sexta-feira, setembro 22, 2006

O lugar na estante

Duas pessoas, ambas de impecável e insuspeito gosto literário, discordaram cordialmente (uma por mail, outra em pessoa) de um efémero post que escrevi aqui há tempos sobre Don DeLillo. Impus a mim próprio uma reiteração qualificada. Eu continuo a achar DeLillo um grande escritor, tal como achava quando descobri os seus livros com assombro em 2000, na Bibioteca Pública de Birmingham. Os seus livros, precisamente, é que me parecem cada vez menores. E isto não um paradoxo de trazer por blog. Permitam-me um desvio.
Numa recolha de textos sobre os encontros entre Kasparov e a 1ª versão do Deep Blue em 1996, lembro-me de ter lido alguém, enamorado pela sua Espécie, que se gabava que qualquer Grande Mestre podia olhar para a notação da segunda partida e detectar imediatamente qual era a linha humana e qual a da máquina. Vale a pena realçar que a recolha agrupava autores cujo interesse pelo xadrês se assemelha ao meu: apaixonado, mas declaradamente leigo. (Xadresismo lowbrow, digamos). Alguém que conhece o jogo muito melhor do que eu ou o autor do referido texto garantiu-me recentemente que essa superstição já não tinha fundamento na altura e que vai sendo cada vez mais descabida; não porque as máquinas tenham evoluído e encurtado a distância (embora o tenham feito), mas porque o jogo humano - especialmente ao mais alto nível competitivo - permite cada vez menos espaço ao movimento ousado, à inovação radical, ao descuido genial.
Hipoteticamente, seria então possível, ao leitor batido e experimentado, detectar o dedo cibernético na literatura que, numa década lá para o meio do séc. XXI, fosse produzida por um Dark Deep Rainbow, autor de sonetos heróicos e romances espistolares, com © da IBM? Agrada-me, obviamente, pensar que sim. E a questão aqui não é de mera qualidade. Tenho dificuldade em admitir que um computador pudesse escrever Herzog, Pnin ou Mating, mas também o Valley of the Dolls, o Jaws ou o Sei Lá. O livro genuinamente mau, por muito formulaico que seja, tem de florescer de um impulso criativo também ele genuíno - a má Arte é quase sempre involuntária.
Mas custa-me menos a conceber que uma máquina pudesse ser programada para escrever como DeLillo.
Releio, para tirar teimas, algumas partes de Underworld que me ficaram na memória: os B-52's no deserto, os espantosos monólogos fictícios de Lenny Bruce, o episódio em que um padre Jesuíta força Nick a nomear as várias partes componentes de um sapato. Tudo isto permanece admirável. O que não existe, ou é raro, é o pulsar de uma consciência.
O meu sempre fiável James Wood (o melhor crítico contemporâneo em língua inglesa), numa das suas lúcidas diatribes contra o que ele chama "Realismo Histérico", alertou para o perigo de se usar a paranóia como elemento estruturante de uma narrativa - vício comum a uma geração inteira de escritores americanos operando sob a sombra monumental de Gravity's Rainbow. Delillo cai no alçapão que ele próprio cavou: ao insistir que tudo está interligado, força o leitor a constatar que nenhuma dessas ligações é ao nível humano.
Nos três contemporâneos de DeLillo que são, linha por linha, tão bons como ele - Roth, Pynchon e Norman Rush - esse pulsar está presente em cada página. Em DeLillo é apenas vapor, um vapor que ganha alguma solidez - a espaços - em White Noise, o mais doméstico dos seus romances, e na secção mais autobiográfica de Underworld, que trata da infância de Nick Shay no Bronx.
Mas um escritor capaz do desastre estético que é Cosmopolis (reafirmo: um dos piores romances que li nos últimos anos) tem forçosamente de ser reavaliado. E o resto da obra de DeLillo podia ter sido facilmente encapsulada em mini-ensaios; os artifícios específicos da ficção são, nele, quase sempre contingentes.
Por isso, apesar dos vários prodígios da sua escrita, na minha estante ele permanecerá entre o America de Baudrillard e os Derridas, não entre Bellow e Pynchon.

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