O momento em que me endireitei no sofá e passei ao grupo dos convertidos lynchianos é fácil de situar; ocorre no segundo episódio da série que reconciliou uma geração inteira com o televisor: o Agente Cooper, antes do que prometia ser uma mera palestra sobre técnicas de detecção modernas, perante sua pequena equipa provinciana, saca de um ponteiro extensível, e diz: «Mas primeiro vou falar-vos um pouco sobre um país chamado Tibete». Foi como se Edward Lear, de repente, se tivesse materializado no tubo catódico.
A mesma técnica parece ter sido apropriada por David Lynch, que tem passado grande parte da sua carreira a apontar uma muito pouco professorial vareta em várias direcções da sua topografia interna, mas explicando sempre muito pouco, e normalmente sobre outra coisa qualquer.
(É, aliás, duvidoso que os criadores desta estirpe específica sejam os melhores exegetas da sua própria obra, e convém ressuscitar a Falácia Intencional para os impedir de causar danos retroactivos. Posso estar a cometer uma tremenda injustiça, mas a ideia que retenho de Lynch, baseada numa mão-cheia de entrevistas, é a de um homem profundamente desinteressante - certamente muito menos interessante do que os seus filmes - com um entusiasmo quase adolescente por charlatanismos místicos, sendo frequente ouvi-lo falar de "reencarnação", "energias negativas" e "oceanos de consciência pura"; o tipo de conversa que me leva imediatamente a consultar o horóscopo mais próximo, à procura de explicações para tamanha má sorte).
INLAND EMPIRE (em maiúsculas, aparentemente), rodado ao longo de cinco anos, e sem guião, é a culminação natural de um método que sempre teve muito de instintivo - lembre-se o operador de som de Twin Peaks, transformado em demónio depois de uma aparição acidental diante da câmara - e arrisca-se a estilhaçar o precário mas justíssimo consenso crítico que acolheu Mulholland Drive. A maneira de interpretar um filme de Lynch tem dividido opiniões desde Eraserhead; questões de "significado" são ciclicamente remexidas, com os duvidosos Tomáses a deplorarem a sua falta, e os pacientes zelotas a explicarem que isso é o que menos importa. (Os carentes de "significado", já agora, poderão achar algum consolo na presença de Ian Abercrombie - o saudoso Mr. Pitt, de Seinfeld - que aqui interpreta um mordomo algo suspeito. A culpa, em teoria, pode muito bem ser dele). O próprio filme providencia um manual de instruções condensado para o seu visionamento: colocar um relógio de pulso, perfurar um pedaço de seda com um cigarro aceso, e espreitar através do orifício. Confiem em mim: tudo isto é útil. Menos a parte do relógio, que só atrapalha.
Nominalmente, o filme é sobre filmes, sobre actores, e sobre buracos. O filme dentro do filme é On High in Blue Tomorrows, um melodrama gótico sulista sub-Tennessee Williams, que é já o remake de um anterior filme polaco, nunca finalizado devido a complicações "dentro da história", que podem ou não estar relacionadas com uma maldição. «Actions have consequences», advertem duas personagens na primeira meia-hora, axioma que o resto do filme parece indeciso em negar ou confirmar. O fluxo temporal é minuciosamente vandalizado, e relações de causa-efeito subvertidas a um ritmo preocupante. Um tique recorrente em Lynch é a análise obsessiva de reacções emocionais desajustadas das situações que as despoletam: personagens riem ou choram por motivos que raramente são aparentes; uma sitcom que consiste em três coelhos gigantes num apartamento (don't ask...) arranca gargalhadas de conserva nos momentos mais inesperados.
Entremeado com a "narrativa" (resolutamente entre aspas, esta da "narrativa"), há um comentário recorrente sobre os próprios processos técnicos do filme. A sensação de desorientação, tão familiar em Lynch, é sempre amplificada pelo seu uso de efeitos sonoros, e INLAND EMPIRE encontra-o em boa forma nessa vertente. As sequências em polaco (retalhos fantasmagóricos da versão original de On High in Blue Tomorrows) são acompanhadas por um pano de fundo de chuva contínua, aludindo aos sons do vinil, como se aquilo que ouvimos pertencesse a um plano temporal diferente das imagens. Noutras cenas, em que se nota mais a textura granulada da câmara digital, que como toda a gente já saberá nesta altura, foi uma estreia para Lynch, o potencial de inquietação é exponenciado pelo insólito feel de vídeo caseiro.
