Tendo sido alertado pela minha infatigável rede de olheiros para o programa "Sexta à Noite" com José Carlos Malato, tratei de cancelar a minha reunião semanal do «Margem Sul Friday Night Mayonnaise & Bingo Happy-Fun Social Club» e de me instalar no sofá com um pacote de maltesers e um telecomando sem pilhas, preparado para olhar para o abismo enquanto o abismo olhava para mim. A troca de olhares não se concretizou nos temos esperados (o abismo olhou sobretudo para si próprio), mas quero aqui distanciar-me da corrente de opinião que defende que o "Sexta à Noite" é o maior amontoado de esterco actualmente em exibição fora da Tate Gallery. Não é.
Começando pelo apresentador, parece-me incontroverso afirmar que José Carlos Malato tem o cargo mais difícil da televisão portuguesa, e merece uma enxurrada de encómios. O conceito do programa, se é que não me escapou nada, é convidar figuras públicas e, através de toda uma panóplia de meios técnicos e retóricos, purgar as suas aparições de qualquer resíduo de interesse. Para este efeito, Malato recorre não apenas ao tried and tested (a súbita prestidigitação de fotografias antigas dos convidados, artifício que reduziu Miguel Portas a uma balbuciante massa de desespero, implorando sucessivos copos de água à produção), mas também ao estonteante improviso. O seu trabalho consiste em detectar o menor assomo de relevância no horizonte, preparar uma emboscada, e afundá-lo imediatamente no inócuo; não há cinco pessoas no país inteiro capazes de fazer isto com tamanho profissionalismo. A dada altura, um Miguel Portas que tinha visivelmente subestimado o talento do seu opositor, cometeu o erro de tentar dizer algo com interesse. Malato interrompeu-lhe a frase a meio com a eloquência dos predestinados, perguntando-lhe se havia alguma verdade "naquela história de que você não gostava de camisolas com picos". Atordoado, mas mantendo ainda uma digna lucidez, Portas lá conseguiu responder que sim, que a mãe, na sua infância, tinha o hábito de lhe vestir "camisolas que picavam", mas que hoje em dia era ele que comprava o seu próprio vestuário, e que esse problema, felizmente, já não se colocava. Não foi portanto em vão que se fez Abril.
A segunda convidada, Clara Ferreira Alves, não precisou de tantos cuidados. Revelando maior adaptação ao espírito do programa, tratou de evitar ela própria qualquer declaração saliente, ou mesmo não-soporífera. Precisou apenas de alguns minutos para descobrir que "o 11 de Setembro mudou a nossa visão do mundo", provocando na audiência um frisson de euforia certamente semelhante ao que percorreu a população chinesa no século IX, quando os seus alquimistas apareceram com uma substância chamada pólvora. Pouco depois, Clara assegurou todos os presentes que não só já tinha ido a Marrocos, como também "a muitos sítios bem piores do que Marrocos. A minha experiência de jornalista é precisamente a de estar em sítios onde há sarilhos", uma alusão um pouco óbvia aos anos que passou na redacção do Expresso. Que me lembre, não houve fotos de bebé de Clara Ferreira Alves, a não ser que tenham sido mostradas durante uma das minhas perdas de consciência.
Tendo recuperado os sentidos 24 horas depois, já não fui a tempo de participar na minha «Margem Sul Weekly Fantabulous Anagram Orgy», mas ainda consegui ver grande parte de um documentário chamado "À Procura da Revolução", ao longo do qual o realizador Rodrigo Vasquez percorre a Bolívia à procura do espírito de Che Guevara (Spoiler Alert: não o encontra).
O que encontra em abundância é miséria, corrupção, nepotismo e Evo Morales. Este pode ser visto, antes da subida ao poder, liderando uma marcha a favor da cocaína, e envergando uma camisola com todo o aspecto de picar bastante, facto escandalosamente escamoteado pela narração, uma vez que nem todas as nações do mundo têm ao seu dispor observadores do calibre de José Carlos Malato.
O documentário acompanha duas mulheres associadas à insurgência indígena. Uma delas, Jiovana, coordena um programa estatal para garantir emprego a mulheres desprivilegiadas, sendo que o emprego em questão consiste em calcetar as ruas de La Paz sem qualquer tipo de ferramentas. A outra, Esther, formada nos movimentos sindicais, é imediatamente reconhecível: repete a palavra "revolução" de 15 em 15 segundos, com a precisão de um relógio cubano, e passa grande parte dos restantes blocos de 14 segundos a alertar contra inimigos externos e internos.
Enquanto Esther vai "mobilizando", "educando", e embolsando pesos alheios um pouco por toda a Bolívia, Jiovana é eleita deputada na avalanche eleitoral que conduz Morales ao poder. O seu percurso político -desbravado sem qualquer indício aparente de cinismo - depressa se estabelece como uma interminável negociação de becos sem saída: dez meses depois da tomada de posse, o PLANE está retalhado em facções dissidentes, as mulheres do PLANE não voltaram a trabalhar, e Jiovana não consegue sequer uma reunião com o líder do executivo.
Evo Morales, envergando agora uma camisa revolucionariamente confortável, tem a bondade de explicar o problema perante as câmaras: «O grande problema da Bolívia é que não há dinheiro. Se não fosse isso, governar com rigor, transparência e honestidade seria fácil». Talvez fosse possível argumentar que o grande problema da Bolívia é que qualquer levantamento populista, por mais legítimas que sejam as reclamações de base, por mais Jiovanas que existam, estará quase sempre refém de pessoas que pensam e falam como Evo Morales, mas José Carlos Malato deve ter intervindo nesse momento e o documentário acabou pouco depois.
Mas o futuro pode não ser negro. Recorrendo aos meus literalmente enciclopédicos conhecimentos sobre a História recente da Bolívia (providenciados por meia esplêndida página na Enciclopédia Temática da Larrousse) recordo que a revolução de Victor Paz Estenssoro em 1952 também começou com um certo grau de emancipação para os índios, os rudimentos de uma reforma agrária, e a promessa de uma vaga de nacionalizações. Foram precisos 33 anos, 66 depressões, e 99 golpes e contra-golpes militares para que o mesmo Estenssoro, já num terceiro mandato não-sucessivo, descobrisse alquimicamente a pólvora, e abrisse o sector do Estado ao investimento privado, originando, nas palavras da Larrousse (que seria incapaz de me mentir) "uma espectacular recuperação económica".
É, portanto, concebível, que lá para 2037, um irreconhecível Morales consiga transformar a Bolívia num país tão livre de sarilhos que não correrá sequer o risco de ser visitado por Clara Ferreira Alves - seguramente um dos direitos fundamentais de qualquer democracia.