sábado, julho 21, 2007

Juro que, depois disto, não volto a escrever a palavra "Tintim" durante seis meses

Estava aqui a planear um texto híbrido sobre crise no PSD e as eleições na Turquia, quando reparei que o JRP do Comboio Azul tinha escrito um segundo post sobre l'affaire Tintin. Um segundo post do qual, com toda a franqueza, desgostei um bocadinho menos que do primeiro (porque inclui um mp3 do Morrissey), mas que volta a demonstrar as três diferenças fundamentais entre as nossas posições. Uma, e esta parece-me mesmo crucial, é que tem estado por aqui a chover ininterruptamente desde as seis da manhã, todas as pistas de cavalos num raio de 150 quilómetros estão alagadas, e eu não posso sair de casa para ir apostar. Só quem passa por situações destas é que lhes sabe dar o valor.
Outra diferença é a seguinte: no meu entender, as únicas formas de racismo que justificam actos censórios ou semi-censórios são as que têm uma componente doutrinária e prescritiva. Essa componente está presente em qualquer texto que tente erguer um edifício ideológico a partir de um preconceito lamentável, mas incontornavelmente humano, que é o medo/desconfiança em relação ao Outro. O álbum do Hergê não é isto. Aquilo que, no limite, se pode descortinar em Tintim no Congo, é o reflexo esbatido e ingénuo da mentalidade popular numa metrópole colonial na primeira metade do século XX.
(E aqui, um aparte para o João Galamba: eu também li o The Origins of Totalitarianism da Hannah Arendt. Também sei que o colonialismo europeu foi legitimado por alguns lamentáveis textos pseudo-científicos, como esta coisa aqui. O racismo teórico foi um instrumento valioso para as potências coloniais. Mas concordaremos que não era uma característica individual de toda a população europeia da altura. Existia uma espécie de racismo popular por default em qualquer potência colonial, que não era activamente exercido, e que não deve ser retroactivamente condenado, a não ser por pessoas com a certeza absoluta de que teriam sido as mesmas almas iluminadas e tolerantes caso não tivessem gozado a felicidade cronológica de nascer em tempos iluminados e tolerantes . Creio que o possível "racismo" de Hergê era esse: um racismo de rebanho, um racismo de ignorância. Daí a minha tentativa, com aquela etiqueta rasurada da "sobranceria colonial", de o separar do racismo ideológico dos Gobineaus e dos Chamberlains, ou do racismo interventivo dos PNRs e dos BNPs).
Voltando a chover no molhado: o JRP acha que o episódio (disponível aqui) em que Tintim manda umas pessoas trabalhar "contém a maior dose de racismo" do álbum. Acontece que o mesmo episódio podia retratar os passageiros como aristocratas ingleses pouco habituados a trabalhar, sem ser preciso alterar a linguagem, e sem perder o sentido (façam a experiência mental). Mas porque os bonecos são negros, e porque o JRP sabe o suficiente sobre o contexto histórico da época para ver nas ordens de Tintim e na reacção dos passageiros uma dramatização da relação mestre-escravo, o episódio é interpretado como racista. Reafirmo que esta retroacção interpretativa permite encontrar ofensa em qualquer texto escrito antes da semana passada
Há uma tira n'O Segredo do Licorne na qual o Capitão Haddock ordena aos irmãos Dupont que manejem a bomba de ar do escafandro de Tintim, algo que os desgraçados, por entenderem mal as instruções, continuam a fazer desnecessariamente até ao anoitecer. Esta vinheta, como tantas outras, revela a bestial estupidez dos Dupont, e pressupõe a suposta superioridade do Capitão Haddock, que se confere o direito de exercer domínio sobre polícias com bigode. É isso? E todas as vinhetas em que o Nestor recebe ordens serão, de acordo com o mesmo raciocínio, "desumanas" e "cruéis" manifestações de um preconceito anti-carecas? E já alguém reparou que não há um único retrato positivo de um banqueiro em toda a série? Não há ninguém interessado em proteger as crianças deste preconceito anti-capitalista?
Isto leva-nos, misericordiosamente, ao último ponto de discórdia. O JRP continua a achar que a cedência parcial das livrarias - a transferência do livro para uma secção diferente - foi um gesto, na melhor das hipóteses, neutro (um "mal menor" é o que ele lhe chama). Eu não acho. Acho que é um mal maior, acho que não beneficia uma única pessoa, acho que é um burlesco passo à rectaguarda.
Abrir um precedente destes a propósito de um pormenor demonstravelmente refém de interpretações subjectivas é um gesto muito mais perigoso do que qualquer coisa que se possa encontrar num livro de banda desenhada. É abrir caminho a que uma outra organização, com líderes ainda mais idiotas que os da CRE, encontre um episódio insultuoso para as mulheres em O Filho de Astérix; ou uma vinheta depreciativa para os nativos americanos em A Grande Travessia; ou uma referência cripto-leninista num feitiço do Harry Potter; e que venha depois exigir a mesma atitude: a mudança de secção do objecto-réu.
Nessa altura, eu e o JRP estaremos provavelmente do mesmo lado, a balbuciar umas coisas sobre o absurdo da exigência, e a tentar explicar que os objectos em questão não são, no mundo real, ofensivos nem perigosos. Mas porque o precedente existe, seguir-se-ão as inevitáveis (e neste caso justas) acusações de hipocrisia e dualidade de critérios. Ou, pior ainda, nova cedência.
No planeta Terra, a qualquer hora do dia ou da noite, há sempre um indivíduo ou um grupo ofendido com qualquer coisa, e a reivindicar outra coisa qualquer (pessoalmente, don't get me started nos impostos). Decidir sobre a razão dessas reivindicações não é tarefa fácil, mas para abrir um precedente, acredito que a justificação deva ser o mais sólida e incontroversa possível. Os exemplos do JRP (Mein Kampf, American Psycho, pornografia) são maus, porque, ao contrário de Tintim no Congo, nunca fizeram parte das prateleiras juvenis. Ou seja, a sua inclusão nas ditas é que representaria um precedente; a sua inclusão é que teria de ser solidamente justificada. (Sou todo ouvidos).
O JRP diz que a demanda do seu post original era precisamente a "a dificuldade em definir a fronteira" do que é ou não aceitável para as secções de literatura juvenil. A minha sugestão é esta: deixar a fronteira bem quietinha como está. Quanto menos lhe mexermos, menores são as probabilidades de fazermos asneira.

(Sinto que este post repisa algumas ideias do anterior, e que portanto o diminui. Para evitar uma situação extrema, do género ficar aqui sentado a escrever versões sucessivas da mesma coisa até o hipódromo de Worcester voltar a abrir, decidi atacar um projecto que ando a alimentar desde os 14 anos: dormir um fim-de-semana inteiro. Há espécies de morcego que dormem vinte horas por dia. As girafas dormem menos de duas. Calculem o estado em que eu estou para me ocorrerem coisas destas. Já agora, leiam este texto do Roy Blount Jr. Não tem nada a ver com Tintim, o que, nesta altura do campeonato, é a melhor recomendação possível.)

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