O índice remissivo da colecção de ensaios de Zadie Smith (Changing My Mind) não inclui uma única referência a James Wood. Inclui nove referências a Hans van den Broek (personagem de Joseph O'Neill), catorze a Dorothea Brooke (personagem de George Eliot), uma referência a Thierry Henry (personagem de Arsène Wenger), uma a Joan Baez (personagem de Bob Dylan), uma a John Locke (personagem de João Carlos Espada), duas a Truman Capote (personagem de Truman Capote), e três a Jews (personagem de Pedro Arroja), mas nenhuma referência a James Wood em trezentas páginas, o que só é digno de realce porque o livro é essencialmente sobre ele.
Pelo menos dois dos ensaios são respostas explícitas ao programa estético de Wood, com passagens que estão comicamente próximas de serem notas de rodapé a parágrafos do tal ensaio sobre o "Realismo Histérico", e outras que estão perigosamente próximas de serem pastiches estilísticos. Wood tem um «the author's porous scout», Zadie Smith tem um «the narrator's flawless interpreter»; Wood tem um «drawn, like a larcenous banker, to raid again and again the very source that sustained him», Zadie Smith tem um «like a lapsed High Anglican, Netherland hangs on to the rituals and garments of transcendence»; Wood tem um «The house of fiction has many windows, but only two or three doors», Zadie Smith tem um "The novels we know best have an architecture. Not only a door going in and another leading out, but rooms, hallways, stairs, trapdoors, hidden pasageways, et cetera». E no entanto, a única coisa vagamente parecida com uma menção indirecta é uma referência lá para o meio aos "nossos críticos mais proeminentes".
O que se pode concluir é que James Wood e Zadie Smith são secretamente casados e que a sua relação já atingiu aquele patamar evolutivo em que se pode discutir durante horas através de insinuações e remoques cifrados sem nunca nomear a outra parte: «certas pessoas cá em casa não arrumam a louça como prometeram», etc. O livro é muito bom, ao contrário do futebol em geral. Há algo de profundamente errado com o futebol em geral.
Os livros de Bolaño também são muito bons, mas estou cada vez mais convencido de que há algo de profundamente errado com eles todos. O que é que pode haver de errado com livros que gostei tanto de ler (apesar de não ter a mínima vontade de os reler)? O que me parece é que os livros de Bolaño, tal como o meu interesse pelos livros de Bolaño, são produtos do acaso; o meu prazer ao lê-los foi totalmente determinado pela forma que a minha sensibilidade literária adquiriu. Com quase todos os outros livros de que gostei tanto, houve uma sensação de inevitabilidade (mesmo que falsificada): a minha personalidade poderia ser outra, mas o efeito seria semelhante. Mas a sensação que tenho com os livros de Bolaño - que são caóticos, que não fazem sentido, que apelam a uma parcela dessa sensibilidade alicerçada em arbitrariedades tão concretas como o facto de gostar muito de "livros sobre pessoas que gostam de livros" - é que a minha opinião sobre eles poderia ser radicalmente diferente caso tivesse usado umas meias de cor diferente na última terça-feira, ou tivesse jantado salmão em vez de lasanha ontem à noite. Continuo a achar que os livros são todos muito bons, que fique bem claro, mas esta aura de contingência é um bocadinho desconcertante para alguém que gosta de coisas predestinadas, como o amor, a eliminação do Real Madrid, ou as cíclicas tentativas do Luís Miguel Oliveira em descrever a realidade visível a personagens de Louis Braille.
Pelo menos dois dos ensaios são respostas explícitas ao programa estético de Wood, com passagens que estão comicamente próximas de serem notas de rodapé a parágrafos do tal ensaio sobre o "Realismo Histérico", e outras que estão perigosamente próximas de serem pastiches estilísticos. Wood tem um «the author's porous scout», Zadie Smith tem um «the narrator's flawless interpreter»; Wood tem um «drawn, like a larcenous banker, to raid again and again the very source that sustained him», Zadie Smith tem um «like a lapsed High Anglican, Netherland hangs on to the rituals and garments of transcendence»; Wood tem um «The house of fiction has many windows, but only two or three doors», Zadie Smith tem um "The novels we know best have an architecture. Not only a door going in and another leading out, but rooms, hallways, stairs, trapdoors, hidden pasageways, et cetera». E no entanto, a única coisa vagamente parecida com uma menção indirecta é uma referência lá para o meio aos "nossos críticos mais proeminentes".
