Sem preâmbulos:
1. Gosto de mexer os lábios enquanto leio o jornal, especialmente se estou num espaço público, mas formando palavras que dele não constem. Ler, por exemplo, o Sunday Times numa cafetaria escocesa, enquanto vou labiando em silêncio as deixas de Imogen no quarto acto de Cymbeline. Parece-me evidente que o risco de ser apanhado e confrontado com o meu logro é um dos principais impulsos desta duvidosa charada.
O que, diga-se, já esteve perto de acontecer. Numa pastelaria chamada Rizzo's, em Inverness, uma criança observou-me muito séria durante largos minutos, antes de se pendurar na gabardine da mãe (que pagava já a sua despesa), gritando: "Mommy, mommy, that man is cheating!" Mas a mãe pregou-lhe de imediato um tabefe, e o caso morreu ali. So sick I am not, yet I am not well.
2. É a mais grave, e chama-se dromomania; a infrequência dos ataques é uma misericórdia, dada a ferocidade dos mesmos. As deambulações amnésicas de Jean-Albert Dadas eram meras passeatas matinais quando comparadas com as minhas.
(Dadas, para quem não sabe, era um pacato cidadão de Bordéus, remendador de canos de gás, que um dia perdeu a memória e foi parar a Moscovo - depois de um longo périplo que o viu passar por pedinte em Viena e combater cães hidrófobos numa aldeia da Prússia - onde foi implicado numa conspiração nihilista para assassinar o czar. Foi condenado à morte por execução, destino a que se escapou graças a um improvável descarrilamento ferroviário e à perspicácia do embaixador francês à Turquia).
Pois este que vos escreve acordou um dia num apartamento alugado em Bielsko-Biała, no sul da Polónia, sem qualquer indício sobre como tinha ido ali parar, para descobrir um rasto de lama seca no soalho, e uma barra de chocolate light no parapeito da janela. Rogério Casanova! - que nunca comprou chocolates light, quer na pátria quer no degredo, e que sempre fez por evitar descampados! (Felizmente, no bolso do casaco, encontrei um bilhete de ida-e-volta.)
3. Tenho a mania de desconfiar dos gregos que trazem presentes. Especialmente dos que trazem presentes. Por sistema também desconfio dos gregos que não trazem presentes. Mas aqueles que trazem presentes é que me deixam mesmo de pé atrás.
4. Sinto-me mal, muito mal mesmo, sempre que saio de uma loja sem comprar nada, sensação que se agrava quando a pessoa que me atende é particularmente prestável e atenciosa. Esta reacção inexplicável deu origem a um ritual, que se tornou embaraçosamente regular.
Se, depois de pesar os prós e os contras, decido não adquirir o artigo, consulto o relógio e pergunto ao lojista a que horas encerra o estabelecimento. Depois da resposta, aceno com um ar resoluto e tento compor uma expressão que transmita qualquer coisa como "Esta transacção interessa-me sobremaneira, porém, antes de a concluir, há outros afazeres a que devo dedicar a minha atenção". Consumada esta curta pantomina, peço-lhe para me guardar o artigo à parte, e saio da loja em passo apressado, com a testa franzida, olhando novamente para o relógio, tentando parecer-me o mais possível com um homem com muitas tarefas para cumprir (o que é uma grande mentira, no melhor dos dias).
As minhas cidades estão cheias de vendedores ressentidos.
5. Todas as evidências o apontam: agora tenho a mania de sonhar com blogs. O sonho mais recente foi Sábado, à tardinha (já me deixei disso de dormir quando está escuro).
O lugar, creio, era o Bairro Alto. A ocasião era um jantar-convívio, onde - assim assegurava o convite que misteriosamente me chegara às mãos - estaria presente a nata da blogosfera nacional. Fiel à minha previsibilidade, eu estava atrasado. Depois de vários desvios, travessas erradas e acidentes de percurso, lá cheguei à tasquinha combinada, apenas para a encontrar quase deserta. Uma empregada sonolenta garantiu-me que não, que o jantar dos blogs ainda não tinha sequer começado e que sim, que estavam todos presentes. Conduziu-me a uma sala nas traseiras, onde estava apenas uma mesa, com dois lugares, um deles ocupado. Confuso, fui-me aproximando. O homem tinha um rosto redondo, inchado, semelhante ao do actor que interpretou o papel de J. F. Sebastian no filme Blade Runner. Não tinha braços, nem pernas, mas equilibrava-se na cadeira com desconcertante facilidade. O seu peito estava coberto com nametags, medalhas de veterania, cada uma com um nome vagamente familiar: "José Mário Silva", "Carla Quevedo", "Luis Rainha", "Rui Manuel Amaral", "Tiago Cavaco"... Ao todo, seriam mais de trinta, e compreendi sem sobressaltos (com a periclitante lógica dos sonhos) que todos aqueles nomes eram desinências de uma única mente, e que tinha na minha presença o autor de todos os blogs, excepto o meu. Não me ocorreu outra coisa senão estender-lhe uma caneta e perguntar-lhe se teria a amabilidade de me dar todos os autógrafos que fossem necessários. Assim que o fiz, senti-me enrubescer, dadas as óbvias dificuldades logísticas da operação, mas ele não se atrapalhou: aceitou a caneta com os dentes (imaculadamente brancos, notei) e escrevinhou num guardanapo a seguinte nota:
"De quem, gota a gota, vai derretendo identidades num charco borbulhante, sem nunca olvidar o que nelas é imperecível, um abraço, com amizade e respeito profissional,
Alistair Crump."
Naturalmente, não acordei nada bem disposto.
(Post-scriptum, dois dias depois: parece que tinha de passar isto a cinco pessoas. Mas entusiasmei-me tanto comigo mesmo, que acabei por esquecer os outros. Suponho que agora já é tarde. De qualquer maneira, aconselho as cinco pessoas a quem eu não passei isto a não se preocuparem muito com o assunto.)