quinta-feira, novembro 30, 2006

Better things for better living through Pynchon


Miscelânea:

. página 87: «. . . 'Answering the question: how can anyone set off a bomb that will take innocent lives?' ' Long fuse!' someone hollered helpfully.»

. não há quaisquer indícios de que o maradona leia Pynchon ou compreenda a beleza demente de Matt Le Tissier; mas parece que gosta de Swift, e que também não dorme, portanto não há crise;

. Sir John Leslie era um físico escocês, um dos muitos que postulou a existência de uma terra oca e habitada, iluminada por dois sóis - Pluto e Proserpine;

. página 219: «. . . the True Worshippers of the Ineffable Tetractys (T.W.I.T.) were headquarted in London, at Chunxton Crescent, in that ambiguous stretch north of Hyde Park known then as Tyburnia. . .» O tetractys é uma figura triangular que consiste em dez pontos dispostos em quatro filas. O ritual de iniciação na religião secreta dos Pitagóricos incluia uma oração dirigida ao tetractys. A forma está presente no brasão de armas dos arcebispos Católicos. Como se isso não bastasse, é também uma forma poética.

. Michiko 'pretentious without being provocative' Kakutani e Adam 'sterile in his virtuosity' Kirsch, habilmente desmantelados no Elegant Variation;

. no cada vez mais interessante blog As Aranhas, põe-se a hipótese de «Dying on the Vine» ser a melhor canção do século XX; há dias em que concordo, há dias em que discordo, mas nesta era de turbulentas mudanças de paradigma, parece-me uma opinião bastante saudável (Pynchon também é fã de John Cale, daí a inclusão neste post);

. o post mais pynchoniano da blogosfera portuguesa foi escrito no dia vinte de Maio do ano 2004, às 22:26h.

. . .aliquid quo maius cogitari non potest. . .




Há já alguns anos que tenho uma ideia fixa sobre a mulher perfeita: uma combinação bastante específica de Natasha McElhone, Kim Deal e Cynthia Ozick. Ora, como toda a gente sabe desde Anselmo, é mais perfeito existir na realidade do que como mera possibilidade. Portanto: onde é que ela anda?

quarta-feira, novembro 29, 2006

Este blog mete-se com gente crescida

Ando aqui eu a perder tempo a fazer piadas de mau gosto sobre distintos membros do parlamento, e o Francisco Mendes da Silva mete-se comigo por eu ter faltado ao respeito a quatro escanzeladas relíquias britânicas dos anos 70. Gosto de umas quantas coisas naquele blog, mas gosto, acima de tudo, da ordem de prioridades deles.
No que diz respeito aos argumentos: olhe que não.
Porque já depois de os Ramones terem acabado de vez, os Sex Pistols ainda andavam a espremer o limãozinho em digressões - uma delas com o apropriado nome 'Filthy Lucre'. Quanto às credenciais anti-establishment, ainda há pouco mais de dois anos o Johnny Rotten podia ser visto, em horário nobre, numa espécie de versão inglesa da Quinta das Celebridades, a fazer caretas a ouriços no meio da selva. Se isto é ser anti-establishment, então o Johnny Weissmuller foi o maior radical do século XX.
Há mais espírito punk numa aparição televisiva do Boris Johnson do que em vinte concertos dos Sex Pistols.
E como ninguém vai rebater o argumento essencial, que é a importantíssima problemática das fotografias à frente de paredes, vou encerrar aqui este debate com a dignidade dos bons vencedores, citando o inigualável Joey Ramone:

You're a loudmouth baby
You better shut up
I'm gonna beat you up
'Cause you're a loudmouth babe

Cosmo goes loco

Duvido que ainda haja alguém que não tenha conhecimento do 'incidente' em que Michael Richards (o Kramer da série Seinfeld) se envolveu na semana passada. Os eventuais pára-quedistas podem encontrar aqui um breve resumo do que aconteceu, aqui o vídeo do YouTube, e aqui o comentário do Pedro Mexia, que está na mesma linha das reacções que tenho lido em jornais e blogs anglófonos.
Não tenho talento nem tendência para fazer de advogado do Diabo, mas, em primeiro lugar, acho que é seguro analisar o caso sem levar em conta a estratégia de relações públicas seguida posteriormente por Richards e pelo seu agente. Arrisco mesmo que se deve tomar o pedido de desculpas público e a admissão da sua "flawed humanity" (um pró-forma em situações destas) com uma pitada de sal. Aquilo é gestão de danos, e pouco mais.
Acho também que este caso é bastante diferente do de Mel Gibson, ao qual foi imediatamente comparado, e queria adiantar uma explicação alternativa, que julgo ser mais credível do que um mero sopro de "hostilidade reprimida".
É indesmentível que racismo instintivo está presente, em maior ou menor grau, em quase todos nós. Parafraseando Martin Amis, a progressão natural da humanidade é nós sermos um pouco menos racistas que os nossos pais, e os nossos filhos serem um pouco menos racistas que nós. O que a mente faz com esse instinto é que é importante, e o catálogo dos que decidem erguer um edifício ideológico à volta dessas erupções atávicas (e aí já é mesmo de uma decisão que se trata) é felizmente reduzido. A fronteira entre ambos os territórios, apesar de alguns matizes comuns, é clara e definida. No caso de Gibson, por exemplo, parece-me que o preconceito anti-semita, dadas as circunstâncias e os conhecidos precedentes, é muito mais evidente.
Quanto a Michael Richards, qualquer análise terá forçosamente de considerar essa nebulosa distinção entre actor e personagem de palco. A mim, o vídeo parece-me acima de tudo o registo de uma performance catastrófica, ao longo da qual o actor e o personagem se misturaram com resultados não tanto explosivos como implosivos. Um actor que, convém lembrar, não tem muita experiência de stand-up e não terá o nervo (nem a capacidade?) para lidar adequadamente com heckling. A raiva de Richards é inegável: a resposta, admito-o, pode muito bem ter sido o libertar de um vapor racista acumulado. Mas o mais provável é que tenha obedecido a outra lógica miseravelmente humana: uma escolha deliberada da palavra que se julga ir causar mais ofensa ao provocador. Caso o espectador em questão, além de negro, fosse tetraplégico, ou gago, ou tivesse o rosto escavado por marcas de bexigas, acredito que Richards tivesse seguido essa via.
Outra hipótese é tudo não ter passado de uma utilização desastrosa de um recurso cómico com algumas tradições. O caso lembrou-me imediatamente uma rotina que o Lenny Bruce usava nos anos 60. (A citação é do livro The Essential Lenny Bruce: Unexpurgated Satirical Routines, Panther Books, London, 1975):

«By the way, are there any niggers here tonight? [outraged whisper] 'What did he say? "Are there any niggers here tonight"? Jesus Christ! That is cruel. Does he have to get that low for laughs? Wow! Have I ever talked about the schwarzes before the schwarzes have gone home? (...)'
Are there any niggers here tonight? I know that one nigger works here, I see him back there. Oh, there's two niggers, customers, and, ah, aha! Between those two niggers sits one kike - man, thank God for the kike! (...) The point? That the word's supression gives it the power, the violence, the viciousness. If President Kennedy got on television and said, 'Tonight I'd like to introduce the niggers in my cabinet,' and yelled ' niggerniggerniggerboogeyboogeyboogey' at every nigger he saw 'till nigger didn't mean anything anymore, 'till nigger lost its meaning - you'd never make any four-year-old nigger cry when he came home from school.
Screw 'Negro'! Oh, it's so good to say, 'Nigger!' Boy?»

Num determinado ponto do vídeo, Richards diz "Alright, you see, that shocks you", como alguém que, bloqueado num exame de matemática, se lembra apenas de metade da fórmula. E é a partir daí que o seu esbracejar se torna mais doloroso.
Repito: não conheço o Michael Richards de lado nenhum, e não recebo 10% do que ele ganha.
Mas estou convencido de que o défice aqui é de talento, e não de personalidade.

terça-feira, novembro 28, 2006

Hoje ouve-se


We're a happy family
We're a happy family
We're a happy family
Me, mom and daddy.

