Ao minuto 60 da final da Taça da Liga deu-se um incidente curiosíssimo perto de uma das quinas da área do Vitória, envolvendo Abel, Izmailov, Miguel Veloso, e uma bola de futebol. Durou cerca de vinte segundos, e foi certamente contabilizado pelos estatísticos de serviço como “posse de bola” do Sporting. Isto é uma tremenda falsificação da realidade; para aquele lance ser considerado “posse de bola” do Sporting (e não, por hipótese, “posse de Sporting” pela bola) teria de haver uma redefinição radical do que se entende por “posse de bola”. É difícil reproduzir com precisão o que aconteceu sem o auxílio de diagramas, bonifrates, ou um quadro de Jackson Pollock, mas vou fazer o meu melhor, começando por declarar nos termos mais enfáticos que, dos quatro intervenientes na jogada, a bola e Miguel Veloso eram claramente os únicos com uma ideia mais ou menos definida sobre o que estava a acontecer.
O que aconteceu foi isto: no seguimento de um típico lance de ataque do Sporting - que esta época consiste em tentar transportar a bola até ao último terço do campo na vaga esperança de que algo misterioso e inefável aconteça - o Abel encontrou-se subitamente com a dita bola ao alcance do seu pé direito. Um imponderável destes exige uma resposta firme, e Abel tratou de afastar o problema dali o mais rapidamente possível, para se poder concentrar no seu trabalho: correr de um lado para o outro com um ar determinado, se possível obrigando um adversário a correr ao lado dele. As surpresas começaram aqui. A bola que Abel afastou com tanta diligência violou pelo menos sete princípios geométricos e chegou ao pé direito de Izmailov, talvez o imigrante de Leste com menos qualificações a residir em território nacional. Compreensivelmente alarmado, Izmailov correu na direcção da linha de meio-campo, tentando devolver algum equilíbrio euclidiano a uma situação insustentável. Quando viu que o caminho estava barrado, e que não tinha outra hipótese senão tentar fintar um adversário, entrou em pânico, rodopiou, fechou os olhos, e afugentou a bola na direcção geral da linha de fundo. Ora acontece que, neste breve interlúdio eslavo, o Abel tinha continuado a correr na mesma direcção, e a bola, dinamitando séculos de progresso na Física desde Newton, chegou-lhe outra vez aos pés. Sem tempo para raciocinar - a única forma de retirar algo positivo da sua pessoa durante um jogo é confiar apenas nas respostas da sua memória muscular - o Abel estendeu instintivamente a perna; a bola ricocheteou na sua chuteira e atravessou o que apenas posso descrever como seis pernas pertencentes a atletas do Vitória de Setúbal para chegar, inacreditavelmente sã e salva, às imediações de Miguel Veloso.
Miguel Veloso, não vale a pena dourar a pílula, está num horrendo momento de forma, e fez um péssimo jogo. (Passou de um jogador inquestionavelmente superior ao seu pai para um ao mesmo nível do meu pai). Mas continua a ser um dos poucos membros do plantel do Sporting (juntamente com o Moutinho, coitado) com a capacidade para assimilar a ideia de que, em qualquer situação de jogo, existem, no mínimo, duas ou três maneiras de prosseguir a jogada. E talvez o único (além do Moutinho, coitado) que não se importa de fazer pausas de micro-segundos para emitir desapaixonados juízos de valor sobre os trolhas que o rodeiam. Miguel Veloso levantou a cabeça, viu Abel e Izmailov teoricamente “desmarcados” e, leitor atento de Bentham que é, tomou a opção utilitarista (as consequências do acto sendo mais importantes que a sua natureza intrínseca, etc.): endossou-a ao adversário que considerou menos capaz de iniciar um contra-ataque perigoso (creio que foi o Auri, talvez o único jogador do Vitória que não seria titular de caras neste Sporting). Ao minuto 60 da final da Taça da Liga, em pleno lance de ataque do Sporting, a melhor hipótese de maximizar a felicidade geral da sua equipa era ceder a bola ao adversário menos talentoso. O passe Benthamista de Miguel Veloso arrancou-me o único aplauso da noite, e provou de uma vez por todas três verdades que deviam ser óbvias para todos os Sportinguistas para aí desde Setembro:
1. o Miguel Veloso é um bom jogador e um excelente filósofo;
2. o Universo é um lugar desolado;
3. um dia, mais tarde ou mais cedo, vamos todos morrer.
Não queria deixar de endereçar os meus sinceros parabéns ao Vitória Futebol Clube: são da segunda melhor margem do Tejo, praticam o segundo melhor futebol do país, e venceram com toda a justiça o segundo troféu mais inútil da temporada.
