Como qualquer artefacto literário do género "Teoria Unificada da Conspiração" (e acreditem que ando a tentar lê-los todos), Toda a Verdade sobre o Clube Bilderberg é um relatório psiquiátrico banhado por um colossal autoclismo de pesquisa bibliográfica. Não sei onde é que estes malucos arranjam tempo para ler todos os malucos que vieram antes deles; eu praticamente já não durmo e, mesmo assim, sinto que ainda nem vou a meio.
Há algo de francamente intimidante em ver uma patologia política tão rigorosamente sistematizada. Uma pessoa quer chamar os bombeiros, mas fica reduzida a ponderar temas ponderosos - as ansiedades epistemológicas da pós-modernidade, a caricatura da Razão produzida pelo cepticismo radical das novas sub-culturas do tédio, etc etc. O mesmo material, evidentemente, teria dado um romance esplêndido. Daniel Estulin (que nome tão bom) revela um talento muito peculiar, e provavelmente involuntário, para a farsa aristo-burocrática. Há aqui passagens que podiam ter sido escritas por um P. G. Wodehouse com acesso à internet: «... a ideia foi de Alastair Buchan (membro da administração do RIIA e da Távola Redonda, bem como filho de Lord Tweedsmuir) e Duncan Sandys (político de renome e genro de Winston Churchill), que era amigo de Rettinger, e também ele padre jesuíta e pedreiro-livre em 33º grau».
Há dúzias de coisas assim, dúzias. E também se aprende que o escândalo Casa Pia foi orquestrado "nos bastidores" por membros do Clube Bilderberg para possibilitar a ascensão política de José Sócrates (pela minha saúde). Para mais pormenores terão de comprar o livro, que foi traduzido para português pela Europa-América, e publicado na sua colecção "Biblioteca das Ideias", onde vai fazer companhia ao Pascal Bruckner, ao Marc Ferro e ao Paulo Tunhas, que devem estar todos felicíssimos.
O segundo post de hoje é subordinado a este texto profundamente ofensivo, que foi descoberto e lincado de uma forma profundamente ofensiva pelo Bibliotecário de Babel. O texto tem a sua piada. Mas a piada que tem não deve nem por um instante distrair-nos do essencial, que é o facto de o texto me ter ofendido profundamente. O texto quer ser um manual de receitas rápidas para a elefantíase literária. A comédia da coisa - que é, a espaços, ternurenta, e que distribui equitativamente as suas veladas antipatias - parte, ainda assim, de um princípio duvidoso, de um princípio, diria mesmo, profundamente ofensivo: o de que a elefantíase literária é uma coisa artifical, uma espécie de levedura retórica utilizada para insuflar desonestamente um parágrafo que podia ter sido mais curto. Quero deixar bem claro que isto é mais profundamente ofensivo do que uma conferência de imprensa do João Gabriel. Os minimalistas, esses animais, deviam todos ser compulsivamente tatuados na testa com uma citação completa do Thomas Wolfe, que, em resposta a uma carta profundamente ofensiva de F. Scott Fitzgerald sugerindo algum desbaste lexical, disse mais ou menos isto: «Well, don't forget, Scott, you bumbling anorexic faggot, that a great writer is not only a leaver-outter but also a putter-inner, and that Shakespeare and Cervantes and Dostoievsky were great putter-inners — greater putter-inners, in fact, than taker-outers — and will be remembered for what they put in — remembered, I venture to say, as long as that smelly cheese-eating-surrender-monkey Pedro Silva-chest-incident-denialist Monsieur Flaubert will be remembered for what he left out». Um estilo literário, para reiterar o que deveria ser algospasmicamente evidente, não é um puzzle com peças opcionais. É uma maneira de pensar e de ver, uma ética orgânica cujos princípios não são negociáveis. Este texto profundamente ofensivo tem o seu reflexo humanista noutro texto que eu, curiosamente, acabei de escrever, em língua inglesa, para o diário russo Kommersant. Um texto que inverte a maliciosa engenharia do protótipo e ensina o neófito escrivão a mirrar a sua arte à maneira afónica de Hemingway. Apresento agora uma versão resumida do meu texto em língua inglesa para o diário russo Kommersant, pelo qual peço imensas desculpas à população em geral e ao Filipe Guerra em particular:
1. Force some complex anti-aesthetic surgery on the aforementioned masterpiece, removing what is known in literary circles as "every fucking detail that makes it a masterpiece".