Siting here in Queens
Eating refried beans
We're in all the magazines
Gulpin' down thorazines.

We ain't got no friends
Our troubles never end
No Christmas cards to send
Daddy likes men.

Daddy's telling lies
Baby's eating flies
Mommy's on pills
Baby's got the chills.

I'm friends with the President
I'm friends with the Pope
We're all making a fortune
Selling Daddy's dope.

- Ramones, «We're a Happy Family», Rocket to Russia

(Dois mitos que convém estilhaçar:
1 - os Sex Pistols inventaram o punk rock;
2 - os indecentemente sobrevalorizados The Clash são o expoente máximo do género.
É que os Ramones prestam um serviço muito melhor a ambas as alíneas. Antes de mais porque uma banda não pode reclamar-se punk caso não tenha pelos menos três álbuns adornados com fotografias de grupo em frente a uma parede. Quer dizer, isto é dos livros; não se percebe a confusão. E depois porque os Ramones representam, em terms puramente musicais, o sagrado meio-termo: os Clash eram compostos por músicos demasiado bons para o punk, e os Sex Pistols abusavam para o lado contrário. Nos Ramones, fazia-se pouco, mas muito, muito bem.
O que dizer sobre Rocket to Russia, esse pináculo do bubblegum-core? Não nego que haverá melhores maneiras de ocupar trinta e um minutos e quinze segundos de uma Terça-feira.
Mas não muitas.)

O espírito invisível de Joey Ramone sobrevoa o hemiciclo da Assembleia da República, disseminando um pouco da sua substância

A deputada Maria de Lurdes Ruivo surpreende tudo e todos na sessão de trabalhos da Comissão Parlamentar para Assuntos Europeus, ao mascar um ritmo potente na sua pastilha elástica.
A deputada Heloísa Apolónia efectua diligências no sentido de garantir uma boleia até Rockaway Beach.
O líder da bancada parlamentar do PP, Nuno Melo, apresenta uma proposta de lei visando a privatização imediata de todos os estabelecimentos de ensino, porque os putos estão todos de cabeça perdida, e ninguém sabe, ninguém sabe, ninguém sabe o que eles querem.
Um membro eleito pelo círculo de Aveiro ausenta-se inesperadamente depois de ter sido abandonado pela sua garina.
O deputado Luis Fazenda dirige uma reclamação à Mesa, questionando a admissibilidade de se poder surfar com vinte graus negativos.
Jaime Gama declara uma inesperada pausa de meia-hora na sessão plenária, justificando-se com o súbito desejo de ir até um sítio mais bacano que este, onde se possa curtir um pouco.

segunda-feira, novembro 27, 2006

Walk like a Pynchonian


O meu exemplar de Against the Day pesa um quilo, quatrocentos e vinte e dois gramas.
Com os paperpacks de V., The Crying of Lot 49, Gravity's Rainbow (cópia de substituição) e Slow Learner, mais a edição hardcover de Mason & Dixon, o Gravity's Rainbow Companion de Steve Weisenburger, e uma indispensável enciclopédia de bolso, a agulha chega aos cinco quilos e duzentos.
É uma verdade, daquelas com V maiúsculo, que saír de casa, nem que seja para um passeio de meia-hora, sem qualquer um destes títulos, é um risco que só os mais desencantados e/ou cínicos estão dispostos a correr. Os mais atilados sabem que muita coisa pode acontecer em trinta minutos, que os planos mais estanques estão sujeitos a bruscas ultrapassagens, que as circunstâncias do regresso a casa são sempre uma incógnita, e que todas as trepidações do improvável serão mais facilmente negociáveis se estivermos munidos de roupa interior lavada, alguns trocos na carteira, e de toda a obra de Pynchon.
O dilema que isto representa para os que gostam de fazer as coisas como elas devem ser feitas (e aos quais se impõem imediatas considerações sobre a postura em público, e a saúde das nossas vértebras, entre outras) é um dilema sério, e o Pastoral Portuguesa deixa aqui algumas sugestões que se espera venham a contribuir para a sua resolução:

1. os ginásios urbanos são palcos de frequentes maravilhas. Os equipamentos representam o último grito, pleno de decibéis, da Ciência moderna, colocada ao serviço dos bíceps e dos deltóides. Os monitores são submetidos a rigorosos processos de selecção, que chegam a durar meses. Tudo o que é preciso é um pouco de força de vontade, e um mínimo de seis horas semanais;

2. no site da empresa Manutan podem encomendar-se carrinhos de mão, disponíveis em vários modelos e tamanhos, a partir da módica quantia de 78,00 €. A entrega é gratuita em Portugal Continental;

3. reza a lenda (através dos lábios pouco dados a rezas de Gore Vidal) que o grande Santayana tinha por hábito separar as folhas dos livros, capítulo a capítulo, das suas respectivas encadernações. O método, um aparente sacrilégio para bibliófilo, revela-se, após uma análise mais fria, logisticamente são. Não vou tentar enganar ninguém, apresentando aqui resultados de testes não-efectuados, mas estou certo de que, livres das lombadas, das margens exageradas, e da cola industrial, o peso do nosso cânone portátil seria possivelmente reduzido em 30%. As acrescidas dificuldades de manuseamento e transporte seriam, creio, facilmente ultrapassadas, desde que resistíssemos à tentação de espalhar pelo Mundo aviõezinhos de papel com equações nas asas.

Il Postino's evil twin

(no original)

― Why is it that you are always being sent these parcels, and bubble wrapped books, and magazine subscriptions, and antiques catalogues, and never seem to get anything with your name handwritten on it?
― I'm sorry, why did you ring the bell? Do you need a signature?
― I'm just curious.
― I get personal letters.
― I never see any.
― Well, it's mostly e-mails these days. Plus, I get phone calls.
― And you still have those dark circles under your eyes.
― I'm afraid your invasiveness, which was once charming, is gradually becoming unacceptable.
― That book I told you about isn't working?
― Books rarely do.
― I always sleep like a baby.
― There are babies all over the building. They're one of the reasons why I can't sleep.
― It sounds as if you resent them.
― I have nothing against the future.
― Well, that's easy to say, and many have said it.
― Can you hear that? That's my laptop telling me I've got mail. You are a dying breed.
― It sounds an awful lot like a microwave.
― They're the same brand. Have a nice day.

domingo, novembro 26, 2006

Donald, diz olá aos meninos, e explica-lhes coisas

«I believe that my every sentence trembles with morality in that each attempts to engage the problematic rather than to present a proposition to which all reasonable men must agree.»

(Donald Barthelme, Not-Knowing: The Essays and Interviews)

. . .Ellipsis. . .

Há sinais de pontuação que, no meu entender, pertencem a determinados escritores. O uso que lhes deram - por ter sido revolucionário ou simplesmente exaustivo - devia consagrar-lhes o direito a um ™/© nos compêndios. Duvido, por exemplo, que alguém tenha utilizado a vírgula como Henry James, ou o ponto e vírgula como Virginia Woolf. E Philip Roth parece-me o único autor contemporâneo a perceber para que serve, e como se usa, um ponto de exlamação. Sem esquecer Nabokov, que tinha o hábito enternecedor de atordoar com "aspas" as palavras mais inofensivas.
E as desgraçadas reticências, quem as redime, quem lhes acode?
Sempre foram as triplas ovelhinhas negras da Literatura. E na era do e-mail e do sms, nenhum sinal de pontuação sofreu tantos abusos como a sequência de três pontos - tragicamente despromovida a uma delegação de responsabilidade cognitiva ou, no seu pior, a um mero desvelo de brejeirice, um wink wink, nudge nudge, com ainda menos subtileza.
Um dos efeitos secundários da escrita de Thomas Pynchon tem sido uma reabilitação sistemática e gradual das reticências. Praticamente sozinho, ele resgatou-as ao domínio da indeterminação empírica, usando-as para sinalizar mudanças de foco narrativo, ou tornando-as agentes catalizadores daqueles desvios temporais, grávidos de significado, em que sua ficção é pródiga; dotando-as, em última instância, de faculdades mais consentâneas com a sua designação em inglês, ellipsis, termo com uma ambiguidade diferente da sugerida pela língua portuguesa, e que evoca outra figura de retórica preferida por Pynchon.
Gravity's Rainbow sem reticências seria menos do que é. Seria como o Orlando sem semicolons; perder-se-ia não apenas o sentido de alguns parágrafos mas a própria essência da obra. (Esta afirmação exigia ser validada com algumas citações, mas o meu exemplar de Gravity's Rainbow foi vítima de um recente pedido de empréstimo e temo não o voltar a ver. E "citar de memória" neste blog é uma piada de mau gosto).

