Tenho passado os últimos dias a ler - aos repelões, e com o restolhar constante da hesitação - a monumental 'Vida' de Chekhov, por Donald Rayfield. Percebi, ao fim de poucas páginas, que não é o tipo de biografia que prefiro. Rayfield, aliás, define os seus termos no Prefácio quando escreve que "biografia não é crítica literária"; e dedica as 674 páginas seguintes a ilustrar esta proposição. Os contos e as peças são referidos apenas tangencialmente e, na maioria dos casos, apenas como suporte à velha
party-piece da biografia de autores: o nebuloso processo pelo qual a experiência é transformada em arte.
Sempre gostei mais de ler o auto-exame de um escritor, por muito rarefeito que seja o oxigénio da verdade; o défice factual costuma ser compensado pela abundância de talento. Estou a pensar, claro, na
Educação de Henry Adams (cuja edição anotada dedica muitas linhas a corrigir erros do autor: "Adams misremembers the date...", "Adams is wrong about this..."). Mas também noutras autobiografias, que se podem ler e reler pelo puro deleite estético que proporcionam, libertas do espartilho da ordenação dos factos: a
Biographia Literaria de Coleridge, o
Persons and Places de Santayana, o
Experience de Martin Amis.
Dentro do cárcere genérico que escolheu, contudo, Rayfield faz um trabalho notável. Não se limita à leitura obstinada das mais de cinco mil cartas de Chekhov (em 31 volumes) - arranja ainda tempo para lamentar as dezenas de parágrafos truncados pelos editores, bem como algumas passagens riscadas pelos destinatários. Lê também, com resultados hilariantes, grande parte das receitas médicas que o doutor Chekhov passou. E até alguns exames do estudante Chekhov, na faculdade de Medicina (embora tenha experimentado "dificuldades de acesso" aos exercícios de aula, admite resignadamente). Lá para o vigésimo capítulo o leitor recusa sequer contemplar a possibilidade de algum incidente relevante na vida de Chekhov ter escapado ao escrutínio opressivo do biógrafo-detective.
Num sentido, pelo menos, o livro de Rayfield é um triunfo. O Chekhov que ele exuma (vital, pândego, generoso, atormentado, deliciosamente humano) é muito mais apelativo que o Chekhov mitológico dos anteriores esforços biográficos, encapsulado na célebre frase de Dovlatov: "Podemo-nos sentir assombrados pela mente de Tolstoi, maravilhados com a elegância de Pushkin. Apreciar a demanda moral de Dostoievski, o humor de Gogol. E por aí fora. Chekhov, contudo, é o único homem a quem gostaríamos de nos assemelhar." Ao tentar erigir um anti-mito, Rayfield acaba por (inadvertidamente) esculpir apenas um pedestal diferente.
Mas dentro destas 674 páginas inchadas com factos, nomes e datas, há uma dieta superior a querer sair: um manual de sedução. Alguns exemplos, mais ou menos ao acaso:
. na página 212, o herói "inicia um affair com Kleopatra Karatygina; leva-a a ver Les Huguenots e receita-lhe laxantes";
. oitenta páginas depois, o herói rebola-se alegremente num quarto de hotel com duas actrizes moscovitas, uma delas de 19 anos, no mesmo dia em que escreve, numa carta ao seu amigo e editor Suvorin, que "todos os pensadores são sexualmente impotentes quando chegam aos 40 anos". (Chekhov tinha 33);
. na página 337, a filha de Tolstoi confessa pensamentos pecaminosos sobre o herói, depois de um único - e brevíssimo - encontro;
. alguns meses depois, a lasciva Lidia (outra actriz - um elemento recorrente) escreve a seguinte nota ao herói: "Vem imediatamente, Antosha! Estou em desespero. Vem, querido. E não há salada. Encomenda alguma. Beijo-te com força, Lidia." (Rayfield abstém-se decorosamente de comentar a necessidade de salada).
Proponho como epígrafe a este livro inexistente uma passagem do célebre bloco de notas de Chekhov, o caderninho onde ele apontava ideias para contos, manchetes de jornais locais ou observações aleatórias, como esta:
"Se queres ser amado pelas mulheres, sê original; conheço um homem que usava sempre botas de feltro, no Verão ou no Inverno, e as mulheres apaixonavam-se constantemente por ele."