2. You can accomplish this by covering the masterpiece in lubricant and subjecting it to a sweaty aerobics session, to the sound of pounding german techno.
3. Remove all symbols, unless they are painfully obvious, as well as all motifs, and lengthily developed themes; replace them all with faux-macho sentimental shit. And rain.
4. Cut off all organic links between your style and your subject matter; forget all your russian homosexual meditations on the senseless tragedy of death after a proper but unfulfilled life. Treat death as something that happens just before it rains.
5. Suffocate your language's vitality with a string of short sentences. Drown your rhythm in a vat of fake pathos. Add more rain.
6. Don't even think about setting up some high-falutin' dichotomy between the spiritual authenticity of a vaguely apprehended inner life and your actual decaying physical casket. Just focus on the rain, and shoot some more adjectives in the face with a big manly shotgun.
7. Give it that Hemingway shine. In the end, you will have turned «The Death of Ivan Ilych» into two simple, boring, suicide-inducing sentences:
O post de hoje é subordinado ao tema "Sandro!", como é utilmente sugerido logo no título. O vocábulo "Sandro!" que deve ser sempre gritado, e nunca, em circunstância alguma, pronunciado com indiferença, refere-se ao imortal Sandro de América - uma combinação blasfema de Tom (Jones), Tony (de Matos), e Tourette's (syndrome), que anda a humedecer cuecas sul-americanas desde a década de 60, e que continua a apresentar intrigantes desafios à inquestionável heterossexualidade de todos nós, os inquestionavelmente heterossexuais. Passo agora à apresentação de exemplos:
Chamo a atenção das vossas já lubrificadas retinas para o trepidante passo de dança entre os 0:23 e os 0:26 segundos - um espástico moonwalking medieval executado, nas palavras profundamente invejosas de um dos comentadores do vídeo, por "um rapazinho com poliomelite". Avancemos em direcção ao trigal:
Nota-se já aqui uma evolução estética. As calças prescindiram do cinto porque, francamente, quem precisa de um? A dança é feita com um braço atrás das costas porque, francamente, quem precisa de dois? A transpiração fica para ali quietinha na cara dele, aterrorizada por se ter encontrado subitamente numa estátua da Ilha de Páscoa. Sandro afirma com serenidade que é o "dueño" do nosso "fruto", o que me parece irrefutável. Realce também para o gesto proto-Paulobentino ao minuto 1:16, demonstrando a existência de um consenso atemporal sobre o facto de a bola ter batido no peito do Pedro Silva. Por último, Sandro fala-nos do seu amigo, o Puma:
Um cinto foi novamente adicionado ao caldeirão hormonal, mas a camisa já abandonou quaisquer intenções diplomáticas, tendo-se rendido à superioridade do oponente. Este vídeo é particularmente útil para observar a relação de amizade entre o Puma e as suas amigas. O puma, "frente a las mujeres/ Pierde su timidez", enquanto que as mujeres, frente a lo puma, pierden as suas cuecas a um ritmo preocupante, como se pode ver no dilúvio ao minuto 3:03. E agora, porque dá azar meter três YouTubes seguidos num post sem terminar com um non sequitur, aqui fica o «(Nothing but) Flowers», uma das minhas oito canções preferidas de todos os tempos, cantada por David Byrne, um homem a quem eu acho que a Humanidade em geral não tem atirado cuecas suficientes.
