terça-feira, junho 17, 2008

Eu é só Camões

O Prós & Contras de ontem foi dedicado a estabelecer se o futebol serve como factor de alienação na sociedade portuguesa. Incrivelmente, não contou com a presença de José Peseiro, talvez o maior perito vivo em Marcuse, Fromm, e no conceito de alienação como condição objectiva independente da consciência e aceitação do indivíduo. Um dos convidados era um "gestor de marcas"; tinha o aspecto de uma axila bem-comportada que passou a vida inteira a ouvir conferências do Bob Proctor, e mostrou-se indignado com o que entende ser uma das maiores lacunas dos currículos escolares nacionais: o ensino do impossível. Aparentemente, não vamoms a lado nenhum enquanto a escolaridade obrigatória não for reorientada para o impossível. Para ilustrar o que era possível quando se é ensinado a tentar o impossível falou de uma bebida energética associada ao nome de Cristiano Ronaldo. Depois contou uma história apócrifa sobre D. João I. Depois referiu-se ao candidato Democrata à Presidência dos Estados Unidos como "Obana". Depois insurgiu-se contra a falta de onanismo dos portugueses. Fátima Campos Ferreira emendou-lhe a insurgência para "unanimidade". Ele concordou: "Sim, unanimidade ou onanismo, como preferir". Ao seu lado, Carlos Abreu Amorim recitou uma estrofe d' O Mostrengo. A plateia, formada exclusivamente por pessoas com pós-graduações no impossível, aplaudiu com entusiasmo. Fátima Campos Ferreira, ela própria com um doutoramento no verdadeiramente inacreditável, anunciou: "Eu é só Camões, não vou agora aqui recitar". Injectando uma nota de subtilismo no debate, Leonor Xavier falou nas pernas de Eusébio, utilizou a palavra inglesa accuracy e comparou Cristiano Ronaldo a Greta Garbo. Um historiador interveio para explicar que a selecção espanhola tem um meio-campo de tecnicistas. Daniel Oliveira esfregou a cabeça, com vigorismo. Em nenhum momento se colocou a hipótese de o Prós & Contras servir como factor de alienação na sociedade portuguesa.
Entretanto, o Europeu vai-se aproximando do fim, alienando um continente inteiro. Já é nesta altura aparente que as equipas que praticam o melhor futebol - Roménia, Croácia e Deco - não vão ganhar, deixando o caminho aberto a uma selecção onde Dirk Kuyt é titular. Não conheço em pormenor os currículos das escolas holandesas, mas desconfio que deixariam o gestor de marcas a saltitar de contentismo.

segunda-feira, junho 02, 2008

Postiga

Na época de 2002/03 - que acompanhei à distância, através de uma complexa rede de informação que consistia em apreciações funcionalmente iletradas no Record online e em SMSs funcionalmente não-abstémios de amigos incompetentes - convenci-me de que o futuro do futebol português tinha um nome, e que esse nome era Hélder Postiga.
Numa altura em que Ronaldo e Quaresma eram submetidos à humilhação ritual por que têm de passar todos os extremos talentosos formados no Sporting (serem vaiados, num Domingo à noite, por oito mil e setecentos avatares dos velhos dos marretas) Hélder Postiga ia acumulando lances geniais a um ritmo positivamente alcochetense.
Esta perspectiva ignorante foi rapidamente corrigida. Ainda antes da desastrosa e esclarecedora transferência para o Tottenham (sancionada, com indisfarçável alívio, por José Mourinho) já Postiga começava a ser assolado pelo naipe de dúvidas existenciais que se colam, mais cedo ou mais tarde, a todos os avançados portugueses com as suas características físicas (pescoço frágil, maxilar inexistente) e técnicas (bom toque de bola, total ausência de velocidade ou potência): é um ponta-de-lança puro ou um segundo avançado? Joga melhor sozinho ou acompanhado? Numa linha ofensiva de dois ou de três? Com futebol directo ou apoiado? À chuva ou ao sol? De dia ou de noite? Fruta ou chocolate?
As perguntas acompanharam-no na meteórica passagem por Inglaterra, que foi puro vaudeville: uma calamitosa sucessão de choques frontais com postes, remates meticulosamente enrolados, e falhanços a trinta centímetros da baliza. O epíteto de "Postigoal", forjado pelos inacreditavelmente optimistas adeptos do Tottenham à sua chegada, acabaria por ser encurtado, no final da época, para um contundente "Posti_go!"
Adriaanse, com a presciência só ao alcance de um maluco holandês, tentou transformá-lo num número 10 - operação matemática que nem Georg Cantor seria capaz de executar. Foi preciso o pragmatismo de Jesualdo Ferreira para encontrar a melhor forma de o encaixar no sistema táctico do Porto: colocar o namorado da Marta Leite Castro na posição "nove", e colocar Postiga num voo da TAP para Atenas.
A reputação de Postiga assenta hoje em duas aparições ao serviço da Selecção. Um jogo circunstancialmente notável contra a (Eslovénia? Eslováquia? Não tenho tempo, ajudem-me), e um golo contra a Inglaterra no Euro 2004 resultante de um cabeceamento defeituoso, e que tem a particularidade histórica de ser o único golo em fases finais de Campeonatos da Europa marcado com o esternoclidomastóideo.
Não faço ideia se este intrigante conjunto de credenciais vale o quarto de milhão de euros de que o Sporting decidiu separar-se. Mas sei que Hélder Postiga vai acabar a época 2008/09 com precisamente cinco golos marcados: um desvio fortuito contra o Leixões; um hat-trick na Taça da Liga contra o Penafiel; e um golo decisivo ao minuto 90 contra o Porto (chapéu a Helton, depois de túneis a Bruno Alves e Fucile), sisudamente festejado com o dedo indicador colado aos lábios, em frente aos Super-Dragões.
Para o resto do ano teremos Yannick, Tiuí e as farmácias de serviço habituais.

domingo, junho 01, 2008

Há que recuperar mais bolas na zona cinco

«Quando, quase um século depois, leio o que Churchill conta das suas horas nas suas memórias sou... Churchill. Espantoso instrumento, o livro.»


- Paula Moura Pinheiro, Única, 31/05


(Poderosa exaltação da memória escrita - em contraponto à «leveza da imprensa, da rádio, da televisão» - feita por Paula Moura Pinheiro na revista do Expresso. Não poderia manifestar mais vigorosamente a minha concordância. Eu próprio, ao ler a coluna de Paula Moura Pinheiro, sou... Paula Moura Pinheiro. Espantoso instrumento, a revista do Expresso.)