O que aconteceu foi isto: no seguimento de um típico lance de ataque do Sporting - que esta época consiste em tentar transportar a bola até ao último terço do campo na vaga esperança de que algo misterioso e inefável aconteça - o Abel encontrou-se subitamente com a dita bola ao alcance do seu pé direito. Um imponderável destes exige uma resposta firme, e Abel tratou de afastar o problema dali o mais rapidamente possível, para se poder concentrar no seu trabalho: correr de um lado para o outro com um ar determinado, se possível obrigando um adversário a correr ao lado dele. As surpresas começaram aqui. A bola que Abel afastou com tanta diligência violou pelo menos sete princípios geométricos e chegou ao pé direito de Izmailov, talvez o imigrante de Leste com menos qualificações a residir em território nacional. Compreensivelmente alarmado, Izmailov correu na direcção da linha de meio-campo, tentando devolver algum equilíbrio euclidiano a uma situação insustentável. Quando viu que o caminho estava barrado, e que não tinha outra hipótese senão tentar fintar um adversário, entrou em pânico, rodopiou, fechou os olhos, e afugentou a bola na direcção geral da linha de fundo. Ora acontece que, neste breve interlúdio eslavo, o Abel tinha continuado a correr na mesma direcção, e a bola, dinamitando séculos de progresso na Física desde Newton, chegou-lhe outra vez aos pés. Sem tempo para raciocinar - a única forma de retirar algo positivo da sua pessoa durante um jogo é confiar apenas nas respostas da sua memória muscular - o Abel estendeu instintivamente a perna; a bola ricocheteou na sua chuteira e atravessou o que apenas posso descrever como seis pernas pertencentes a atletas do Vitória de Setúbal para chegar, inacreditavelmente sã e salva, às imediações de Miguel Veloso.
Miguel Veloso, não vale a pena dourar a pílula, está num horrendo momento de forma, e fez um péssimo jogo. (Passou de um jogador inquestionavelmente superior ao seu pai para um ao mesmo nível do meu pai). Mas continua a ser um dos poucos membros do plantel do Sporting (juntamente com o Moutinho, coitado) com a capacidade para assimilar a ideia de que, em qualquer situação de jogo, existem, no mínimo, duas ou três maneiras de prosseguir a jogada. E talvez o único (além do Moutinho, coitado) que não se importa de fazer pausas de micro-segundos para emitir desapaixonados juízos de valor sobre os trolhas que o rodeiam. Miguel Veloso levantou a cabeça, viu Abel e Izmailov teoricamente “desmarcados” e, leitor atento de Bentham que é, tomou a opção utilitarista (as consequências do acto sendo mais importantes que a sua natureza intrínseca, etc.): endossou-a ao adversário que considerou menos capaz de iniciar um contra-ataque perigoso (creio que foi o Auri, talvez o único jogador do Vitória que não seria titular de caras neste Sporting). Ao minuto 60 da final da Taça da Liga, em pleno lance de ataque do Sporting, a melhor hipótese de maximizar a felicidade geral da sua equipa era ceder a bola ao adversário menos talentoso. O passe Benthamista de Miguel Veloso arrancou-me o único aplauso da noite, e provou de uma vez por todas três verdades que deviam ser óbvias para todos os Sportinguistas para aí desde Setembro:
1. o Miguel Veloso é um bom jogador e um excelente filósofo;
2. o Universo é um lugar desolado;
3. um dia, mais tarde ou mais cedo, vamos todos morrer.
Não queria deixar de endereçar os meus sinceros parabéns ao Vitória Futebol Clube: são da segunda melhor margem do Tejo, praticam o segundo melhor futebol do país, e venceram com toda a justiça o segundo troféu mais inútil da temporada.
13 comentários:
Vou ali encerrar um blog para todo o sempre e depois logo se vê o que farei à minha vidinha.
Devia ser proíbido achincalhar desta forma todos aqueles que alguma vez tentaram ser engraçados ao falar de futebol.
Quando conseguir ultrapassar esta indefinível sensação de espanto irei levantar-me e fazer uma ovação.
que maravilha de escrito. genial.
ze maria, que maravolho de escroto. genital.
Da melhor margem do Sado... para além doutros erros que se perdoam!
vénia, vénia, vénia. Gosto quase tanto de si como o Manuel António Pina que, sem dúvida, será seu primo ou mesmo o próprio e inigualável Casanova.
como dizem os franceses: chapeau.
Cheguei, vi e linkei. Brutal, como soi dizer-se.
eu ri-me muito com este texto. alias este blog e absolutamente maravilhoso.
Um texto bem escrito, inteligente e com sentido de humor. Genial! Juntamente com o dos mandamentos um dos melhores posts do ano na blogosfera.
Estes comentários estão geniais. Há muito tempo que não lia comentários tão bons. Parabéns por estes comentários a todos os que escreveram estes comentários.
com tanto génio que pode um discreto e anónimo cidadão fazer... nada... tirar o chapeau (como diz um de cima) a tanto génio...e sair sem arriscar comentário algum.
As coisas vão melhorar. Daqui a dez anos, vais estar a referir este mesmo post para gozar com o desolador mas já distante passado.
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