(p.s.: não se esqueçam também que amanhã à noite têm uma excelente oportunidade para atirarem as vossas cuecas ao Samuel Úria)
“All the attention and engagement and work you need to get from the reader can’t be for your benefit; it’s got to be for hers.” - David Foster Wallace, citado aqui.
Nunca tinha visto isto: alguém a referir-se ao leitor, no abstracto, com um pronome feminino, como se faz com os navios. Não há aqui só uma tese, há todo um novo programa curricular nas Humanidades (provavelmente em Berkeley).
Mas na estafadíssima questão da historiografia antiga sobre Alexandre o Grande, eu estou completamente de acordo com o John Burrow: acho que o Curtius Rufus é muito mais empolgante que o Lucius Arrianus. Espero que a minha oportuna intervenção encerre o assunto de uma vez por todas.
O Sérgio Lavos acusa-me de ter falhado uma corrente. A ser verdade - e vou precisar de provas, exames ADN, etc. - isto vai obrigar-me a repensar toda uma série de coisas. É que eu gosto imenso de correntes e nunca me lembro de ter olhado para uma corrente e pensado, "olha que chatice, uma corrente". Até esta, da página 161; acho tudo espectacular, pelo que não me importo nada de responder outra vez (a corrente já tinha andado a circular há coisa de um ano, não sei se alguém se lembra).
Ora eu ando a ler dois livros ao mesmo tempo, uma vez que sou um grande maluco e apenas um de cada vez não me chega. Os livros que ando a ler ao mesmo tempo são o Trópico de Câncer e o Trópico de Capricórnio, ambos escritos por um autor que, curiosamente, também era um grande maluco para quem uma de cada vez simplesmente não chegava. A quinta frase completa da página 161 do Trópico de Câncer é: «Um tipo conhece os bêbados todos de Montparnasse». Para o Trópico de Capricórnio, o resultado é: «Tudo podia ser afastado facilmente, até os Himalaias».
Os restos dos respectivos livros contêm frases tão ou mais titilantes. É tudo a cem à hora, nos Trópicos. A estética literária de Henry Miller exige a substituição deliberada de sofisticação artística por autenticidade crua. O insanável defeito deste tipo de escrita torrencial (Whitman e Kerouac são duas encomendas semelhantes) é que o desleixo e a falta de clareza criam uma dissonância entre o ritmo do escritor - que se acha o maior - e o do leitor - que nem sempre concorda. Os frequentes achaques de levitação induzem uma irreprimível vontade de discordar factualmente do que está a ser dito: “Esta é a virgindade branca e glacial da lógica do amor” (Epá, não, não é). “Sou o gorila que sente as asas a crescerem, sou o gorila leviano no ventro de um vazio de cetim” (Epá, não, não és). “A noite também cresce como uma planta eléctrica, lançando rebentos candentes para o espaço” (Não, a noite não faz nada disso). Na verdade, a relação de Henry Miller com a linguagem é semelhante à sua relação com o género feminino. O homem dispara em todas as direcções. Tenta tantas coisas tantas vezes que acaba por acertar no alvo algumas delas. Trata a linguagem como se esta fosse uma ginasta romena. E, apesar de todo o seu priápico e transpirado entusiasmo, a linguagem fica quase sempre hirta debaixo dele, a fingir orgasmos múltiplos. Poderia continuar a falar sobre o assunto, mas prefiro guardar o resto para o meu longo texto crítico sobre Henry Miller, a publicar brevemente no Scunthorpe Telegraph. E porque nestas alturas de crise as pessoas gostam é de finais felizes, vou terminar o post com um gatinho dentro de uma caixa.
