segunda-feira, março 29, 2010

Vibrações em JavaScript

Durante a pavorosa conflagração que decidiu conflagrar a meros centímetros do meu nariz, dei por mim a confrontar corajosamente a minha própria mortalidade. Demonstrando típica ausência de egomania, pensei não em mim, mas no povo: se eu fenecesse, o que seria de vocês? Será possível moderar comentários a partir do Além? Será possível recordar passwords terrenas? Se a minha essência espiritual emitir um post ilustrado através de vibrações cósmicas, algum funcionário do Blogger será capaz de o interceptar, ou isso só no Sapo? Diversos monoteísmos tentaram obliquamente responder a estas perguntas, mas há mistérios metafísicos que só a televisão é capaz de elucidar. Felizmente, alguém na TVI deve ter passado recentemente por uma provação semelhante à minha, e decidiu transmitir um programa sobre o assunto.
A televisão anda há anos a explorar tangencialmente o contacto dos vivos com os mortos, seja através de séries ficcionais (Six Feet Under, Ghost Whisperer) ou de programas de entretenimento apresentados por hologramas de cadáveres (Larry King, Eládio Clímaco), pelo que a ideia de ir directo ao assunto sem eufemismos é menos revolucionária do que à partida poderia parecer. A empreitada foi enriquecida com um exemplo perfeito de casting tecnológico: um amplificador natural, capaz de transportar as suas vastas tonelagens decibélicas até ao estuário do Estige e aos arenques do Aqueronte, a voz de Júlia Pinheiro é possivelmente o instrumento mais adequado para qualquer tentativa de intimidar falecidos a falar on the record.
Foi, portanto, uma moderada desilusão descobrir que Júlia Pinheiro estaria presente apenas como tradutora («He's curious. Are you concentreite?»), e que o diálogo com os mortos estaria a cargo de uma médium britânica chamada Anne Germain. A necessidade de uma tradutora para os vivos, aliada ao facto de os mortos em questão serem aparentemente monolingues, tornou inviável qualquer manobra para evitar a pergunta óbvia: o contacto vai ser efectuado em que língua? Júlia Pinheiro apressou-se a esclarecer que no Além a língua "não é importante", uma vez que se comunica através de uma linguagem universal, como o Esperanto ou o JavaScript.
Nos anos 20, quando o espiritualismo ainda conquistava pentacampeonatos, ilusionistas profissionais como Houdini tentavam pacientemente explicar que falar com mortos era uma actividade equivalente a transformar um lenço numa pomba ou serrar assistentes ao meio, enquanto vultos do racionalismo, como os editores da Scientific American ou Sir Arthur Conan Doyle, se desdobravam em manifestações públicas de credulidade, demonstrando que o método científico é um instrumento de aplicabilidade limitada.
Francisco Moita Flores foi chamado ao palco para cumprir a mesma função de Conan Doyle: empregar todas as suas faculdades de raciocínio dedutivo no acto de ficar tão boquiaberto que uma inflamação auto-induzida dos seios perinasais provoque uma sinusopatia intelectual capaz de cancelar as mesmas faculdades de raciocínio dedutivo. A interacção proporcionou poucas oportunidades para o espanto. As tacteantes adivinhações da médium destacavam-se pela sua flagrante trivialidade, provando apenas que o dialecto formal dos mortos sofreu algumas transformações desde que os primeiros canais de comunicação foram abertos. Onde antes se expressavam por meio de fluentes epigramas vitorianos, os mortos utilizam agora uma curiosa mistura de poesia simbolista e generalização centrípeta que se vai limitando gradualmente até tropeçar numa hipótese concreta para significar.
Velhos favoritos como “sinto uma vibração” ou “sinto uma presença feminina” continuam a aparecer, por vezes em arrojadas combinações como “sinto a vibração de uma presença feminina”. A presença feminina vibratória podia perfeitamente ser Júlia Pinheiro que, após vários minutos de circunspecta tradução efectuada num volume praticamente humano parecia tão tensa como uma raquete de Roger Federer, mas Moita Flores decidiu fornecer a sua própria boquiaberta narrativa. A médium também topou logo, com admirável argúcia, que estava perante uma pessoa “muito ciosa da sua privacidade”, característica supostamente herdada da presença feminina vibratória, que agora envolvia Moita Flores com “asas de anjo”. Este feroz sentido de privacidade foi serenamente confirmado por Moita Flores - num estúdio de televisão e perante uma plateia, enquanto comunicava em diferido com a sua falecida mãe.
A médium transferiu de seguida a sua atenção para os membros do público. Uma pessoa foi informada de que alguém muito jovem pretendia fazer-lhe um link: "tenho uma vibração de muitas luzes fortes". Provavelmente uma daquelas janelas pop-up com publicidade a slot machines. Seguiram-se algumas sugestões vagas sobre alguém que estivera numa ambulância, ou possivelmente num hospital, onde "fizera muitos exames", expressão que, como sabemos através das escutas a Sócrates e Armando Vara, é código para "adquirir furtivamente um canal televisivo onde se fala com os mortos". Se se vier a provar que a extensão da conspiração para controlar os media inclui este tipo de comunicações, Pinto Monteiro ainda pode mandar destruir o Céu. Outro membro do público foi confrontado com uma fotografia que está, pelos vistos, sempre a cair - apenas a forma de o respectivo falecido dizer que está em casa. (Freddie Flinstone, salvo erro, usava o mesmo método, ainda quando estava vivo). Um motivo recorrente, aliás, era o tipo de manobras que os espíritos usam para sinalizar a sua presença: tombar fotografias, roubar brincos, espalhar penas de almofada pelo chão. Comportamentos típicos de uma criança na faixa etária dos 2-4 anos; provavelmente há espíritos que andam pela casa a roubar danoninhos do frigorífico ou a ligar a televisão no canal JimJam.
Tudo isto, evidentemente, e um bocadinho ridículo, pelos mesmos motivos que qualquer manifestação pública de extremos emocionais (amor, mágoa) é um bocadinho ridícula para qualquer pessoa que não os partilhe naquele momento. Eu, por exemplo, cada vez tenho mais dificuldades em ler poemas. Mas não me parece um sinal sociológico alarmante, nem uma razão forte para palmirasilvar a coisa, tentando sepultar a confusão debaixo de um pedagógico dilúvio de links para páginas do Skeptical Enquirer sobre "leitura a frio" ou "validação subjectiva".
Ao contrário do que parece pensar Carlos Fiolhais, este tipo de programa não é "profundamente prejudicial para as pessoas mais frágeis". As "pessoas mais frágeis" presentes no estúdio, aliás, pareceram-me todas extremamente satisfeitas com os resultados, e a forma como cada indivíduo decide processar o seu luto deve ser avaliada pela eficácia. Frágeis ou não-frágeis, quase todos nos encontramos em situações onde uma calibração da nossa incredulidade pode ter consequências positivas; como adepto de um clube condenado a ser dirigido nas próximas épocas pelo Cardeal Richelieu, eu sei isto melhor que ninguém.
O grande acto sobrenatural da noite foi mesmo o tom de voz de Júlia Pinheiro, cuja curva entoacional sofreu misteriosas variações que a destituíram de 70% dos seus decibéis habituais: nada de guinchos bruscos ou gargalhadas simultaneamente exdrúxulas, graves e agudas, sinal inequívoco de que um espírito familiar andou pelo estúdio antes do programa a esconder-lhe as anfetaminas.