Depois de tudo isto, é com algum pesar que revelo um notório défice de reticências nas primeiras páginas de Against the Day. Se o facto indicia um maior auto-domínio formal ou, pelo contrário, uma redução do ângulo de visão, isso terão de ser as restantes oitocentas páginas a confirmar.
Mas continua a ser muito complicado não amar um escritor que compara nuvens de tempestade a pedras derretidas esvaindo-se em colunas de luz, no mesmo capítulo em que nos presenteia com a imagem de um embriagado Arquiduque Francisco Fernando fugindo de um bar em Chicago, perseguido por uma turba furiosa.

Post entre parêntesis

(Num daqueles momentos repletos de boas intenções que acabam por deixar todos os envolvidos algo embaraçados, fui elogiosamente acusado de ser a versão anglófila de alguém que seria a minha versão francófila. No âmbito da elogiosa acusação bifurcada isto representa uma melhoria inquestionável sobre "tu és igualzinho ao teu avô", mas não deixará por isso de merecer uma resposta, que é esta: aquele que acusa não passa de uma versão amnésica de alguém que se lembra de tudo.
E isto fica assim, sem links nem redireccionamentos, pois eu posso ser uma 'versão' mas não sou um delator. E nisso, como noutras coisas, sou mesmo igualzinho ao meu avô.)

Beep-beep

O site-meter faz-me lembrar uma versão não-irónica daqueles ubíquos autocolantes de vidro traseiro, que dizem: "Honk if you like my driving".

sábado, novembro 25, 2006

sexta-feira, novembro 24, 2006

Light à la mode

«. . .Some claimed that light had a consciousness and personality and could even be chatted with, often revealing its deeper secrets to those who approached it in the right way. Groups (...) could be observed in Monumental Park at sunrise, sitting in the dew in uncomfortable positions, their lips moving inaudibly. There were diet faddists who styled themselves Lightarians, living on nothing but light, even setting up labs they thought of as kitchens and concocting meals from light recipes, fried light, fricaseed light, light à la mode, calling for different types of lamp filament and colors of glass envelope, the Edison lamp being brand new in those days but certainly not the only design under study. There were light addicts who around sunset began to sweat and itch and seclude themselves in toilets with portable electric lanterns. Some spent most of their time at telegraph offices squinting at long scrolls of mysteriously arrived "weather reports" about weather not in the atmosphere but in the luminiferous Aether. . .»

(Thomas Pynchon, Against the Day)

Against the Day - primeiras 44 páginas

Estou imoderamente optimista.
As críticas que li até agora foram, na sua maioria, negativas. E se isso não é muito revelador no caso desse desperdício de prestígio que é a Senhora Dona Kakutani, do NY Times (por quem nutro a mesma trémula e exasperada afeição que o Alexandre Andrade nutre pelo Eurico de Barros*), já as inesperadas machadadas da Laura Miller e de Louis Menand deixaram-me genuinamente angustiado. Mas não vi, até agora, nenhum indicador do catastrófico assomo de irrelevância que alguns sugeriram. O estilo faz talvez demasiadas aproximações ao mock-heroic e ao mock-pulp, mas se bem entendi os capítulos iniciais (e isso não é um dado adquirido, uma vez que não prego olho há dois dias, e o café me sabe a cinza), estes são supostos excertos de um livro de aventuras juvenil, ou pelo menos relatam acontecimentos filtrados pela entidade narrativa desses mesmos livros inexistentes. Além disso quem pega num livro de Pynchon e se indigna com o abuso do pastiche está claramente fora-de-jogo.
Para benefício de outros eventuais Pynchonistas insones, elaborei uma pequena check-list de elementos que todos estamos à espera de encontrar e que tentarei ir actualizando (sem promessas, pois haverá dias em que nem sequer me vou lembrar que o blog existe):

p. 5: o primeiro canídeo envolvido numa tarefa não-canídea - check! (no caso, a leitura de The Princess Casamassima);
p. 7: a primeira referência paranóica a um "mysterious Chinese consortium" - check!;
p. 15: a primeira canção - check!;
pgs. 6 e 36: primeiros personagens com nomes vagamente obscenos - check!: Prof. Heino Vanderjuice e Lew Basnight (Lube Ass Night, parece-me, mas - repito - posso estar a ver coisas onde não as há. Além disso, e para ser honesto, ambos ficam muito aquém de Dewey Gland, o marinheiro de V.)

Queria também anunciar que a minha birra com a Amazon está oficialmente terminada, tudo por obra e graça do meu carteiro, que me sugeriu um título que não será possível encontrar em mais lado nenhum: The Bible Cure for Sleep Disorders. Se isto falhar, o próximo passo é chamar um pai-de-santo.

(* A sra. Kakutani é apenas a fiel depositária de uma longa tradição no NY Times: a suspeita patológica de um certo tipo de literatura "experimental" ou lúdica. Um dos seus ilustres predecessores, Orville Prescott, foi responsável pela recensão crítica mais espectacularmente asinina de que há memória, ao longo da qual conseguiu esgotar todas as falácias saloias existentes e inventar algumas novas. O ano era 1958, o livro era Lolita, e o chorrilho de disparates pode ser lido aqui. Aconselho-vos a ter sais de frutos à mão.)

quinta-feira, novembro 23, 2006

Amazon surfing



Não só não chegou hoje, como poderia muito bem ter dado origem a um incidente diplomático, de consequências incalculáveis: "Usually dispatched within 10 to 14 days", é a descontraída mensagem dos lacaios de Sadi Carnot no site da Amazon, escassas seis semanas depois de me terem convencido a enveredar pela via do pre-ordering, uma modalidade de compra tão entusiasticamente publicitada que o cliente mais crédulo fica convencido de que o livro lhe chegará às mãos mesmo antes de ser escrito.
Quem apanhou um grande susto foi o meu carteiro, que não estava nada à espera de me encontrar sentado no chão, à porta do apartamento, pela segunda manhã consecutiva. (Mas o susto não foi suficiente para o impedir de reparar nas minhas olheiras, que comentou com o seu cáustico tom de carteiro).
Depois da inevitável troca de e-mails ("Dear Amazon Customer Services person, I am shocked, completely shocked by your wilful misrepresentation of, etc, etc....) acabei por cancelar a encomenda original, e fui até à Waterstones mais próxima, onde o livro estava disponível desde a semana passada.
Enfim, o livro já cá está, num altar expressamente construído para a ocasião, e não quero, de forma alguma, que esta historiazinha amarga seja interpretada como uma diatribe contra o comércio online em geral ou contra a Amazon em particular, que pretendo continuar a frequentar (assim que me passar a birra) até porque de todas as livrarias do planeta é aquela que mais se parece com a Biblioteca de Babel. Estou convencido de que cada tarde perdida a seguir links nas infindáveis listas de sugestões me vai aproximando inexoravelmente da minha Vindicación.
É certo que até lá terei de gramar muito Trueno peinado e muito Calambre de Yeso, mas até nos seus mais depauperados hexágonos virtuais, a Amazon consegue pacificar a alma do browser com pequenas carícias estéticas. Onde mais, pergunto eu, é possível encontrar um livro intitulado Surviving Divorce: A Handbook for Men, escrito por alguém chamado Gay Search?