E também com a Venezuela, e o Anderson Polga, e a crise económica global, que me parece uma situação muito grave, e depois há a fragilidade do nosso tecido empresarial, e o desemprego, que também é uma situação muito grave, que afecta as pessoas, embora provavelmente não o Anderson Polga, mas que vai obrigar o hipotético mas existente senhor que trabalhou a vida inteira na linha de montagem a arrancar os coisinhos de plástico dos cinzeiros que aparelham os automóveis da marca Volvo a procurar outro emprego no meio de uma crise económica global muito muito grave, e o senhor não vai conseguir, evidentemente, pelo que vai ser forçado a improvisar e a lançar-se num negócio por conta própria com empréstimos garantidos pelo Estado e assim, mas sem qualquer preparação, e isto nunca dá bom resultado, como é demonstrado por histérica analogia no Suttree do Cormac McCarthy, em que um violador de melancias chamado Gene Harrogate sai da prisão sem quaisquer fundamentos, e o que é que faz uma pessoa sem quaisquer fundamentos no irrepreensível nexo metafórico que é o ferro-velho do capitalismo a não ser escavar túneis debaixo da cidade (e isto depois de o esquema de assassinar morcegos por dinheiro ter fracassado por insuficiência logística) para chegar ao não-ferro-velho do capitalismo pelo lado mais inesperado, que são os fundilhos do banco central? Uma pessoa com fundamentos teria arranjado os diagramas, as plantas subterrâneas de Knoxville, Tennessee, até o Tom Cruise sabe isto, mas o Gene Harrogate não sabia mais do que aquilo que sabia e dinamitou a estrutura errada, acabando por ser arrastado numa maré de merda líquida, bocadinhos de papel higiénico e, salvo erro, bebés mortos, e bebés mortos é uma situação que me incomoda e que considero quase tão grave como a do Tibete, mas compreende-se a minha preocupação, creio eu, com o hipotético mas existente senhor que deixou de arrancar os coisinhos de plástico dos cinzeiros que aparelham os automóveis da marca Volvo no meio de uma crise económica global gravíssima, tendo em conta o que sabemos sobre o sub-solo da respectiva localidade, onde também deve haver doses substanciais de merda líquida e bocados de papel higiénico, se não mesmo bebés mortos, o melhor que o senhor tem a fazer é mesmo inscrever-se no centro de emprego mais próximo e esperar que o chamem para a formação de jardineiros da Junta, não deve é meter-se em avarias, do género ah vou pôr um anúncio no jornal a oferecer os meus serviços como palhaço contratado para ir a festas, até porque isto é uma terra diferente, não é um aglomerado suburbano em Montgomery onde as pessoas têm por hábito contratar despojos de meia-idade com a cara pintada e sapatos de meio metro para entreter as criancinhas, e o máximo a que o senhor pode almejar é atrair a atenção de um casal em Campo de Ourique com um pacote TV Cabo que lhes permita terem assimilado a esotérica noção de "palhaço contratado" numa sitcom qualquer, e os meios financeiros necessários para concretizar um "aniversário diferente" para o pequeno Diogo, e que portanto não desconfiem quando virem o anúncio no Correio da Manhã, mas mesmo assim a situação está minada com problemas, nomeadamente fisiológicos, porque não se passam quarenta anos a arrancar os coisinhos de plástico dos cinzeiros que aparelham os automóveis da marca Volvo sem acumular um considerável crédito negativo no funcionamento renal, o senhor é provavelmente incontinente, o que é já de si uma incapacidade debilitante num palhaço contratado, mas uma incapacidade que se pode gerir quando se vai a casas em Montgomery com sete casas-de-banho, mas em Campo de Ourique, com aqueles apartamentos só de uma casa-de-banho, meu Deus, é um perigo enorme, até porque numa festa à qual comparecem todos os amiguinhos do pequeno Diogo, e respectivos pais, vai haver sempre alguém enfiado na casa-de-banho, e o pobre palhaço (previamente designado hipotético mas existente senhor) não tem