domingo, outubro 29, 2006

«The Death of the Lion» (1)

Nas muitas páginas que Henry James dedicou ao exame da vida literária, há um elemento que aparece repetidamente. Encontramo-lo, com algumas variações de grau e género, em The Aspern Papers, «The Middle Years», «The Lesson of the Master» e no meu conto favorito, «The Private Life». Notamo-lo também em «The Death of the Lion». Dois cursos de acção semelhantes, e que produzem resultados iguais, parecem exigir do leitor, com uma tenacidade sussurrada, julgamentos opostos. Vezes sem conta, é-nos pedido que atribuamos um valor aparentemente exagerado a intenções, ou apenas a suspeitas de intenções. A mesma manobra (grande parte das acções dos personagens de James podem ser descritas como manobras, ou estratagemas) pode ser justificada de duas maneiras diferentes, dependendo da perspicácia moral de quem as perpetra.
O narrador da história é um jornalista, destacado para escrever um perfil do escritor Neil Paraday, e que, por razões sempre intrepidamente ambíguas - até para ele - desiste da missão inicial e se vai infiltrando na vida de Paraday, como confessor e protector. Que a protecção é necessária, o leitor nunca duvida. Paraday vê-se, de um momento para o outro, famoso, celebrado; «the poor man was to be squeezed into his horrible age», nas palavras do narrador. As exaltações públicas acumulam-se, perfis e retratos são encomendados, e a alta sociedade londrina adopta-o - como acessório cultural para soirées. O processo vem a ter consequências desastrosas, para ele e para um texto seu ainda por completar, que poderia ter vindo a ser a sua obra-prima, mas que acaba por desaparecer, tragado por aquele ciclone social.
O conto é escrito sob a forma de uma confissão do narrador à posteridade, a mesma posteridade à qual foi negada a última obra de Paraday, mas aquilo que ele pretende confessar nunca se cristaliza. Pareceu-me clara a sua tentativa de "vender" os seus escrúpulos ao leitor. Na 1ª linha do conto diz-nos que «I had simply, I suppose, a change of heart» , e é em redor dessa frase, com toda a sua carga de ambiguidades, que ele vai moldando a narrativa. A determinada altura, os seus motivos são postos em causa por outra personagem, Mrs Wimbush (os nomes de James embaraçam os de qualquer outro escritor). A confrontação, significativamente, não é relatada em discurso directo, mas sintetizada numa carta, na própria voz do narrador: «I’m made restless by the selfishness of the insincere friend - I want to monopolise Paraday in order that he may push me on. To be intimate with him is a feather in my cap; it gives me an importance that I couldn’t naturally pretend to, and I seek to deprive him of social refreshment because I fear that meeting more disinterested people may enlighten him as to my real motive».
Lendo o conto hoje pela segunda vez, insinuou-se-me uma alternativa extraordinária: o incidente é falso. O confronto com Mrs Wimbush nunca aconteceu e o rasgo de análise proveio de si próprio. Incapaz de o resguardar na privacidade da sua consciência, acaba por partilhá-lo com o destinatário da carta ( e com o destinatário do conto, que somos nós) sub-alugando-o a uma intuição alheia.
Henry James é a melhor dor de cabeça que a Literatura proporciona.

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