terça-feira, novembro 21, 2006

"Nature is an anguished tangerine"


Misheard Lyrics

Against the Day


Se a Amazon não falhar, o meu exemplar de Against the Day chega amanhã. Depois, e durante uns tempos, este blog arriscar-se a ser um espaço obstinadamente monotemático.
Já agora, o excelente blog The Elegant Variation dedica o resto da semana ao "evento editorial do ano", com três dias seguidos de posts Pynchonianos . Vale a pena espreitar, que mais não seja para ler esta perturbante revelação de Carolyn Kellogg:

« (...) Oedipa first sees a drawing that looks like a muted trumpet. It may symbolize a secret mail system, which might imply many other things (then again, it might not). I had the symbol tattooed on my wrist. Some people recognize it. One day I was at Trader Joe's and the checkout guy asked me about it. "It's from a book," I said vaguely, not wanting to sound too smarty-pants. He asked about the book and I told him. "Yeah, I knew it," he said, smiling. I asked what he thought of The Crying of Lot 49, but he hadn't read it; I was the third person who'd come to his register that week with the same tattoo. Either I'm a member of a vast conspiracy (so secret that I'm unaware of it), or there are legions of Pynchon fans out there, all wearing our affiliation on our skin.»

segunda-feira, novembro 20, 2006

Manias

Sem preâmbulos:

1. Gosto de mexer os lábios enquanto leio o jornal, especialmente se estou num espaço público, mas formando palavras que dele não constem. Ler, por exemplo, o Sunday Times numa cafetaria escocesa, enquanto vou labiando em silêncio as deixas de Imogen no quarto acto de Cymbeline. Parece-me evidente que o risco de ser apanhado e confrontado com o meu logro é um dos principais impulsos desta duvidosa charada.
O que, diga-se, já esteve perto de acontecer. Numa pastelaria chamada Rizzo's, em Inverness, uma criança observou-me muito séria durante largos minutos, antes de se pendurar na gabardine da mãe (que pagava já a sua despesa), gritando: "Mommy, mommy, that man is cheating!" Mas a mãe pregou-lhe de imediato um tabefe, e o caso morreu ali. So sick I am not, yet I am not well.

2. É a mais grave, e chama-se dromomania; a infrequência dos ataques é uma misericórdia, dada a ferocidade dos mesmos. As deambulações amnésicas de Jean-Albert Dadas eram meras passeatas matinais quando comparadas com as minhas.
(Dadas, para quem não sabe, era um pacato cidadão de Bordéus, remendador de canos de gás, que um dia perdeu a memória e foi parar a Moscovo - depois de um longo périplo que o viu passar por pedinte em Viena e combater cães hidrófobos numa aldeia da Prússia - onde foi implicado numa conspiração nihilista para assassinar o czar. Foi condenado à morte por execução, destino a que se escapou graças a um improvável descarrilamento ferroviário e à perspicácia do embaixador francês à Turquia).
Pois este que vos escreve acordou um dia num apartamento alugado em Bielsko-Biała, no sul da Polónia, sem qualquer indício sobre como tinha ido ali parar, para descobrir um rasto de lama seca no soalho, e uma barra de chocolate light no parapeito da janela. Rogério Casanova! - que nunca comprou chocolates light, quer na pátria quer no degredo, e que sempre fez por evitar descampados! (Felizmente, no bolso do casaco, encontrei um bilhete de ida-e-volta.)

3. Tenho a mania de desconfiar dos gregos que trazem presentes. Especialmente dos que trazem presentes. Por sistema também desconfio dos gregos que não trazem presentes. Mas aqueles que trazem presentes é que me deixam mesmo de pé atrás.

4. Sinto-me mal, muito mal mesmo, sempre que saio de uma loja sem comprar nada, sensação que se agrava quando a pessoa que me atende é particularmente prestável e atenciosa. Esta reacção inexplicável deu origem a um ritual, que se tornou embaraçosamente regular.
Se, depois de pesar os prós e os contras, decido não adquirir o artigo, consulto o relógio e pergunto ao lojista a que horas encerra o estabelecimento. Depois da resposta, aceno com um ar resoluto e tento compor uma expressão que transmita qualquer coisa como "Esta transacção interessa-me sobremaneira, porém, antes de a concluir, há outros afazeres a que devo dedicar a minha atenção". Consumada esta curta pantomina, peço-lhe para me guardar o artigo à parte, e saio da loja em passo apressado, com a testa franzida, olhando novamente para o relógio, tentando parecer-me o mais possível com um homem com muitas tarefas para cumprir (o que é uma grande mentira, no melhor dos dias).
As minhas cidades estão cheias de vendedores ressentidos.

5. Todas as evidências o apontam: agora tenho a mania de sonhar com blogs. O sonho mais recente foi Sábado, à tardinha (já me deixei disso de dormir quando está escuro).
O lugar, creio, era o Bairro Alto. A ocasião era um jantar-convívio, onde - assim assegurava o convite que misteriosamente me chegara às mãos - estaria presente a nata da blogosfera nacional. Fiel à minha previsibilidade, eu estava atrasado. Depois de vários desvios, travessas erradas e acidentes de percurso, lá cheguei à tasquinha combinada, apenas para a encontrar quase deserta. Uma empregada sonolenta garantiu-me que não, que o jantar dos blogs ainda não tinha sequer começado e que sim, que estavam todos presentes. Conduziu-me a uma sala nas traseiras, onde estava apenas uma mesa, com dois lugares, um deles ocupado. Confuso, fui-me aproximando. O homem tinha um rosto redondo, inchado, semelhante ao do actor que interpretou o papel de J. F. Sebastian no filme Blade Runner. Não tinha braços, nem pernas, mas equilibrava-se na cadeira com desconcertante facilidade. O seu peito estava coberto com nametags, medalhas de veterania, cada uma com um nome vagamente familiar: "José Mário Silva", "Carla Quevedo", "Luis Rainha", "Rui Manuel Amaral", "Tiago Cavaco"... Ao todo, seriam mais de trinta, e compreendi sem sobressaltos (com a periclitante lógica dos sonhos) que todos aqueles nomes eram desinências de uma única mente, e que tinha na minha presença o autor de todos os blogs, excepto o meu. Não me ocorreu outra coisa senão estender-lhe uma caneta e perguntar-lhe se teria a amabilidade de me dar todos os autógrafos que fossem necessários. Assim que o fiz, senti-me enrubescer, dadas as óbvias dificuldades logísticas da operação, mas ele não se atrapalhou: aceitou a caneta com os dentes (imaculadamente brancos, notei) e escrevinhou num guardanapo a seguinte nota:
"De quem, gota a gota, vai derretendo identidades num charco borbulhante, sem nunca olvidar o que nelas é imperecível, um abraço, com amizade e respeito profissional,
Alistair Crump."

Naturalmente, não acordei nada bem disposto.


(Post-scriptum, dois dias depois: parece que tinha de passar isto a cinco pessoas. Mas entusiasmei-me tanto comigo mesmo, que acabei por esquecer os outros. Suponho que agora já é tarde. De qualquer maneira, aconselho as cinco pessoas a quem eu não passei isto a não se preocuparem muito com o assunto.)

sábado, novembro 18, 2006

Jackpot

No The Guardian de hoje, o escritor escocês Ian Rankin escreve um texto muito simpático e acessível sobre Thomas Pynchon. Tive o prazer de conhecer Ian Rankin em 2003, durante o Edinbugh International Book Festival, mas a minha tentativa de lhe roubar uma esferográfica foi espectacularmente mal sucedida, e não houve contactos subsequentes.
Mas os verdadeiros bombons pynchonianos do fim-de-semana estão guardados no The Modern Word, que conseguiu exumar uma pequena ficção epistolar que o Homem Invisível escreveu quando tinha apenas 15 anos. O estilo é surpreendentemente reconhecível, e até os temas que viriam a dominar a sua carreira futura estão lá todos, ainda que em estado embrionário. A não perder.
Por último, o cavalinho irlandês Willie Pep, apesar do seu bravo esforço na corrida das 15:50 em Ascot, não foi além de um terceiro lugar. Que a sua vida seja longa, e repleta de triunfos e de boa palha, são os meus sinceros desejos. Que insuportáveis comichões nas axilas recaiam com frequência sobre o seu incompetente e esbracejante jockey, são os meus sinceros desejos.

