Foi uma longa e árdua odisseia, que envolveu algumas noitadas indesculpáveis, copiosos pacotes de Bombay Mix e a revogação de inúmeros privilégios sexuais, mas tudo valeu a pena. A minha vida social atravessa agora uma fase de remodelação, em que todos os ex-amigos que não viram o Wire têm de ser substituídos por novos amigos que tenham visto o Wire, e não me encontro ainda nas condições ideiais para fornecer às massas uma opinião devidamente fundamentada, pelo que vou apenas fazer uma lista das cinco melhores personagens, indicando também a pior - um instrumento crítico de tremenda utilidade para futuras teses de mestrado. Aproveito este momento para aconselhar vivamente os leitores ainda não familiarizados com o Wire a não verem um único episódio antes de continuarem a ler, uma vez que a série contém vários spoilers que podem diminuir o intenso prazer que o resto do post vos vai inevitavelmente proporcionar.
1. Marlo Stanfield
Probabilidade de merecer uma fotografia em tronco nu no blogue A Causa Foi Modificada: 90%
Probabilidade de conseguir derrotar o elenco inteiro do Grey's Anatomy numa luta corpo a corpo: 100%
Probabilidade de achar que a direcção do Belenenses merece um pedido de desculpas: 0%
De longe, a personagem com maior quantidade de deixas memoráveis ("I wasn't made to play the son", "You want it to be one way, but it's the other way", etc etc). Dada a qualidade geral da escrita, e as múltiplas formas em que esta se manifesta, concentrar tanta frase boa no mesmo sítio parece batotoa - um atalho fácil e curtinho para a ressonância. Mas Marlo é bom por outro motivo. Se a tragédia é a diferença entre as circunstâncias e as aspirações, Marlo é a personagem mais trágica da série. O cruzamento de incompatibilidades a que chega é verdadeiramente espectacular: Marlo tem as características certas para ser Avon Barksdale (em melhor, porque menos volátil, e com precisamente zero laços emocionais); são-lhe apresentadas as circunstâncias para ser Stringer Bell (aquele circuito de reuniões de negócios no último episódio era a fantasia pela qual Stringer aparava a barba todas as manhãs); mas o seu único desejo é ser Omar: o mito, o nome, a reputação. O seu discurso que culmina no "My name is my name" tem um curioso precedente numa deixa do Grego na segunda temporada: "my name is not my name". Por isso é que o Grego se safa: sendo anónimo, sendo o velho a ler o jornal no café, ao mesmo tempo que dirige o império. Marlo quer ser a lenda, a história contada aos putos, quer que falem dele por aí, na rua, nos blogues, pobre coitado.
2. Proposition Joe
Probabilidade de merecer uma fotografia em tronco nu no blogue A Causa Foi Modificada: 20%
Probabilidade de conseguir derrotar o elenco inteiro do Grey's Anatomy numa luta corpo a corpo: 90%
Probabilidade de achar que a direcção do Belenenses merece um pedido de desculpas: 0%
O seu fim era esperado, mas doeu. Era o melhor patrão, o melhor bandido, e um dos traficantes de droga mais fofinhos que já vi num ecrã de televisão. Acabou por ter uma morte bastante digna, na medida em que não lhe interromperam nenhuma frase, nem estava a tentar comprar iogurtes antes de levar um balázio nos cornos.
3. Slim Charles
Probabilidade de merecer uma fotografia em tronco nu no blogue A Causa Foi Modificada: 100%
Probabilidade de conseguir derrotar o elenco inteiro do Grey's Anatomy numa luta corpo a corpo: 100%
Probabilidade de achar que a direcção do Belenenses merece um pedido de desculpas: 0%
Antes de mais tem o mérito de ter despachado o Cheese, uma das bestas mais repreensíveis que por ali andava, com pontos extra por tê-lo feito logo a seguir a Cheese se ter saído com aquela do "ain't no nostalgia to this shit here". Essa, enfim, besta, essa personificação da brutalidade cega e amnésica, que quer andar para a frente sem olhar para trás, é morto em nome dos princípios mais antigos: honra e vingança. Tudo no sítio certo, é impressionante.
4. Ellis Carver
Probabilidade de merecer uma fotografia em tronco nu no blogue A Causa Foi Modificada: 100%
Probabilidade de conseguir derrotar o elenco inteiro do Grey's Anatomy numa luta corpo a corpo: 100%
Probabilidade de achar que a direcção do Belenenses merece um pedido de desculpas: 1,7%
Num guião destituído de arcos morais, e onde todas as epifanias são tácticas, Carver é a única personagem que evolui visivelmente (há o Snydor, mas é diferente). Também tem uma frase muito boa, num diálogo com um dos putos, sobre o tamanho das algemas, mas agora não me lembro em que episódio é. Num curioso fenómeno fisionómico-hierárquico, vai perdendo as gritantes semelhanças com o internacional françês Florent Malouda à medida que vai subindo de escalão dentro da força policial.
5. Stan Valchek
Probabilidade de merecer uma fotografia em tronco nu no blogue A Causa Foi Modificada: 0,7%
Probabilidade de conseguir derrotar o elenco inteiro do Grey's Anatomy numa luta corpo a corpo: 75%
Probabilidade de achar que a direcção do Belenenses merece um pedido de desculpas: 0%
Com toda a honestidade, há provavelmente uma dezena e meia de personagens melhores (o Wee-Bey, meu Deus, o Wee-Bey dava 20 posts), mas assumo uma escolha sentimental. É a pronúncia, está tudo na pronúncia. Não me lembro de ficar mais satisfeito a ouvir alguém falar na televisão. Não sei como é que se faz, mas o produto final assemelha-se ao Leo McGarry do West Wing depois de sofrer uma esclerose lateral amiotrófica. E tudo com aquele aspecto de refugiado nostálgico da Academia de Polícia, com ar de quem pode a qualquer momento começar a gritar com o Mahoney por este lhe ter besuntado a toalha de banho com um afrodisíaco para bisontes.
---. Brother Mouzone
Probabilidade de merecer uma fotografia em tronco nu no blogue A Causa Foi Modificada: 30%
Probabilidade de conseguir derrotar o elenco inteiro do Grey's Anatomy numa luta corpo a corpo: 85%
Probabilidade de achar que a direcção do Belenenses merece um pedido de desculpas: 0%
A maior concessão de Wire aos cânones narrativos de tudo aquilo que não é Wire. Eminentemente desculpável, mas não se deve negar que foi uma escusada digressão pelo "pitoresco". A ideia de colocar um avatar pós-colonialista do João Carlos Espada a ler a Harper's de pistola no bolso compreender-se-ia em séries menores, que tentam qualquer coisa desde que suspeitem que possa ser eficaz, porque têm de evitar que as pessoas se concentrem em todas as outras coisas que não são eficazes. Brother Mouzone é, vá lá, relativamente eficaz como personagem. Mas o guião não tinha a mínima necessidade dessa eficácia, especialmente a este preço. Seria uma boa personagem em qualquer outra série. Nesta, é um palhaço que ali anda.