segunda-feira, outubro 26, 2009

Flaming globes of Sigmund


Sempre gostei muito daquelas histórias - apócrifas ou não - de súbitas revelações nocturnas, em que uma pessoa se levanta a meio da noite depois de um espasmo de criatividade, anota tudo num papel e descobre horas mais tarde que a criatividade não sobreviveu à transferência de suporte. Hitchcock a sonhar uma ideia brilhante para um filme, a escrever a sinopse de olhos fechados, e a acordar para descobrir apenas um papelinho garatujado com a frase "boy meets girl"; Bolaño a sonhar um romance maior do que o Ulysses, a escrever a sinopse de olhos fechados, e a acordar para descobrir apenas um papelinho garatujado com o 2666; ou o caso ainda mais trágico de Carlos Azenha, a sonhar uma longa e respeitada carreira profissional no futebol europeu, a escrever a sinopse de olhos fechados, e a acordar para descobrir apenas um papelinho garatujado com o plantel do Vitória de Setúbal.
Estas histórias têm pathos, porque condensam numa narrativa limpinha um dos grandes mistérios humanos: as calamidades que podem acontecer à inspiração e às aspirações naquela fracção de segundos em que são transmitidas do córtex para o mundo.
Sempre gostei muito destas histórias, mas nunca tinha participado - até que há três noites atrás me levantei a meio da noite com uma solução para o problema do défice orçamental. Quando acordei de manhã, absolutamente convencido de que iria ganhar o próximo Nobel da Economia, encontrei apenas uma folha A5 ao lado da caminha com a seguinte frase: «O défice está no Brasil - é preciso fumá-lo».
Bem, o défice está no Brasil; e é preciso fumá-lo. Suponho que isto, como a Bíblia, não é para ser interpretado literalmente, até porque uma simples análise logística permite-nos verificar as dificuldades operacionais envolvidas: mesmo que o défice fosse efectivamente localizado no Brasil, seria complicadíssimo isolar as suas propriedades tangíveis de forma a conseguir emboscá-lo com mortalha e filtro. (Na verdade, uma segunda camada de complexidade é lançada sobre o versículo pelo duplo sentido do verbo fumar, que poderia até levar ao surgimento de uma corrente herética que pretendesse não aspirar o fumo resultante da combustão do défice, mas sim desidratar o défice num fumeiro, o que em princípio levaria à sua preservação, etc, etc, e é bom de ver que temos logo aqui um problema maior do que o Pelagianismo).
Tudo isto foi com certeza provocado pelo livro que li na noite anterior - Liar's Poker, de Michael Lewis - especificamente, uma passagem em que ele compara a assimilação do jargão financeiro à aprendizagem de uma língua estrangeira: primeiro faltam-nos as palavras para determinados conceitos, depois começam-nos a surgir palavras para conceitos que não sabíamos possuir, e finalmente acabamos a sonhar com derivativos japoneses. O livro é muito bom e proporcionou-me muita diversão mesmo antes de a palavra "blackjack" na página 125 me ter provocado o equivalente literário a uma ejaculação precoce. A história de Howie Rubin, o trader que perdeu 250 milhões à Merril Lynch em 1987, e que começou a carreira a contar cartas em Las Vegas, vale, só por si, o preço do livro (que não faço ideia qual seja; uma ignorância apropriada, até porque no mundo do livro ninguém sabe o preço de nada).
O elemento espectacular é este: Howie Rubin tornou-se bond trader porque aquilo lhe fazia lembrar o blackjack (o único jogo de casino em que eventos passados influenciam eventos futuros), mas chegou à conclusão de que a vida em Las Vegas era uma coisa muito mais digna e racional. A sua revelação, codificada implicitamente no axioma de que é mais arbitrário trocar obrigações hipotecárias do que jogar blackjack, é que o dinheiro é mais estúpido do que um baralho de cartas. Rubin ainda anda ali às voltas a tentar convencer-se de que o facto de eventos passados não influenciarem eventos futuros no mercado das obrigações hipotecárias está relacionado com o comportamento errático dos homeowners americanos, mas não engana ninguém. Os homeowners americanos e as pilhas de 312 cartas bem baralhadas podem ser volúveis, mas são um modelo de estabilidade comparados com o dinheiro. O fio condutor de Liar's Poker é este: o dinheiro é completamente maluco. Não se pode confiar nele. Num momento pode estar ali ao canto, tranquilo, ocupado a ser muito, e no momento seguinte pode estar deitado numa viela, a vomitar na sarjeta, sem se lembrar quem é nem onde mora. Bom, este blogue acaba aqui. Obrigado a todos por terem vindo, foram três anos extraordinários, mas agora a minha vida é isto:

12 comentários:

marta morais disse...

tu não nos assustes desta maneira, logo pela manhã e só com um café tomado ainda, francamente...

azeite disse...

ficava-te muito mal, rogério, acabares um blogue deste calibre com um post onde se encontra uma desatenção sintáctica deste calibre: "até que há três noites atrás me levantei a meio da noite".

há três noites à frente é que era uma coisa bonita de se ver. e como era bonito de se ver um novo post. até pode ser um novo post para acabar com o blogue, mas há que acabá-lo com a gramática no lugar. é só o que te peço (eu, que nunca te pedi nada) para cumprir o meu sonho de ser a edite estrela por um dia.

Tolan disse...

Epá, blackjack... Da última vez que joguei ganhei mais de 3 mil euros em menos 15 minutos. Nas horas seguintes perdi 5 mil. Deixei de jogar porque a sensação eufórica de ganhar dinheiro no black jack é irreal e de curta duração, tipo cocaína. Já perder o dinheiro, é algo que se sente durante muito tempo, às vezes nunca se esquece e deprime demais.

kiss me disse...

"há três noites atrás" não é um erro de gramática, é uma redundância mas não um erro. Assim como na expressão "subir para cima" o "para cima" não está lá a fazer nada mas não se pode falar em erro gramatical.

A pedir para o autor do blogue não o terminar (que não era de todo a intenção do post, segundo a minha leitura) que seja com argumentos bem mais fundamentados, que quem lê e gosta deste blogue não é pela falta de erros gramaticais que o faz.

nome disse...

Dizem por aí (eu não, que não brinco com estas coisas) que o senhor e o maradona são a mesmíssima pessoa. Se são, é um prodígio. Se não são, é um prodígio também. Seja como for, gostava de ficar a ler dois prodígios a um só. Mesmo que os dois, no fundo (ou no raso, tanto faz), sejam o mesmo.

Agora, para o bem da nossa saúde e da sua, nunca mais escreva "este blogue acaba aqui" ou coisa parecida.

Menina Limão disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

O Casanova e o Maradona são a mesma pessoa? Mas que raio de ideia.

filipe canas disse...

Quero muito ler essa obra.


O michael lewis, diz não sei onde, que quando andava a apresentar o livro pelo mundo fora os putos que queriam trabalhar na bolsa estavam mais interessados em saber como se faziam as trafulhices do que propriamente em saber evitá-las ou condená-las.

Anónimo disse...

o casanova lê o economiste, certo?

R. Casanova disse...

Boa noite a todos. O blog acabou (blackjack), portanto vou passar a ser um humilde comentador como vocês, o povo. O Azeite tem toda a razão. Não sei se era isso que ele queria dizer, mas a frase do Casanova é inaceitável - não por haver um erro gramatical, mas pela repetição desleixada "três noites... meio da noite". É uma pessoa atenta, o Azeite.

Entretanto, estou aqui a meio de um joguinho a quatro baralhos, com 59 mãos jogadas (47% de vitórias, com um "push"), e 1200 dólares ganhos com um bankroll inicial de 1000 (o meu betting spread é 12:1, não sou maluco). Acabei de desobedecer à basic strategy de fazer surrender com 14 (10-4) contra um 10 do dealer, porque a true count (Hi-Lo), apesar de nada de espectacular, era ainda assim negativa (-3). Correu mal, mas está tudo bem na mesma, e provei que tinha razão. Espero que concordem todos comigo. Voltem sempre, eu vou dando novidades.

azeite disse...

não há nada a fazer, a minha reputação precede-me: toda a gente sabe que sou mesquinho e picuinhas (edite estrela), o que me leva a encarar as redundâncias e as repetições desatentas como mau estilo e o mau estilo (nos que não o cultivam, como é o caso do rogério) deve ser encarado como uma falha, um erro, em suma, como má gramática.

saber que o azeite é uma pessoa, enternece-me; dizer que é uma pessoa atenta, roça o escândalo.

José Pedro Veiga disse...

"Flaming globes of Sigmund?... That's not funny."


("like flaming globes, Sigmund! Like flaming globes!")