O escritor de obituários, privado de cafeína


Milton Friedman, o lendário canhoto magiar, unanimemente reconhecido como um dos melhores desportistas do século XX, faleceu ontem em São Francisco. Tinha 79 anos.
Oriundo de uma humilde família norte-americana, forçada pela conjuntura económica a emigrar para o Velho Mundo, o jovem Milton viria a nascer em Budapeste, a 2 de Abril de 1927.
Depois de concluir os estudos, iniciou a sua carreira profissional nas escolinhas do Kijpest, antes de se transferir para o Honvéd, onde substitui o interior-esquerdo Keynes, ídolo dos adeptos, mas fora das boas graças da Direcção. Friedman viria a retribuir a confiança em si depositada com cinco campeonatos consecutivos. É nessa altura que ganha a alcunha de "Monetarista Galopante".
Ao longo dos anos seguintes, Friedman cimentaria a sua posição como um dos mais influentes teóricos do liberalismo económico, e dono de um temível pontapé.
O seu nome fica também indelevelmente associado à Escola de Chicago, uma corrente filosófica que dominou o pensamento europeu durante as primeiras edições da Taça dos Campeões, e da qual fizeram parte, entre outros, Thomas Sowell, George Stigler, Raymond Kopa e Francisco Gento.
Friedman ganhou por nove vezes a Bola de Ouro Económica da Fundação Nobel, troféu normalmente descrito como o Óscar dos prémios de Economia.
A sua reputação viria a sofrer algumas oscilações. O seu discernimento foi seriamente questionado em 1975, quando se deslocou ao Chile, dois anos depois do golpe militar de Pinochet, e se recusou a beijar o solo na chegada ao aeroporto.
Mas já antes Friedman demonstrara a sua capacidade para ultrapassar todas as adversidades e se re-inventar constantemente. Jean-Luc Godard arrancou dele um magnífico desempenho, no papel de um irascível produtor de cinema, no filme Le Mépris (1963).
Datam dessa fugaz associação à Nouvelle Vague os rumores da sua dependência de haxixe. Consta que num acesso de paranóia psicadélica cortou um capítulo da sua Teoria Quantitativa do Dinheiro, embrulhando-o em folhas de jornal, e deixando-o à guarda de uma prostituta de Arles chamada Rachel.
Apesar de tudo, conseguiu manter e prolongar uma notável pujança física. Num recente jantar de aniversário na Casa Branca, Friedman insistiu em agradecer os comentários elogiosos do Presidente Bush com uma série de flexões de braços, para gáudio do anfitrião Billy Crystal e dos muitos jornalistas presentes.
Foi só nos últimos meses de vida que a doença lhe manietou os hábitos e lhe desfigurou as feições. Friedman recusava-se a sair de casa sem uma inquietante máscara branca, cruelmente ridicularizada pela imprensa sensacionalista. Posteriormente, começou a limitar as suas aparições públicas, preferindo martelar decrépitos pianos-de-cauda nas catacumbas da Ópera de São Francisco. O seu carismático rosto, contudo, já tinha sido imortalizado em mármore pelo escultor Krésilas.
A sua última palavra (segundo uma testemunha misteriosa cujos olhos fulguram como carvões em parques de estacionamento subterrâneos) foi Rosebud.
Rosebud.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Écharpes semi-cinéfilas, toutinegras com catarro, e outros problemas

Por vezes, ao reler o que aqui foi postado em certas madrugadas, insinua-se em mim a dúvida: foi ou não o Pastoral Portuguesa assaltado por esquadrões de hackers deturpadores da realidade, metódicos na sua malícia e implacáveis na sua insolência?
A resposta a essa questão poderia servir de alavanca a coisas interessantíssimas, mas, francamente, usar as circunstâncias como desculpa para fracassos pessoais é avenida moral de treinador de futebol, não de exilado com sofá novo. Portanto limito-me a usar este post vespertino- numa altura em que me sinto inusitadamente sadio, lúcido, confiante - para dizer aquilo que tem de ser dito:

. as insónias passadas num sofá são completamente diferentes das passadas na cama, especialmente quando o ecrã do telemóvel se ilumina de repente às quatro da manhã, produzindo num tecto até então monotonamente branco um efeito-sombra semelhante à cabeça de uma toutinegra com um cigarro no bico;

. da diferença entre um chibo e um badalo: um chibo é específico nas suas denúncias, enquanto o badalo é estridente, mas vago;

. a senhora que limpa as escadas e corredor do meu prédio (com aspirador, já que todo o complexo é alcatifado) estendeu-me hoje um metafórico cachimbo da paz, depois de um lamentável desentendimento em Agosto ter amargado a nossa relação durante os últimos meses: lançou-me um sorriso pleno de solidariedade e simpatia quando me viu entalar os dedos na portinhola do correio - sorriso que, suspeito, manteve sem esforço durante o resto do dia;

. a écharpe que estrangulou Isadora Duncan fora-lhe oferecida pela mãe de Preston Sturges;

. "a vida é uma estrada bifurcada"™;

. segundo Plutarco, Alcibiades deu um murro a Hipponicus, não por estar enfurecido, ou ter qualquer disputa com ele, mas apenas "pela piada do gesto, e por ter apostado com alguns companheiros". Da próxima vez que for a Newmarket e meter umas libras numa pobre pileca envelhecida, vou pensar no arco evolutivo do meu hobby de fim-de-semana e sentir-me-ei um bocadinho mais civilizado;


(Pois, e pediram-me que liste aqui cinco manias minhas; asseguro a desafiante que de imediato lancei mãos à obra, encontrando-me já na fase derradeira, que implica seleccionar as menos abomináveis da pré-lista de setenta e oito. Mas penso que uma, apesar de recente, é óbvia: escrever posts cujo título é mais interessante que o conteúdo.)

quinta-feira, novembro 16, 2006

Eternal Life

...And I feel them drown my name
So easy to know and forget...

(Jeff Buckley, que completaria amanhã 40 anos)

Preemptive self-destruction

Antes que a retaliação anagramática vire moda, decidi tomar uma medida preventiva e revelar em exclusivo que Rogério Casanova é um anagrama de O Escravo na Orgia.
Agora façam as trocazinhas de letras que quiserem, porque não há potencial remix de "Pastoral Portuguesa" capaz de piorar esta situação.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Schwarzenegger pop



(O melhor sotaque da história da música. Nico, ao vivo em Manchester, em 1985)

terça-feira, novembro 14, 2006

Timeo hominem unius libri

Tive recentemente a oportunidade de rever o filme Dirty Dancing e reparei num pormenor que me tinha passado despercebido das primeiras sete vezes: um livro é usado como adereço de suprema importância. A dada altura, o empregado de mesa Robbie, esse verdadeiro meliante que tantos estragos provoca em vidas alheias, está à conversa com Baby, e sela definitivamente o seu egoísmo destituído de escrúpulos produzindo uma cópia do The Fountainhead, de Ayn Rand, dizendo: "Baby... Some people count and some people don't. Read it. I think it's a book you'll enjoy, but make sure you return it; I have notes in the margin."
Esta estenografia visual não me parece um recurso cinematográfico particularmente condenável; direi até que há formas bem mais ineptas de condensar a essência de uma personagem. O fraquinho Unfaithful, de Adrian Lyne, por exemplo, só teria a ganhar em economia narrativa, caso a Diane Lane entrasse em cena com um livro de John Updike debaixo do braço. E acho quase imperdoável que tenham sido feitos três (ou quatro?) filmes da série American Pie, sem o Portnoy's Complaint ter aparecido nas mãos felpudas de um único personagem.

