«Abriu em Lisboa, há uns tempos, um novo restaurante. E isto não é novidade. Os restaurantes, como as pessoas, nascem e morrem. Mas abrir um restaurante é parir em Kabul. O Sommer está num momento crítico, e o médico tem de vir à sala, à família, e encolher os ombros naquele jeito arrepiante de quem parece saber mais e pior do que diz.»
Venho dizer isto com um atraso injustificável (e já depois desta pessoa que tem o mérito de ter tentado abrir os olhos da nação ainda antes de mim), mas cá vai: o Lourenço Viegas é a pessoa que mais gosto dá ler em toda a imprensa nacional. Trabalhando sozinho, o homem elevou a compra da Time Out a gesto heterossexualmente válido.
Venho dizer isto com um atraso injustificável (e já depois desta pessoa que tem o mérito de ter tentado abrir os olhos da nação ainda antes de mim), mas cá vai: o Lourenço Viegas é a pessoa que mais gosto dá ler em toda a imprensa nacional. Trabalhando sozinho, o homem elevou a compra da Time Out a gesto heterossexualmente válido.
10 comentários:
Eu estou neste pessimismo no que toca a novidades: tudo o que me agrada atribuo-o a uma só pessoa, por não crer em dois seres quase impossíveis ao mesmo tempo; tenho julgado por isso ser Vc. o crítico gastronómico que tenho lido e é isso mesmo que vou continuar a pensar.
23 de Fevereiro de 2008. Está a fazer um ano, portanto.
Atenção, terei descoberto que o Lourenço Viegas é geólogo, o que já começa a ser suspeito para a Geologia.
[removida (a anterior) porque tinha um verbo mal conjugado]
Dr. Calvet, Arq. Cordeiro: 'Almanaque do Povo' de 23 de Setembro de 2006. E não fui primeiras. Tsc, tsc.
[gargalhada tonitruante]
Genial! E adorei o esforço de divulgar uma receita de cabeça de porco com genuína convicção, quase me convenceu a ir comprar já uma no talho aqui de Alcântara e fazer uma surpresa para um jantar romântico lá em casa :)
Caros Rogério e Lourenço,
sejamos rigorosos: a primeira conversão na blogosfera é minha e data de 2006. Segue copy-paste de um post de 16/07/2006 (no educação sentimental).
«dizer mal para comer bem»
Numa terra onde a leitura da crítica dita gastronómica é penosa e pouco mais do que inútil, Lourenço Viegas pode começar a pensar na Ordem do Mérito. Ao décimo segundo texto, a quinzenal Contraprova (no Jornal de Negócios, mas também em blogue) vira fetiche e quase emparelha com Savage Love. Tom desempoeirado e observação certeira, eis o que esperar de quem se borrifou na cartilha da "ementa/carta de vinhos/descanso do pessoal/faça reserva/não aceita cartões".
Tecido o louvor, o amuse-gueule que se impõe (extenso e muito lisboeta, é verdade, mas justificado):
* VírGula
«Um leite-creme acompanhado de sorvete de tangerina, ele próprio também com essência de tangerina, estava bastante bom .... para leite-creme com sabor a tangerina acompanhado de sorvete da mesma. Ou seja, inesperadamente sabia bem e a tangerina não empestava. Dar sabor ao leite-creme, admitamos, é um sacrilégio que podia ter saído muito caro... "Bertílio, seu pai morreu nesse número."
Já a tarte de figos macerados com gelado de alfarroba era tão enfadonha e argamassenta que apenas se desculpa por saudosismo de um tradicional Almancil longínquo. O sentimento nunca é bom conselheiro.»
* Café Império
«Há restaurantes bons e restaurantes maus. E de cada um destes há aqueles de que gostamos e aqueles de que não gostamos. Quando damos por nós a gostar muito de restaurantes com má comida, serviço rude e ambiente deprimente, entrámos no campo da parafilia gastronómica. (...)
O Café Império é a experiência mais deprimente do mundo. Tão puramente deprimente que já nem lá vão os ícones da fossa: pais divorciados ao Domingo com os meninos antes de os depositarem na casa das exs, ou mães à quarta-feira com os seus pupilos fardados (...).
O bife vem presto, com molho de manteiga, único na consistência e sabor, com um final de boca lácteo persistente, com fortes aromas a ranço e caramelo, e leve toque a café.
As batatas fritas são péssimas. Falsas. Muito falsas, a saber a omelete, filhas do mesmo óleo que pegou ao serviço ainda jogava o Eusébio.
Mas se a menina quiser, tem um bacalhau à minhota, sobre-demolhado, insosso e com umas batatas mal fritas ensopadas em óleo fula.
Mais vale a náusea do bife ao vazio palatal do bacalhau, querida. A experiência Império quer-se forte, com recuerdos de gordura na roupa e perdurantes alucinações gostativas amanteigadas, para que se não esqueça a melancolia do momento. (...)
Dizia o Tom Jobim que "viver no exterior é bom mas é uma merda. Viver no Brasil é uma merda mas é bom". Ir ao Império é como viver no Brasil.»
* Painel de Alcântara
«Destino assíduo de famílias tradicionais ao fim de semana, barrigudos homens de negócio à semana, e de alguma da nata bem pensante-falante, que diz sempre bem dos restaurantes tasqueiros ao pé do emprego, onde é (re)conhecida pelo título honorífico. Topa-se ainda um considerável e surpreendente número de jovens casais. Decisão do macho alfa, está-se a ver pelo espantado "mor isto é que é o Painel!?", enjoo que refina quando chega o cozido: "para mim só couvinha e feijão. Tá?". (...)
