quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Mon prémier Rivette



Cerca de sessenta pessoas entraram na sala Dr. Félix Ribeiro para ver a versão integral de L'Amour Fou. Duzentos e cinquenta e três minutos depois, sete pessoas cambalearam de lá para fora, entreolhando-se com a cumplicidade culpada dos sobreviventes. Os outros desgraçados (feridos, mortos) pejavam o chão da sala como pipocas descartadas. Muita gente saiu a meio, assustada com la violence; cambada de pussies.
O filme (que, ao contrário do que me disseram, não é uma hilariante gross-out comedy na linha dos irmãos Farrelly) foi uma das experiências mais viscerais a que tive o prazer de assistir desde os célebres Benfica-Porto arbitrados por José Pratas na década de 90, que acabavam sempre com 5 jogadores expulsos.
Pontapé de saída! Quem vem lá? Sébastien Badass, um homem com quem não queres fazer farinha. Olhem para aquele porte, aquele estilo. Ninguém se mete com ele. O filme é a preto-e-branco, mas a camisa hawaiana não engana ninguém: aqui está um homem de quem até o espectro cromático tem medo. Há uma peça a ser ensaiada. Andromaque. Racine. Num ringue de luta livre, evidentemente. Ainda não desenharam um palco capaz de conter a pura badassness de Sébastien. Assistimos aos ensaios. Uns correm bem, outros correm mal. Sébastien fuma. Será que a peça existe mesmo? Se calhar não, e as pessoas têm medo de lhe dizer. E agora? Ok, vêm aí as mulheres. Há imensas mulheres no filme. Sébastien fuma. As mulheres também. Onde é que isto já se viu? Mas Sébastien não quer saber. Ele não quer saber de nada. Ele beija mulheres. Ele cospe no chão. Há uma loura. A loura entra na peça, e depois não entra. Sébastien fuma. Depois come pudim. Depois fuma. Esperem lá. Não acredito. Agora fuma e come pudim, ao mesmo tempo! Este meu não quer mesmo saber. Este meu doesn't give a damn. Isto é um buddy movie sem o buddy, um road movie sem a road. Sébastien não precisa de buddies nem de roads. Mais ensaios. Sébastien fuma. Sébastien gala as actrizes. As actrizes não têm outro remédio senão serem galadas. Há uma festa. As pessoas sentam-se em sofás e dizem coisas. Sébastien fuma. E agora? Tambores! Sébastien produz um tambor e cá vai disto. Incrível. O que é que ele irá fazer a seguir? Ninguém sabe. Eu não sei, tu não sabes, as mulheres não sabem, os homens tremem, os animais de estimação gemem apavorados.
Há mais ensaios. Dois actores sentam-se em cadeiras, mas Sébastien vira as cadeiras ao contrário. Sim, e os actores vão fazer o quê? Protestar? Não me façam rir. Sébastien fuma. Oh não. A camisa já não é hawaiana! Sébastien fuma, de camisa branca. O homem afugentou o Hawai da camisa, e fê-lo sozinho. Os ensaios prosseguem. Sébastien parece aborrecido. Há um ar de pânico em todas as pessoas que, por azar, não são Sébastien. Eu próprio tive de me amarrar à cadeira para não desatar a correr que nem um maluquinho. A loura, em particular, não parece estar a gostar das coisas. Há um cão. A loura quer o cão. O cão não quer a loura. Sébastien dorme. A loura não. Estranhamente, nenhum deles fuma. Algo de extraordinário vai acontecer. A loura pega num alfinete e aproxima-se de Sébastien. Pobre alfinete, parece aterrorizado. A situação é resolvida. Sébastien fuma.
Mmm, o que é isto agora? Uma pistola. Há uma pistola no apartamento. Sébastien oferece-a a várias pessoas. Ninguém aceita. Por fim, ele luta consigo próprio pela posse da pistola. E ganha! Estavam à espera de quê? Mais ensaios. Racine é complicado. Olá. A loura quer-se ir embora? Parece que Sébastien foi longe demais. Isto vai dar molho. É claro que Sébastien foi longe demais: é o que ele faz. Sébastien mostra-se vulnerável. Que charada. Talvez não. Ele é suficientemente rijo para a vulnerabilidade. Vestuário rasgado. Como o Hulk, mas ao contrário. (Ok, usou tesouras, mas o trabalho ficou feito). A loura cede. Ambos fumam.
Pausa nos ensaios. Já não era sem tempo. Sébastien ri! O homem é imprevisível. Está contente. A loura também. O dinheiro que esta gente deve gastar em tabaco. E quando julgamos que já lhe topámos o esquema todo, ele aparece, de cuecas e chapéu, a fazer desenhos nas paredes. A única coisa que lhe falta é vestir-se de mulher e destruir uma porta à machadada. Bingo! E com um machado pequenino. Podia ter usado um machado grande, mas não precisa. A badassness do homem é imensa.
Agora sai à rua. Agora fuma. Os prédios mexem-se. A música é ominosa. Sébastien passa por um espelho. O seu reflexo confunde-o. Pela primeira vez na sua vida, está a ver alguém tão badass como ele. Mais mulheres. Isto será boa ideia? Alguém lhe devia dar uma palavrinha. Mas já não há heróis. A loura grava cassetes e depila as sobrancelhas. A operação corre mal. O ringue de luta livre está deserto. Sébastien fuma. O tempo transborda. Fade out.

6 comentários:

Filipa Rosário disse...

eu nunca vi o L'Amour Fou mas li este post até ao fim, muito bom!

Anónimo disse...

estou tão doente.

maradona

Anónimo disse...

não vi esse badass movie nem li o post mas estou aqui a comentar porque adoro comentar.
nuno

ps:asmelhorasparaoelpibedatrafaria

FF disse...

Eu que era uma das sete pessoas no final (mas não umas das sessenta no início) estou em condições de afirmar que "premier" não tem acento.

Anónimo disse...

Que nunca ninguém me acuse, por amor de Deus, de saber o que estou a fazer quando uso uma palavra em francês. Mesmo com o Larousse ao pé, são sempre tiros no escuro.
Já me tinham avisado, mas acho que corrigir o erro seria uma derrota maior.

FF disse...

Fair enough!
A despropósito:
"In Rivette's greatest work - the 750-minute serial Out 1: Noli me tangere (1970) and the 255-minute Out 1: Spectre (1972) he carved out of it - he turned this uncertainty into a formal principle, knotting together strands of conspiracy and narrative connection in the first half of each work, then systematically untying them in the second. An almost identical strategy is at work in the 1973 novel Gravity's Rainbow, a postmodernist work by the other great contemporary master of conspiracy fantasies, Thomas Pynchon, who has explored similar themes in V, The Crying of Lot 49, and Vineland (and whose latest novel, Mason & Dixon, is due out next month). The fact that Rivette and Pynchon arrived at the same artistic formula independently, on separate continents, at roughly the same time points to a profound shared historical experience - the shattering of the 60s counterculture's utopian dreams. A motto for both works might be taken from one of the narrator's musings in Gravity's Rainbow: 'If there is something comforting - religious, if you want - about paranoia, there is still also anti-paranoia, where nothing is connected to anything, a condition not many of us can bear for long.'"
(Jonathan Rosenbaum)