Uma última nota, encharcada em esperanças:
Foi recentemente anunciado que uma adaptação para cinema de Atlas Shrugged, o último e mais famoso romance de Rand, está já em fase de pré-produção. Brad Pitt vai interpretar o papel de John Galt e Angelina Jolie o de Dagny Taggart. Julgo que esta conjugação de talento em bruto não pode falhar. Se os Deuses da grande comédia nos favorecerem, o projecto será levado a bom porto pela dupla Bay/Bruckheimer.
E a bem do equilíbrio cósmico, haverá melhor maneira de semaforizar o decadente individualismo e a dicotomia futurismo/nostalgia de John Galt do que filmá-lo, num momento crucial, a sacar do bolso uma anacrónica edição em dvd do Dirty Dancing?

Venham mais cinco

Seguramente impressionados com o sucesso que as periódicas "listas de 5" do Pastoral Portuguesa costumam ter junto dos leitores, o New York Times decidiu imitar-nos, pedindo a 22 personalidades do mundo da comédia (entre as quais Ricky Gervais e Christopher Guest) que elaborassem uma lista de cinco filmes cómicos que levariam para a proverbial ilha deserta. As respostas podem ser encontradas aqui.
Ainda algo fascinado com as dificuldades logísticas inerentes ao visionamento de Dvd's numa ilha deserta, o Pastoral Portuguesa junta-se à festa, deixando aqui uma lista provisória e em relação à qual até já se exibem alguns sinais de arrependimento. Se alguém tiver ideias melhores, estamos receptivos a sugestões, ou mesmo a insultos.

The Big Lebowski (Joel Coen, 1998)
The Philadelphia Story (George Cukor, 1940)
Life of Brian (Terry Jones, 1979)
Bullets Over Broadway (Woody Allen, 1994)
Bringing Up Baby (Howard Hawks, 1938)

(Um breve post-scriptum contra-canónico para referir que, na ilha deserta, a ausência dos irmãos Marx nos incomodaria muito menos que a ausência de Preston Sturges.)

domingo, novembro 12, 2006

Cinco listas, cinco! (bis)

5 personagens ficcionais cujo nome começa por Q:

. Peter Quint (The Turn of the Screw)
. Mistress Quickly (Henry IV & The Merry Wives of Windsor)
. Alan Quatermain (King Solomon's Mines)
. Hank Quinlan (Touch of Evil)
. Margaret Quartertone (Gravity's Rainbow)


5 melhores livrarias da Grã-Bretanha:

. Maxine's, em Llangollen
. Foyles, em Londres
. Hay Cinema Bookshop, em Hay-on-Wye
. McNaughtan's, em Edimburgo
. John Sandoe Books, em Londres


5 feriados inexistentes:

. Dia dos Paradoxos de Zenão
. Dia do Colete de Forças
. Dia das Mil Astúcias da Raposa
. Dia da Imitação de Cristo
. Dia do Formalismo Russo


5 "cover versions" superiores aos originais:

. «You Tore Me Down», Yo La Tengo (original: Flamin' Groovies)
. «It's All Over Now, Baby Blue», Them (original: Bob Dylan)
. «Hurt», Johnny Cash (original: Nine Inch Nails)
. «Listen, the Snow is Falling», Galaxie 500 (original: Yoko Ono)
. «Needles & Pins», Ramones (original: The Searchers)


5 más ideias:

. inventar o Betamax
. publicitar a New Coke
. financiar o Heaven's Gate
. invadir a Rússia
. dar ouvidos à Serpente

Tenham a bondade de me auxiliar

Li algures esta elegante comparação: "Jonny Greenwood [guitarrista dos Radiohead] toca guitarra como um domador de leões cujo chicote vai encurtando com cada chicotada".
Não me lembro quando foi, nem onde a li, nem quem a escreveu - situação nada incomum, mas especialmente frustrante nos casos em que a frase merece que o seu autor volte a ser lido.
Quem foi? Alexis Petridis? Greil Marcus? Um cromo qualquer do Blitz? Alguém ajuda esta pobre alma?

sexta-feira, novembro 10, 2006

A Ordem Natural das Coisas

Admito desde já que não sei explicar racionalmente a satisfação que tive ao dar com um artigo sobre o escritor americano Winston Churchill, mas posso assegurar que essa satisfação foi multiplicada com a descoberta de Thomas Mann, um diplomata da administração de Eisenhower.
Estará esta promiscuidade onomástica circunscrita à esfera anglo-saxónica? Para quando um tecnocrata venezuelano chamado Alves Redol? Um ficcionista cyberpunk paraguaio chamado Octávio Pato?
Wikipedia, Mundo: a bola está no vosso court.

Esta noite ouve-se


Backside melts into the sofa
My world, my TV, and my food
Besides listening to my belly gurgle
There ain't much else to do
Yeah, I sweat a lot
Pants fall down every time I bend over
And my feet itch
Yeah - I married a scarecrow

I hate you
Talkin' to myself
Everybody's starin' at me
I'm only bleedin'

Someone taps me on the shoulder every 5 minutes
Nobody speaks English anymore
Would anyone tell me if I was gettin' stupider?

I hate you
Talkin' to myself
You don't feel it after awhile
You take the beating

And I'm a swingin' guy
Throw a belt over the shower curtain rod
And swing - - -
Toss me inside a hefty
And put me in the ground

A drink needs me - I don't
I ain't about to guzzle no tears
So kiss my ass
Newscasters, cockroaches, and desserts

I hate you
Talkin' to myself
Everybody's starin' at me
I'm only bleedin'

Where are the kids?
maybe pregnant or on drugs or on welfare on top of the world on the honor roll on parole on the Dodgers on the back of milk cartons on stakes in the middle of cornfields on covers of future history books on old lady's mantles walkin' on water nailed on crosses

I think it's time I had a talk with my kids
I'll just tell 'em what my daddy told me:
"You ain't never gonna amount to nothing"

Faith No More, «RV», Angel Dust


(A primeira coisa que é preciso dizer é que Mike Patton é um génio - palavra que normalmente não costuma ser aplicada a homens adultos que vão para cima de um palco exigir aos berros que lhes atirem garrafas de plástico cheias de urina. A segunda coisa que é preciso dizer é que ele tem uma das melhores vozes masculinas dos últimos 25 anos.
Com esses dois assuntos preliminares tratados, também não é despropositado referir que os Faith No More têm melhores canções, mas nenhuma mais engraçada. «RV» é essencialmente uma rotina de 'stand-up', transformada num pequeno tesouro pop pela verve lírica e extraordinária versatilidade vocal de Patton - que abarca tudo, desde o baixo cantante misantrópico ao incoerente resmungar trailer-tráshico. O álbum, já agora, é uma obra-prima. Essa é terceira coisa que é preciso dizer.)

quinta-feira, novembro 09, 2006

Ele quer aproveitar este momento para...

A todos os blogs que a ele se referiram nos últimos dias, o Pastoral Portuguesa quer agradecer a atenção e desejar uma longa, saudável e proveitosa vida. Quer também estender os mesmos agradecimentos e desejos a todos os que, por recato ou timidez, não mencionaram directamente este espaço, limitando-se a pensar nele com carinho enquanto comiam tangerinas, ou a murmurar docemente o seu nome durante o sono ("...Pastoral Portuguesa, oh Pastoral Portuguesa...").
Porque apesar de não brandir site-meter, este blog tem um ego muito complicado. E sempre que o sujeitam a blasfemos jogos de palavras, ou lhe dedicam quadros de Remedios Varo, ou lhe sugerem um maior cuidado com a alimentação dos pombos, é como se mais uma page-view tombasse ruidosamente no seu coraçãozinho repleto de inventários.