Depois, para maldizer de cada cozido, há o factor-capricho. Tal como qualquer português escolheria uma melhor selecção que a do Scolari, também qualquer um faria um melhor cozido do que aquele que lhe servem. Por exemplo, eu não gosto de galinha no cozido (na Maria de Lourdes Modesto, o cozido da Estremadura não tem, mas tem-na o de Trás-os-Montes) e no do Painel não vem ave. Mas gosto de toucinho, que não havia, e de carne de vaca com gordura, que não tinha. Gosto também do feijão, mas em pequenas quantidades, que cozido não é feijoada. Também prefiro o arroz solto, ligeiramente amanteigado, sem morcela. Há até quem ponha azeite no cozido (também há quem ponha gelo no vinho....). E nisto do gosto-não-gosto, a casa fica sempre em desvantagem.»
* Valle Flôr
«Dizia o Eça que a civilização chegava da Europa e nos ficava curta nas mangas. E a comida francesa feita por franceses em Lisboa?
Começou a ementa de Primavera com um folhado de queijo com nêspera e umas flores comestíveis no prato (é detestável a moda das flores comestíveis....). É a época da nêspera (cozinha saison, bien sûr) e é milenar a tentação de combinar este estranho fruto com comida a sério (um irmão da mãe das minhas filhas, a propósito de modernices surreais, fala sempre num bacalhau com nêsperas...). Mas a nêspera tem dificuldade em saltar de um pátio de casa de porteira que tresanda a urina de gato para o prato de um dos mais luxuosos hotéis lisboetas. (...)
Segue-se o melhor prato: lombo de sardinha numa cama de xarém e espuma de queijo da serra. Aqui gemeu-se. A sardinha (que é linda) mantém uma textura e um sabor que poucos peixes aguentam, uma atitude chineleira em pratos de luxo, a conjugar com amêijoas num xarém de moagem grossa cozido num caldo de peixe muito intenso, ladeado por uma espuma de queijo da serra que liga bem com o milho e que não abafa o peixe, dando ao prato uma boca láctea e ácida (a espuma de queijo torna um prato redondo num prato triangular – um dia explicarei melhor esta ideia...).»
* Bull & Bear
«No Bull & Bear, os pratos levam ao limite o compromisso entre normalidade e excepcionalidade. Um simples empadão de pato, em que o puré de batata, caseiro e com uma boa dose de natas, aparece leve, discreto e lácteo, ligeiramente tostado por fora, como que embrulhado em celofane, mas quando se chega ao pato, uns centímetros abaixo, não é o pato-tipo-frango do arroz de pato, recozido e que só é salvo pelo chouriço – é pato tostado, pato-tipo-leitão, ou tipo-pequim, talvez confit, quebradiço e húmido. E quando se juntam os dois, é como andar de TGV numa planície. (...)
O risotto de polvo é um upgrade do arroz de polvo em tigela de barro: retiram-se os coentros, troca-se o trinca por arborio e atinge-se uma sofisticação digna – que não substitui o original, mas não peca por atrevimento. O polvo, ao quebrar, liberta o mar, que faz o risotto abandonar aquele marasmo característico. Talvez o risotto estivesse demasiado quente, como alguns dos outros pratos (Castro e Silva não domina a temperatura como Sobral). (...)
Mas o que mais surpreende no Bull & Bear é o atrevimento de fazer coisas simples no limiar da perfeição. Dois exemplos:
Terrina de foie-gras. Uma fatia apenas, não demasiado grossa, caseira, excelente, com os sabores de madeira a serem envolvidos na untuosidade do pato. Ao lado, uma pequena porção de molho cumberland, acidulado do sumo e zesto de laranja e limão envolvidos na geleia de groselha, como um aguilhão a picar o pobre pato. E o porto do molho cumberland ia buscar (como dizem os decoradores) o bouquet da terrina e pedia um gole do tawny servido a acompanhar – numa bulhonização do sauternes.»
* La Moneda
«Uma vez tentaram vender-me um sofá por seis mil euros. Mas eu não estava a "comprar um sofá", dizia a arquitecta, estava a "comprar um conceito. Porque hoje um sofá já não é apenas um sofá". Pois não.
Também no mundo da comida há muitos restaurantes que já não são apenas restaurantes. São um conceito. Invariavelmente ficam na moda, invariavelmente o serviço é demorado, invariavelmente a comida é uma porcaria, invariavelmente acabam por fechar. (...)
Felizmente, a lei de Gresham não se aplica na restauração: os maus restaurantes acabam por se expulsar a si próprios. Como a loja do sofá dos mil e duzentos contos, que hoje é uma agência do Banif.»
Agradeço as contribuições de todos, mas a verdade é que a essência do meu amor pelo Lourenço Viegas precede inclusivamente a existência do Lourenço Viegas, quanto mais os vossos copy-pastes.
Inês, ou repões os arquivos do Educação Sentimental ou então isso ficará por provar. No entanto, acreditem todos que eu cheguei lá sozinho (posso não ter sido o primeiro), enquanto que há pessoas que não chegaram lá sozinhas. É só isto.
Mas os melhor de tudo é que a minha pilinha ainda é maior do que as vossas.
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