terça-feira, março 23, 2010

"... And not least that of Voloshinov" (foto-reportagem doméstica)

Às 18 horas de hoje ("ontem", em terminologia humana), as minhas reflexões críticas sobre a futilidade inerente aos estratagemas da ficção pós-moderna para forjar autenticidade foram brutalmente interrompidas pelo som de pessoas a gritar fogo à janela. Mais um incidente provocado pelo incompreensível planeamento urbanístico português, que continua a construir edifícios em sítios onde um dia mais tarde há incêndios.



A resposta dos bombeiros foi rápida. Em menos de meia-hora, o Regimento de Sapadores, liderado por Ferris Bueller (foto abaixo) acolheu ao local, tendo negociado com sucesso sete viaturas mal estacionadas à porta da Pastelaria Alfacinha, um jogo de futebol à porta da mercearia, dezoito transeuntes libertários manifestando uma natural desconfiança sobre o papel do Estado, e dois pilares da EMEL.



O edifício em chamas, saliento, continuava em chamas, alguns metros à frente do espaço onde eu pondero a validade da solução meta-ficcional para os dilemas miméticos (sendo que a representação do real é sempre um acto de prestidigitação necessariamente parcial, modulado por uma entidade subjectiva - o eu - que não se pode representar a si própria sem que o processo colapse como um prédio devoluto) uma solução que implica simultaneamente representar e realçar os limites dessa representação.



Uma escada Magirus foi prontamente colocada à frente do restaurante Mesa de Frades, e erguida para a abóbada celeste, que permanecia altiva e azul-cinza, como Jesus.



É uma instituição muito especial, com créditos inigualáveis no scouting psicométrico, aquela que consegue substituir um sociopata moderado como Ricardo Sá Pinto por alguém que todas as evidências apontam ser uma mistura moderna de Robespierre e da professora da Helen Keller. Caso Costinha fosse director-desportivo em 1994, Cherbakov teria sido arrastado para o treino assim que os paramédicos conseguissem extrair a alavanca das mudanças do seu pâncreas, e teria jogado o 3-6 sob analgésicos, para bem da coesão do grupo. Quem sabe o rumo que a História teria seguido?



Entretanto o fogo continuava activo. Alguns residentes, alheios à coesão do grupo, exigiam cobardemente ser evacuados. As autoridades agiram de pronto, instalando um poderoso cordão moral para lhes bloquear a saída.



Um misterioso homem de capa fala com o pai do George.



