices em praça pública era desnecessário (diria mesmo mais, é feio) link pró ciberdúvidas?!? passaste-te oh quê?

marta morais disse...

Vai ser fácil reconhecer o Rogério Casanova em público: é quem estiver a ranger os dentes na última fila, no dia18 de Fevereiro, pelas 18h30, na Casa Fernando Pessoa com meia dúzia de tomates podres guardados na mochila, just in case.

Plúvio disse...

Concordo, Ana Grama, é feio. Precipitei-me num acto de vaidade.
Peço desculpa ao Sr. Rogério.

Tolan disse...

Bem, ele anda a preparar um texto há semanas, deve vir aí o caralho de uma obra prima, está-se mesmo a ver. Uhhh estamos todos à espera... Não, não se sinta pressionado.

R. Casanova disse...

O Plúvio tem, como quase sempre, razão, pelo que peço a todos que não o incomodem. No entanto, em nome do rigor factual, saliento que a relação de 40 anos que Gore Vidal manteve com o seu judeu foi, segundo os próprios, casta.
Aproveito para pedir desculpas pela habitual demora nas minhas respostas. No geral, gosto muito de vocês todos. Se por vezes vos ignoro é apenas porque sou um ser superior e o contacto directo com o povo repugna-me, mas prometo continuar a esforçar-me para que isso não afecte a nossa relação.

ju disse...

Seja qual for o post, três ou quatro parágrafos e depois perdem-me incondicionalmente. Irra, tempo não falta para escrever, eu pelo contrário não posso dizer o mesmo.