estamina para duas horas sem alívio, e nenhum dos métodos sugeridos pelo seu vizinho funcionará, nem sequer a clássica volta dupla do elástico à volta do escroto, pelo que o pobre palhaço vai passar duas horas a transpirar, o que apresenta desde logo um problema adicional, uma vez que a tinta facial branca que adquiriu por catálogo era a mais barata e não é de grande qualidade, e a transpiração faz daquilo uma avalanche grotesca pelo escanhoado abaixo, que é uma coisa de que as criancinhas não parecem gostar num palhaço, por motivos inapelavelmente sólidos, e o senhor pobre palhaço vai andar por ali a soprar plutos e mickeys em balões vermelhos, com a bexiga a latejar e a cara a transformar-se gradualmente num Monte de Santa Helena, há-de se chegar a um ponto sem retorno onde o pobre palhaço não terá outra possibilidade se não esquivar-se até às escadas do prédio e aliviar-se no vaso das buganvílias que tanto debate tem provocado na reunião de condóminos, mas os problemas não acabam aí, era o que faltava, porque um palhaço sem fundamentos para comprar uma tinta facial de qualidade também não terá investido devidamente no vestuário, e aquelas calças de palhaço trazem botões tão renitentes em abandonar as respectivas casas como agricultores brancos do Zimbabwe, uma mijinha lacónica de quarenta segundos transforma-se numa epopeia de dez minutos, o pequeno Diogo que anseia pelo próximo pluto insuflado no balão quer saber o que é que se passa com o senhor palhaço e decalca o esquivanço até às escadas do prédio, onde vai encontrar o senhor palhaço com a cara a derreter e um pluto rosáceo e resolutamente não-insuflado nas mãos, isto vai dar gritos do pequeno Diogo, de certeza, seguidos de desenfreada correria paternal cá para fora, onde o cenário que encontram - criancinha aos gritos, palhaço grotesco com as calças pelos joelhos - não pode deixar de afectar todos aqueles que, como eu se preocupam com o Tibete, a Venezuela, a crise económica global e as pessoas, genericamente. O Cormac McCarthy, ainda assim, escreve muito bem.
(Recensão crítica a Suttree, de Cormac McCarthy, publicada originalmente no Der Spiegel)
«... An overstrained enthusiasm produces a capriciousness in taste, as well as too much indifference. A person who sets no bounds to his admiration takes a surfeit of his favourites. He over-does the thing. He gets sick of his own everlasting praises, and affected raptures. His preferences are a great deal too violent to last. He wears out an author in a week, that might last him a year, or his life, by the eagerness with which he devours him. Every such favourite is in his turn the greatest writer in the world.»
Tem sido extremamente difícil nos últimos dias não passar o tempo a chatear as pessoas com a minha recém-adquirida destreza no calão de Baltimore. Com o atraso espectacular que costuma caracterizar grande parte das minhas interacções com o mundo (exemplificado pelo absurdo número de emails a informar-me de que fui a última pessoa em Portugal continental a dizer bem do Lourenço Viegas) comecei esta semana a ver episódios da "melhor série de televisão de todos os tempos". Ainda é cedo para a apreciação global e fundamentada que a minha mãe se habituou a esperar de mim, mas creio não espatifar nenhum consenso se disser que a segunda melhor personagem da série é o Coronel Daniels, um Masai tecnocrata interpretado por um actor que tem provavelmente a melhor cara de todos os tempos a seguir à do Franck Ribéry, e que elevou o acto de remover o casaco exasperadamente a uma manifestação artística pela qual valia a pena dinamitar a Tate Gallery. Só para ficar mais descansado, transformei o visionamento dos quatro primeiros episódios numa desesperada caça ao cliché. Não tive grande sucesso. A língua inglesa é claramente a actriz principal, mas vê-se que passou anos a treinar para isto. Está mais gorda, mas ganhou agilidade; consegue saltar por cima das coisas; consegue esconder-se atrás