(Quero ainda alertar o Samuel Úria: há por aí certos blogs que, quando colocados num gira-discos e tocados ao contrário, emitem mensagens satânicas. Mas não digo quais são.)

quarta-feira, novembro 08, 2006

...he wondered what it might mean about him...

«Corde had become attached to Gigi - her distracted, flustered charm, her classic straight nose and full Egyptian eyes. Even the permanent wave, gone wrong at the back. He liked the old girl a lot. As for her, she had noted how he tended the cyclamens. He watered them from beneath, setting the pots in bowl of water. She said to him, "There is not much to offer you. The one thing we can be lavish of is these flowers." He wondered what it might mean about him as a 'serious adult' that the flowers should claim so much of his attention.»

(Saul Bellow, The Dean's December)

Rescaldo

O calçado era, obviamente, defeituoso. As minhas previsões para a Câmara dos Representantes foram estilhaçadas nos últimos minutos - a maioria Democrata parece ser na ordem dos 21/24 lugares. Quanto ao Senado, vai permanecer sob controlo Republicano. A minha aposta de 51-49 pode muito bem vir a ser confirmada nos próximos dias, depois do inevitável carnaval da recontagem na Virginia, mas Jim Webb parece estar a querer estragar-me o Natal.
Depois deste inédito interregno político, o blog volta ao normal já a partir de amanhã. Não se voltará a falar de corridas nas quais não participem equídeos. A propósito: o cavalinho Dichoh, na corrida das 15:20 em Wolverhampton parece-me uma aposta muito sólida.

(... e obrigado ao João Caetano por tornar a insónia ligeiramente menos solitária.)

(update matinal: uma sesta de hora e meia e lá se foi o Natal; possivelmente o revéillon. Webb e McCaskill chegaram-se à frente, parece que de forma decisiva, e até a vantagem na Câmara aumentou para +30. Cavalinhos, daqui para a frente, e nada mais. Deixar os political futures para gente crescida, com padrões de sono normais. I so got killed, lolol)

terça-feira, novembro 07, 2006

Sparkles from the Wheel



...Diffusing, dropping, sideways-darting, in tiny showers of gold,
Sparkles from the wheel.

Walt Whitman

Bandarrismo

Depois de analisar profunda e demoradamente várias solas, línguas, palmilhas e contrafortes de sapatos (a amostra foi representativa), eis as minhas previsões:

Senado: 51-49 para os Republicanos
Câmara dos Representantes: 224-211 para os Democratas

(Nota aos amigos e familiares preocupados: a margem de erro é suficiente para salvar o fundo de maneio para os presentes de Natal)

John Galt says: I'm getting killed, lol

Finalmente, um bom motivo para uma noite branca: as eleições intercalares nos US.
Para quem não sabe o muito que está em jogo nestas eleições, podem encontrar aqui um breve resumo. Quanto a sites informativos para acompanhar o decorrer dos acontecimentos, aconselho este e este, já que a minha fiel William Hill, ao contrário de 2004, não se vai meter ao barulho.
O site da TradeSports é especiamente apetecível. Se tiverem tempo, ó caros Timóteos, vão dar uma espreitadela ao chatroom, onde vos aguardam veras pérolas de surrealismo minimalista:

****73NJ (in VIP Room): I think I should run for office

EZMoney28 (in VIP Room): I hate close calls.. I either want to get beat by a few points or win by a few so I dont feel jobbed

EZMoney28 (in VIP Room): 6 mins... Looks like its going the wrong way, Buc

BUCWILD (in VIP Room): I almost pulled on the 100's, but too late

BeltwayBarron (in VIP Room): Chafee is a great guy, and might win, but I wouldn't pay 39 for him

Huge Play: And lo and behold, the 5 point spread that made no sense is gone.

****73NJ (in VIP Room): +74.92

****73NJ (in VIP Room): oh man... +75.32

J0hn Galt: I'm getting killed, lol

caveatBettor (in VIP Room): I would get all the drunk vote

ng140 (in VIP Room): guys what are your thoughts on the GOP taking both houses at 17?

BeltwayBarron (in VIP Room): todd... ugh,. you bought high and will have to sell low

caveatBettor (in VIP Room): lincoln not so good

J0hn Galt: I'm sooo getting killed, lololol

segunda-feira, novembro 06, 2006

Remember, remember the 5th of November

Ainda se goza, por aqui, um empolgante fim-de-semana.
Muitos de vós saberão que há quatrocentos anos atrás, um bombista incompetente foi apanhado nas caves da Câmara dos Lordes, com as suas católicas calças na sua católica mão (a mão esquerda, já que a direita acariciava com ternura um rastilho desconsolado pela humidade).
Alguns saberão também que, por causa desse faux-pas estratégico da Contra-Reforma (always overreaching ...), as pessoas civilizadas - como eu - estão impedidas de esboçar qualquer investida na direcção de uma boa noite de sono.
Porque do lado de fora das janelas, há meninos com foguetes pirotécnicos, e esses foguetes sibilam nas suas sapudas mãozinhas Protestantes, e explodem, segundos depois, num piroso aguaceiro de faíscas Protestantes.
Para não terminar o post neste tom carrancudo, deixo aqui uma informação útil: o elemento químico a adicionar à mistura explosiva, caso se pretenda um fogo de cor verde, é o Bário, que foi descoberto em 1808 por Sir Humphry Davy, mais conhecido pelas suas experiências com óxido nitroso (vulgo gás hilariante).
E como eu precisava, em noites como esta, de uma boa dose de óxido nitroso.

Musil


«Sinto, acima de tudo, que a minha arrogância está a abandonar-me. Estou menos amistoso, tenho menos élan. Sinto-me vazio e trabalho apenas por desespero. O meu comportamento sofre por causa disso. Estou derrotado. Em comparação com qualquer outra pessoa sinto-me estúpido. Sou desastrado, e não sou capaz de reagir ou responder a um insulto da maneira mais adequada. Algumas horas depois, sinto-me novamente arrogante, recluso, marginal, sensível, feliz.»


(Fragmento dos intermináveis diários de Robert Musil, nascido a 6 de Novembro de 1880. O Homem Sem Qualidades foi o primeiro nome em que pensei para este blogue, mas já estava ocupado. Depois tentei O-Homem-Sem-Qualidades, mas também a esse cheguei tarde. Pastoral Portuguesa foi uma resignada sétima escolha, que teve muito pouco de escolha.
Musil acharia todo este processo não apenas normal, mas inevitável.)

domingo, novembro 05, 2006

Se beber, não blogue


Nota: este blog não sugere, nem muito menos encoraja, a adesão à referida iniciativa. Limita-se a transmitir uma pepita informativa que se lhe afigura merecedora de alguns sorrisos tolerantes e pouco mais. O álcool como ferramenta artística é uma falácia que se espera estar já mais do que desfalaciada. Como lubrificante social e desbloqueador de silêncios nunca deixará de ser útil, mas por favor mantenham-no bem longe dos teclados. Se há coisa de que a blogosfera não necessita é de um processo de Hemingwaização.
Para robustecer este ponto, decidiu-se subordinar o resto do post à enumeração de algumas obras-primas da comédia muito do agrado aqui do "Pastoral Portuguesa", e todas escritas - tanto quanto se sabe - sem recurso a quaisquer substâncias intoxicantes:

Portnoy's Complaint, Philip Roth
Pnin, Vladimir Nabokov
Almas Mortas, Nikolai Gogol
Margarita e o Mestre, Mikhail Bulgakov
Mason & Dixon, Thomas Pynchon
The Day of the Locust, Nathanael West
Something Happened, Joseph Heller
Money, Martin Amis
The Life and Opinions of Tristram Shandy, Laurence Sterne
I Served The King of England, Bohumil Hrabal
A Consciência de Zeno, Italo Svevo
The Dog of the South, Charles Portis
Still Life With Woodpecker, Tom Robbins
Visions Before Midnight, Clive James
Parliament of Whores, P. J O'Rourke
Homage to Daniel Shays, Gore Vidal
Valis, Philip K. Dick
Mother Night, Kurt Vonnegut
The Devil's Dictionary, Ambrose Bierce
A Religious Orgy in Tennessee, H. L. Mencken
O Livro de Job

Eu

Isto pode parecer algo despropositado, mas não me ocorreu nenhum contexto onde pudesse enquadrar melhor a frase: já faltou mais para que passe a escrever o pronome "eu" entre aspas.