O que se pode concluir é que James Wood e Zadie Smith são secretamente casados e que a sua relação já atingiu aquele patamar evolutivo em que se pode discutir durante horas através de insinuações e remoques cifrados sem nunca nomear a outra parte: «certas pessoas cá em casa não arrumam a louça como prometeram», etc. O livro é muito bom, ao contrário do futebol em geral. Há algo de profundamente errado com o futebol em geral.
Os livros de Bolaño também são muito bons, mas estou cada vez mais convencido de que há algo de profundamente errado com eles todos. O que é que pode haver de errado com livros que gostei tanto de ler (apesar de não ter a mínima vontade de os reler)? O que me parece é que os livros de Bolaño, tal como o meu interesse pelos livros de Bolaño, são produtos do acaso; o meu prazer ao lê-los foi totalmente determinado pela forma que a minha sensibilidade literária adquiriu. Com quase todos os outros livros de que gostei tanto, houve uma sensação de inevitabilidade (mesmo que falsificada): a minha personalidade poderia ser outra, mas o efeito seria semelhante. Mas a sensação que tenho com os livros de Bolaño - que são caóticos, que não fazem sentido, que apelam a uma parcela dessa sensibilidade alicerçada em arbitrariedades tão concretas como o facto de gostar muito de "livros sobre pessoas que gostam de livros" - é que a minha opinião sobre eles poderia ser radicalmente diferente caso tivesse usado umas meias de cor diferente na última terça-feira, ou tivesse jantado salmão em vez de lasanha ontem à noite. Continuo a achar que os livros são todos muito bons, que fique bem claro, mas esta aura de contingência é um bocadinho desconcertante para alguém que gosta de coisas predestinadas, como o amor, a eliminação do Real Madrid, ou as cíclicas tentativas do Luís Miguel Oliveira em descrever a realidade visível a personagens de Louis Braille.
6 comentários:
apesar de so ter lido um bolano e o tipico alias, comprado com a capa bonita e nao a capa codigo da vinci, aquilo que eu percebi foi que o que mais me aprisionou, para alem das enumeraçoes hipnoticas tipo os criticos acordaram e foram a uma conferencia over and over again ou mamilo fora every other week, foi que é raro um gajo ter tanto colhao a escrever. visto da perspectiva do gay q sou (e nao da perspectiva gay sobre as coisas) e fascinante ler o q um HOMEM escreve.
Desdenhas o povo, e depois o povo não vem cá comentar-te. Se fosses do Benfica percebias isto, pá.
já no meu caso, releria com absoluto prazer qualquer das obras do bolaño que já li; não o faço porque tenho outras coisas para ler; mas não tendo outros livros "inéditos", a repetir algum seria certamente o bolaño, mesmo tendo em conta que o li ainda este ano...
O James Wood é o pai do Robin Wood?
livros sobre pessoas que gostam de livros
Os livros que lisonjeiam o bibliófilo fazendo-o crer que o mero facto de gostar de livros faz dele uma pessoa melhor do que as pessoas que não gostam de livros já quase que constituem uma espécie de subgénero, mas um subgénero com um nível literário bem mais baixo do que o Bolaño, suponho.
Então no fundo começa-se a desconfiar que os livros do Bolaño são brincadeiras literárias brilhantes mas um pouco gratuitas, sem um propósito substancial que as justifique.
É isso?
Se for, não me custa a acreditar, mesmo não tendo lido nada dele ainda.
on the spot. o bolaño faz-me sentir como se tivesse dezassete anos e fosse um evento ler aquele livro é mt coming of age. mas tb acho que o 2666 precisava de ediçao. a falta de substancia esta exactamente nos momentos em que reparamos que aquilo esta la para cumprir um proposito, para criar mito mais do que sinceridade
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