Duvido que ainda haja alguém que não tenha conhecimento do 'incidente' em que Michael Richards (o Kramer da série Seinfeld) se envolveu na semana passada. Os eventuais pára-quedistas podem encontrar aqui um breve resumo do que aconteceu, aqui o vídeo do YouTube, e aqui o comentário do Pedro Mexia, que está na mesma linha das reacções que tenho lido em jornais e blogs anglófonos.
Não tenho talento nem tendência para fazer de advogado do Diabo, mas, em primeiro lugar, acho que é seguro analisar o caso sem levar em conta a estratégia de relações públicas seguida posteriormente por Richards e pelo seu agente. Arrisco mesmo que se deve tomar o pedido de desculpas público e a admissão da sua "flawed humanity" (um pró-forma em situações destas) com uma pitada de sal. Aquilo é gestão de danos, e pouco mais.
Acho também que este caso é bastante diferente do de Mel Gibson, ao qual foi imediatamente comparado, e queria adiantar uma explicação alternativa, que julgo ser mais credível do que um mero sopro de "hostilidade reprimida".
É indesmentível que racismo instintivo está presente, em maior ou menor grau, em quase todos nós. Parafraseando Martin Amis, a progressão natural da humanidade é nós sermos um pouco menos racistas que os nossos pais, e os nossos filhos serem um pouco menos racistas que nós. O que a mente faz com esse instinto é que é importante, e o catálogo dos que decidem erguer um edifício ideológico à volta dessas erupções atávicas (e aí já é mesmo de uma decisão que se trata) é felizmente reduzido. A fronteira entre ambos os territórios, apesar de alguns matizes comuns, é clara e definida. No caso de Gibson, por exemplo, parece-me que o preconceito anti-semita, dadas as circunstâncias e os conhecidos precedentes, é muito mais evidente.
Quanto a Michael Richards, qualquer análise terá forçosamente de considerar essa nebulosa distinção entre actor e personagem de palco. A mim, o vídeo parece-me acima de tudo o registo de uma performance catastrófica, ao longo da qual o actor e o personagem se misturaram com resultados não tanto explosivos como implosivos. Um actor que, convém lembrar, não tem muita experiência de stand-up e não terá o nervo (nem a capacidade?) para lidar adequadamente com heckling. A raiva de Richards é inegável: a resposta, admito-o, pode muito bem ter sido o libertar de um vapor racista acumulado. Mas o mais provável é que tenha obedecido a outra lógica miseravelmente humana: uma escolha deliberada da palavra que se julga ir causar mais ofensa ao provocador. Caso o espectador em questão, além de negro, fosse tetraplégico, ou gago, ou tivesse o rosto escavado por marcas de bexigas, acredito que Richards tivesse seguido essa via.
Outra hipótese é tudo não ter passado de uma utilização desastrosa de um recurso cómico com algumas tradições. O caso lembrou-me imediatamente uma rotina que o Lenny Bruce usava nos anos 60. (A citação é do livro The Essential Lenny Bruce: Unexpurgated Satirical Routines, Panther Books, London, 1975):
«By the way, are there any niggers here tonight? [outraged whisper] 'What did he say? "Are there any niggers here tonight"? Jesus Christ! That is cruel. Does he have to get that low for laughs? Wow! Have I ever talked about the schwarzes before the schwarzes have gone home? (...)'
Are there any niggers here tonight? I know that one nigger works here, I see him back there. Oh, there's two niggers, customers, and, ah, aha! Between those two niggers sits one kike - man, thank God for the kike! (...) The point? That the word's supression gives it the power, the violence, the viciousness. If President Kennedy got on television and said, 'Tonight I'd like to introduce the niggers in my cabinet,' and yelled ' niggerniggerniggerboogeyboogeyboogey' at every nigger he saw 'till nigger didn't mean anything anymore, 'till nigger lost its meaning - you'd never make any four-year-old nigger cry when he came home from school.
Screw 'Negro'! Oh, it's so good to say, 'Nigger!' Boy?»
Num determinado ponto do vídeo, Richards diz "Alright, you see, that shocks you", como alguém que, bloqueado num exame de matemática, se lembra apenas de metade da fórmula. E é a partir daí que o seu esbracejar se torna mais doloroso.
Repito: não conheço o Michael Richards de lado nenhum, e não recebo 10% do que ele ganha.
Mas estou convencido de que o défice aqui é de talento, e não de personalidade.
1 comentário:
Boa. Enfim uma boa análise do que aconteceu. Gosto deste blog. Vou continuar a ler.
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