Pouco depois das 19 horas, os bombeiros conseguiram finalmente controlar as chamas, com o auxílio de água e complexos tubos de borracha muito compridos, impedindo o alastramento aos edifícios contíguos.



«Anderson rightly upbraids linguistic or discursive imperialism, but he his himself too uncritical of Saussure, appearing to endorse his view of parole as some form of free individual contingency. On the contrary, discourse theory (and not least that of Voloshinov, in his Marxism and the Philosophy of Language) has revealed the rigorously constrained social determinations of all speech, the subject of which is never, as Anderson asserts, 'axiomatically individual' but always, as Bakhtin has shown, a dialogic subject.»



O fogo, nesta altura, desistiu, alegando não sentir a confiança e o oxigénio necessários para continuar a dar o seu contributo. Outros incêndios, em circunstâncias semelhantes, sacrificaram-se em nome da coesão do grupo, sabendo que o "nós" está acima do "eu".



O flagelo do trânsito citadino, e também um livro de Cynthia Ozick, que inclui os contos « Levitation» e «Usurpation (Other People's Stories)», sobre os quais eu tento reflectir um bocadinho, sempre que não há incêndios.



Uma profecia: num prazo máximo de seis meses, Costinha vai entrar em campo sozinho e o árbitro vai marcar um penalty a favor do Sporting, prontamente convertido pelo próprio. Vai tudo piar mais fino.

quinta-feira, março 11, 2010

He is unmarried, a keen ornythologist and motor-cyclist, goes to sea and likes shooting when he can


Como devem proximamente ter reparado, daqui a três semanas não vou ter conseguido actualizar o blogue nas últimas três semanas

O índice remissivo da colecção de ensaios de Zadie Smith (Changing My Mind) não inclui uma única referência a James Wood. Inclui nove referências a Hans van den Broek (personagem de Joseph O'Neill), catorze a Dorothea Brooke (personagem de George Eliot), uma referência a Thierry Henry (personagem de Arsène Wenger), uma a Joan Baez (personagem de Bob Dylan), uma a John Locke (personagem de João Carlos Espada), duas a Truman Capote (personagem de Truman Capote), e três a Jews (personagem de Pedro Arroja), mas nenhuma referência a James Wood em trezentas páginas, o que só é digno de realce porque o livro é essencialmente sobre ele.
Pelo menos dois dos ensaios são respostas explícitas ao programa estético de Wood, com passagens que estão comicamente próximas de serem notas de rodapé a parágrafos do tal ensaio sobre o "Realismo Histérico", e outras que estão perigosamente próximas de serem pastiches estilísticos. Wood tem um «the author's porous scout», Zadie Smith tem um «the narrator's flawless interpreter»; Wood tem um «drawn, like a larcenous banker, to raid again and again the very source that sustained him», Zadie Smith tem um «like a lapsed High Anglican, Netherland hangs on to the rituals and garments of transcendence»; Wood tem um «The house of fiction has many windows, but only two or three doors», Zadie Smith tem um "The novels we know best have an architecture. Not only a door going in and another leading out, but rooms, hallways, stairs, trapdoors, hidden pasageways, et cetera». E no entanto, a única coisa vagamente parecida com uma menção indirecta é uma referência lá para o meio aos "nossos críticos mais proeminentes".
O que se pode concluir é que James Wood e Zadie Smith são secretamente casados e que a sua relação já atingiu aquele patamar evolutivo em que se pode discutir durante horas através de insinuações e remoques cifrados sem nunca nomear a outra parte: «certas pessoas cá em casa não arrumam a louça como prometeram», etc. O livro é muito bom, ao contrário do futebol em geral. Há algo de profundamente errado com o futebol em geral.
Os livros de Bolaño também são muito bons, mas estou cada vez mais convencido de que há algo de profundamente errado com eles todos. O que é que pode haver de errado com livros que gostei tanto de ler (apesar de não ter a mínima vontade de os reler)? O que me parece é que os livros de Bolaño, tal como o meu interesse pelos livros de Bolaño, são produtos do acaso; o meu prazer ao lê-los foi totalmente determinado pela forma que a minha sensibilidade literária adquiriu. Com quase todos os outros livros de que gostei tanto, houve uma sensação de inevitabilidade (mesmo que falsificada): a minha personalidade poderia ser outra, mas o efeito seria semelhante. Mas a sensação que tenho com os livros de Bolaño - que são caóticos, que não fazem sentido, que apelam a uma parcela dessa sensibilidade alicerçada em arbitrariedades tão concretas como o facto de gostar muito de "livros sobre pessoas que gostam de livros" - é que a minha opinião sobre eles poderia ser radicalmente diferente caso tivesse usado umas meias de cor diferente na última terça-feira, ou tivesse jantado salmão em vez de lasanha ontem à noite. Continuo a achar que os livros são todos muito bons, que fique bem claro, mas esta aura de contingência é um bocadinho desconcertante para alguém que gosta de coisas predestinadas, como o amor, a eliminação do Real Madrid, ou as cíclicas tentativas do Luís Miguel Oliveira em descrever a realidade visível a personagens de Louis Braille.