Breve momento nostálgico


De todas as horas que já perdi na minha vida com coisas inúteis, poucas terão sido mais agradáveis do que as que passei a ser futebolisticamente humilhado numa Mega Drive da Sega, às mãos do meu amigo Paulo Sérgio, no longínquo Verão de '94.

Ouro aos bandidos

A anárquica trupe responsável pela série «Grand Theft Auto» acaba de dar um argumento de peso aos moralistas que fazem campanhas sazonais pela incineração do jogo em praça pública: convidaram Phil Collins a emprestar a voz a uma personagem do novo episódio, Vice City Stories.
Todos os que, como eu, se abespinham instintivamente - e desatam a citar David Hume - sempre que vêem artefactos culturais (seja de que prateleira for) apontados como causas de um tiroteio qualquer, vão agora ter de pensar duas vezes antes de puxarem das habituais contra-respostas. É que um jogo de computador com Phil Collins na banda sonora pode muito bem ser capaz de corromper a juventude.
Há aqui um argumento sério a fazer sobre os limites da alusão irónica na cultura popular, mas terá de ser feito por outra pessoa, porque eu passei da indignação à indiferença, sem sequer passar pela resignação, no curto espaço de tempo que demorou a escrever este post.

sábado, novembro 04, 2006

Esta noite ouve-se


Well, meet me, Jesus, meet me, meet me in the middle of the air
If these wings should fail me, Lord, won't you meet me with another pair
Well, well, well, so I can die easy
Well, well, well, well, well, well, so I can die easy
Jesus goin' make up
Jesus goin' make up
Jesus goin' make my dyin' bed

Blind Willie Johnson, «Jesus Make Up My Dyin' Bed», Dark Was The Night

(Um guitarrista rebelde de Sacavém chamado Luciano [deste lembro-me do nome, vá-se lá saber porquê] passou alguns meses entre 1992 e 1993 - com paciência de santo - a tentar ensinar-me a extrair de uma guitarra algo mais do que arrepios de indignação. Não foi bem sucedido, mas não por falta de ânimo ou boa vontade. Ficaram-me, na memória muscular, apenas os primeiros acordes do «Stairway to Heaven», o que não é grande motivo de orgulho: creio que alguns estudos científicos recentes mostraram que 95% da raça humana sabe tocar os primeiros acordes do «Stairway to Heaven», mesmo aqueles que nunca pegaram numa guitarra.
Mas o maior legado que o Luciano me deixou foi um indecoroso entusiasmo por três bluesmen da velha guarda (o blues de Chicago não me diz muito): Robert Johnson, Skip James e sobretudo, Blind Willie Johnson.
Diz-se que os Delta bluesmen não têm biografias, têm mitos. O mito de Blind Willie faz-se da sua primeira guitarra, construida por ele a partir de uma caixa de charutos; do canivete que usava para o efeito "slide"; de um blues sobre Sansão e Dalila que cantou à porta de um tribunal de New Orleans, e que causou um motim; de uma carreira de sucesso cortada pela Grande Depressão, que o forçou a cantar na rua, dependente de esmolas; e da sua morte prematura, de pneumonia, depois te ter dormido à chuva, nas ruínas de uma casa incendiada.
Uma das suas composições, o hipnótico «Dark Was The Night, Cold Was The Ground», foi usado por Pasolini em A Paixão de São Mateus, e viria mais tarde a servir de inspiração à soberba banda sonora de Ry Cooder para um dos filmes da minha vida.
Desafio qualquer possuidor de credenciais humanas a ouvir «Dark Was The Night, Cold Was The Ground» e a negar subtis movimentos capilares e dérmicos. Pessoalmente, cada vez que ouço isto sinto-me mais amnésico que nunca.)

quinta-feira, novembro 02, 2006

...the sleeping life of plants...


«It was the cyclamen plants that absorbed him hypnotically - the dark cores of the pink and the more purple circles of the white, the petals turned back, the leaves mottled in many shades of green. They were said by Larousse to belong to the primrose family. They grew from corms. Someone had once suggested to him that these green beings produced their leaves and flowers in a state of sleep, perfection devoid of consciousness, design without nerves. Put a handful of dirt in the pot, and they came up with this beauty. Who had said that, about the sleeping life of plants? Brooding over the cyclamens, he often dozed; he felt too hazy to remember anything. He thought, if you had enough of these plants in a room and watered them with a Nembutal solution, they might cure insomnia, make a dream atmosphere.»

(Saul Bellow, The Dean's December)

Remodelação

A minha lista de blogs portugueses estava, com toda a franqueza, num estado lamentável. Penso ter cumprido hoje as minhas obrigações de senhorio. Juntei alguns links que já lá deviam estar, e restaurei outros que tinha apagado, por puro desmazelo, na última remodelação. Também alterei ligeiramente o alinhamento, usando um baralho de cartas KEM, um par de dados azuis, e uma chave matemática complicadíssima. Como ainda tinha tempo disponível (um problema constante, que já me trouxe muitos dissabores) decidi desmontar cada um dos nomes e brincar aos anagramas. Ora, isto pode muito bem ser tão aborrecido como soa, mas garanto que não é tão fácil como parece. O processo, agora concluído, não correspondeu, de todo, às minhas expectativas iniciais. Nenhuma das novas designações me parece apresentar uma melhoria indiscutível sobre o original - nalguns casos, bem pelo contrário. É triste, por exemplo, ver o excelente blog do Pedro Mexia reduzido a um concupiscente detergente para a roupa. Ou o Bomba Inteligente encapsulado numa justaposição nada feliz de um repórter fictício belga com a ambiciosa empreitada dos descendentes de Noé. E que dizer da rapaziada do Aspirina B, envolvidos numa fútil campanha contra aquela simpática cidade da Toscânia? Duvido que alguém tenha saído a ganhar desta sopa de letras.
Uma nota final: os coca-bichinhos entre vós podem ter reparado que o primeiro dos links não recebeu o mesmo tratamento anagramático aplicado aos seus parceiros de lista. A razão é simples: "Um Blog Sobre Kleist" é já de si um anagrama, embora para o decifrar seja necessária fluência numa obscura língua morta; e a única pessoa que a domina é o autor de "Um Blog Sobre Kleist".

quarta-feira, novembro 01, 2006

Jogar às escondidas


... I turn'd me round, and to each shade
Dispatch'd an eye,
To see if any leaf had made
Least motion or reply;
But while I list'ning sought
My mind to ease
By knowing, where 'twas, or where not,
It whisper'd “ Where I please.” ...

(Henry Vaughan, 1650)

In Pace Requiescat

Numa das suas cartas (às quais infligi abomináveis erros de tradução nas aulas de Latim), Cícero menciona uma curiosa superstição popular romana: ler pedras tumulares causa perda de memória.
Eu, que perdi muitas horas em Bunhill Fields e Highgate, no Montparnasse e no Père Lachaise, no Szcecin e no Nieuw Kerk, na Kapuzinergruft dos Habsburgos e no cemitério judeu de Praga, sou a prova viva de que o povo tem sempre razão, mesmo quando não sabe o que diz.
Parece-me também da mais elementar justiça poética que a passagem em questão seja a única lembrança de Cícero a sobreviver ao final da minha carreira académica. As outras descansam em paz, na companhia de inúmeras datas de aniversário, nomes de antigos professores, passagens não-sublinhadas de certos livrinhos da colecção Argonauta, e até - confesso-o - do propósito original deste post, já irrevogavelmente perdido.

Este post não é um anagrama

Eu, asno, pasto amargamente.