Entretanto, no que passa por enredo, temas e motivos são chocalhados e repetidos, desenhando padrões fugazes: há um filho morto, raramente mencionado, mas cuja presença parece assombrar o próprio coração do filme; há múltiplas referências a orifícios de várias espécies; numa das sequências com os coelhos humanóides, o anel incandescente no canto superior direito da tela (que assinala a mudança de bobine) prolonga-se por vários segundos, até o espectador se aperceber que é um efeito visual do próprio filme: uma conflagração minúscula no cenário, como se houvesse uma segunda audiência do outro lado do ecrã, munida com os seus próprios relógios e cigarros, espreitando através da seda perfurada.
INLAND EMPIRE é também um repositório de clichés genéricos. Personagens mudam de identidades e cenários, perseguidas pelos mesmos elementos formulaicos de telenovela: o diálogo familiar entre marido e mulher em que uma gravidez é dramaticamente revelada; a confissão brutal de uma criminosa num gabinete policial; a 'girl's night in', em que amigas de roupa interior trocam confissões amorosas. Todas estas cenas fazem parte da memória colectiva do cinéfilo (ou, em nome da inclusividade, do espectador); constituem, por assim dizer, a nossa gramática universal. Divorciadas, contudo, de uma linha narrativa, esvaziadas de personagens sólidas, e à deriva na instabilidade cronológica que molda o filme, adquirem aqui um estranho e inefável poder, que quase nos força a subscrever o que parece ser a tese central de INLAND EMPIRE: fazer e ver filmes são as actividades mais estranhas do Mundo.
O nervosismo confuso dos personagens acaba por se alastrar a toda a sala. A três quartos da duração do filme, fiquei muito satisfeito comigo próprio quando julguei descortinar um nexo entre os personagens que tinham relógio de pulso e os que não tinham, apenas para ver a teoria estilhaçada no plano seguinte. Foi mais ou menos nesta altura que um espectador na fila da frente - o terceiro da noite - se levantou e saiu da sala com um resmungo sonoro, à procura de "significado" noutras paragens. (Nas ruas de Birmingham? Boa sorte.)
Mais algumas coisas acontecem. Alguém vomita sangue no Passeio das Estrelas; um grupo de desalojados debate a melhor maneira de chegar a Pomona de autocarro (again, don't ask); e fala-se de uma rapariga com as entranhas destroçadas, que apenas quer viver os meses que lhe restam em paz com o seu macaco (presumivelmente numa mansão delapidada, e com von Stroheim como mordomo). Tal como a cena de maior impacto emocional em Mulholland Drive é cortada abruptamente, expondo de forma cruel a falsidade da mesma (o playback no Club Silencio), também o aparente clímax de INLAND EMPIRE é brutalmente interrompido pelo revelar de uma câmara, e pela voz do realizador do filme dentro do filme gritando: "Corta!".
À saída da sala, com uma pequena mas familiar multidão de devotos lynchianos trocando acenos de cabeça, e tentando decidir qual o melhor sítio da cidade para se verter uma chávena de mau café sobre um imaculado guardanapo branco, ouvi alguém dizer o seguinte atrás de mim, num tom de voz com o seu quê de gratidão exausta: «Man, that was a really long short-circuit».
6 comentários:
Com Lynch descasei sem chegar a casar desde o inenarrável Lost Highway. Cansei-me daquela mente tortuosa e torturante.
Lembro-me da tomada de decisão de "Lynch nunca mais" através da manifestação do meu desprezo intelectual por Lost Highway. Uma marca nas tertúlias com amigos: fui rotulado como falho de sensibilidade pela verdadeira arte, pela abstracção, filisteu, cultor do pop, etc.
Quando vi os coelhos pensei que fosses falar de Harry Angstrom e do grande acontecimento para o meio editorial luso que será a reedição do 1.º livro da sua tetralogia, que foi considerada (no seu todo) como uma das melhores obras da literatura contemporânea em língua inglesa...
Um abraço
Obrigado pela preview...
De nada. Abraço.
André, havia um filisteu como tu na nossa tertúlia, mas foi barrado com alcatrão e penas, e banido da cidade. E atenção que este blogue é muito pouco democrático: futuros comentários pouco abonatórios sobre David Lynch serão prontamente salazarados.
Vou preparando as penas...
E fazendo jus ao teu lack of demcocracy (com pronúncia à Vasco Rato) deixo-te ficar com dois versos de 1 dos 3 F's da Outra Senhora:
Cheia de penas me deito
E com mais penas me levanto
Penso que o Luís é como o ateu convicto. Alimenta-se da sua própria negação. Muito comum nos iluministas modernos espécie de cristãos disfarçados.
Mas vai converter-se certamente.
Não há NINGUÉM como o Lynch.
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