de outras coisas; é tudo muito bonito. O espremido livro de estilo do police procedural também foi brutalmente vandalizado. Há algum fervor antropófago na sequência em que o McNulty vai ver um jogo de futebol do filho e conversa sobre direitos de visita com a ex-mulher, mas regra geral os guiões têm-se comportado como se a televisão tivesse sido inventada ontem à tarde. Há uma enorme vala comum no meio daquilo tudo onde as convenções foram enterradas: os guiões limitam-se a ir lá de vez em quando para mijar em cima dos cadáveres. Está mais do que decidido que nunca mais vou ter uma "opinião" sobre qualquer outra coisa durante o resto da minha vida, mas, evidentemente, uma pessoa tem saudades de clichés, pelo que foi uma sorte ter feito uma pausa nas festividades para fazer um micro-zapping pelos canais terráqueos, no meio do qual apanhei um dos Casos da Vida transmitido pela TVI, intitulado "Crime e Botox". "Crime e Botox", curiosamente, é o nome de uma pequena peça em três actos que eu escrevi em 2004 e que transporto desde então na minha mochila, à espera do dia em que os meus frequentes encontros com figuras públicas nas ruas de Lisboa (é inacreditável a quantidade de vezes que já estive atrás do Carmona Rodrigues na fila para o multibanco) me proporcionem finalmente a oportunidade de passar as cento e oitenta páginas para as mãos do Diogo Infante, que eu "visualizo" no papel principal e também no orçamental. A minha peça, no entanto, é um mero divertimento - daqueles assim despretensiosos e para a toda a família. Já a versão da TVI é uma arrojada variação sobre o mito de Pigmalião, que alardeia o seu despudor em relação ao facto de ter conseguido plagiar em simultâneo o Bernard Shaw, o Nip/Tuck, o Instinto Fatal, e o Apocalipse de São João. A história começa com uma ex-actriz dos Morangos com Açúcar no bloco pós-operatório. A cirurgia plástica correu bem, mas os resultados não lhe agradam. O seu estado emocional é cintilantemente traduzido: «Ó Zé! Não era nada disto que eu te tinha pedido!». O "Zé", além de ser seu marido, também é um cirurgião-plástico diabético, um artifício narrativo que permite aos argumentistas utilizarem uma estrutura formal composta por versos perdidos de Daniel Maia-Pinto Rodrigues: «Há séculos que não jogas golfe, querido», «Amparo! Traga-me imediatamente um copo de água com açúcar!», e «Vá, toma lá a insulina para irmos jantar». O espectador depressa se apercebe que o cirurgião-plástico diabético anda a testar os nervos da esposa («Essa tua obsessão pela perfeição está a ir longe de mais!») e que a esposa do cirurgião-plástico diabético anda a testar os limites da sintaxe («Tu tens é noção de falta do ridículo!»), mas tudo é facilmente ultrapassável por todos aqueles que não tenham sentido de falta de humor. A primeira parte, como espero ter tornado espatafurdiamente óbvio, é uma lenta versão hardcore do My Fair Lady («ele esculpiu-me a seu belo prazer», etc.). Mas a segunda parte é nada mais nada menos do que um pioneiríssimo CSI: Vialonga, com inspectores a afagarem paredes com escovinhas, a guardarem colheres de sobremesa em sacos de plástico, e a enviarem coisas "para o laboratório". Um dos inspectores possuiu a argúcia de Auguste Dupin e o registo emocional de Ivan Drago. Depois de ouvir que a vítima, na véspera de ser assassinado, recebera um telefonema anónimo que o fizera sair de casa a correr, ele raciocina em voz alta, com o instinto dos predestinados: «Sim, realmente ísso é estranho». Nesta altura já existem pelo menos quatro suspeitos diferentes para o assassinato do cirurgião-plástico diabético, e um dos diálogos entre os argumentistas foi acidentalmente incluído no produto final: «-Porque é que não tiramos umas férias? -Umas férias não vão resolver isto». Não vi até ao fim, mas desconfio que foi a mulher quem o matou - provavelmente com uma dose de leite condensado. Entretanto, deixo-vos com três minutos de Shakespeare na Cova da Moura: