sexta-feira, junho 29, 2007
Química real na Tailândia
"É a festa, a festa dos touros" explicou a voz, na RTP. A voz pertencia a uma pessoa que julgo chamar-se José Castro. Outra voz, que pertencia a outra pessoa, confirmava: "É de facto a festa dos touros". A presidente da Câmara Municipal do Montijo, Maria Amélia Antunes, apareceu de repente no ecrã, revelando a sua felicidade por estar ali, a participar naquela "festa, a festa dos touros". Tentou ainda, durante vários segundos, pronunciar a palavra "intervenientes", mas acabou por abandonar esse projecto em favor de um projecto alternativo, que consistia em pronunciar novamente a palavra "festa", o qual conseguiu concluir com um moderado grau de sucesso. O entrevistador desejou-lhe "uma boa corrida", o que a deixou com um ar compreensivelmente alarmado.
No AXN, que passava o filme Devil's Own, Brad Pitt aperfeiçoava a sua imitação do mais implausível sotaque irlandês da história do cinema (que viria a sublimar em Snatch). Harrison Ford fazia trejeitos com a boca. "How can you say that?", perguntou ele. Todas as evidências apontam para que se estivesse a referir ao sotaque de Brad Pitt. Um argumentista honesto teria alterado a deixa para: "How can you say it that way?"
Após um zapping de vários minutos por quarenta e dois canais, a voz que julgo pertencer a José Castro continuava a enumerar os motivos pelos quais todos estávamos em festa: "A praça de touros do Montijo completa este ano cinquenta anos"; "Sónia Matias estreia hoje uma casaca nova"; e o crucial "É isto que é a festa, a festa dos touros".
Na MTV podia ver-se um programa chamado «The Real World», no qual um número real de pessoas reais é catapultado pelos produtores em diversas direcções reais, até que duas delas, por mero encolher de ombros estatístico, decidam dormir juntas, de uma forma real. Uma loura real chamada Jennifer revelou a sua ansiedade em encontrar-se de novo com Stephen em Denver, porque "we had real chemistry in Thailand". O mundo não se torna muito mais real que isto.
De volta à festa na RTP, um grupo de adolescentes descritos como sendo «forcados amadores de Alcochete» prepararam uma manobra no sentido de evitar que um touro com um ar muito pouco festivo se deslocasse do ponto A ao ponto C. Para este efeito, um dos adolescentes colocou-se no ponto B, tendo ainda o cuidado de informar a audiència sobre a espécie de animal que ali se encontrava para participar na festa: "É touro! É touro! É touro!"
O plano, contudo, foi evidentemente mal ensaiado. O touro, talvez com o pensamento ocupado por chapéus coloridos, línguas-da-sogra, e outros artigos festivos, insistiu em deslocar-se até uma determinada secção da arena, situada precisamente atrás do grupo de adolescentes. O primeiro adolescente tentou abraçar o touro. O segundo adolescente tentou abraçar o primeiro adolescente. O terceiro, quarto e quinto adolescentes tentaram abraçar-se a si próprios, enquanto o touro se esquivava a todas as manifestações de camaradagem, mostrando uma indiferença pelo clima próprio das festas que foi descrita pelo comentador da RTP nestes termos: "o touro a mostrar ali alguma maldade".
Não consigo, sinceramente, decidir o que penso sobre as touradas. Contavam-se alguns aficionados entre os Casanovas e, durante a infância, o espectáculo assumiu a banalidade do que é familiar (e poucas coisas são mais banais para uma criança do que aquilo que os avós gostam de ver na televisão). Alguns anos de afastamento obliteraram por completo essa familiaridade; é inquestionável que uma corrida de touros, para alguém alheado dos ingredientes históricos e coreográficos da modalidade, é um espectáculo que pode perfeitamente ser descrito como ridículo, cruel ou degradante. Poder-se-ia dizer o mesmo de certos reality shows, é certo, mas nenhum daqueles a que assisti se baseava numa representação cénica de um ritual arcaico, actualizado com óbvias vantagens para uma das partes, e na qual um elemento fulcral é o sofrimento escusado da outra. (Esclareço que nunca consegui ver o 1º Big Brother dos Famosos, e que me pode faltar informação relevante).
As frases mais lúcidas da noite foram os elogios dirigidos aos cavalos de João Moura. Ter de andar a fugir de um touro bravo, num espaço reduzido, com os olhos tapados, e montado por um rotundo homem aos berros, não deve ser tarefa nada fácil, e revela grandes doses de Química Real. Mal sabem os velozes cavalinhos do Reino Unido a sorte que têm, nascendo, como o fazem, numa espécie de "Horsie Heaven" na Terra.
Pedem-me sempre tão pouco
O Major continua a envolver pessoas em correntes, querendo agora saber quais os últimos cinco livros que li. Não tenho nada contra o arremesso de memes, e até acho que apenas costumam pecar por falta de ambição. Participaria de bom grado numa corrente deste género: «Crie um post no qual enumere os últimos quinhentos livros que leu, e inclua para cada um deles uma ilustração criada com o Paintbrush e uma citação retirada de uma página ímpar».
À falta de ambição responde-se sempre com o essencial; neste caso, nem sequer vou dizer o que penso sobre o raio dos livros. E não passo nada a ninguém.
Cara ou Coroa, Ellery Queen
À falta de ambição responde-se sempre com o essencial; neste caso, nem sequer vou dizer o que penso sobre o raio dos livros. E não passo nada a ninguém.
Cara ou Coroa, Ellery Queen
The Dreaming Swimmer (Essays: 1987-1992), Clive James
Retratos e Auto-Retratos, Vasco Pulido Valente
The Moviegoer, Walker Percy
Jesus' Son, Denis Johnson
Retratos e Auto-Retratos, Vasco Pulido Valente
The Moviegoer, Walker Percy
Jesus' Son, Denis Johnson
quarta-feira, junho 27, 2007
Um post ofegante
O blogue do Filipe Guerra foi de férias, despedindo-se com um telegrama fabuloso que me fez lembrar o bloco de notas de Chekhov (e isto é um elogio que só utilizo uma vez por ano).
O Memória Inventada, surpreendendo tudo e todos, regressou de férias. O primeiro post de «fim de pausa» (categoria que já devia estar incluída no índice) pôs-me a pensar num casal de tartarugas que eu tive quando morei em Sacavém. Uma vez apanhei uma a mordiscar as patinhas da outra, que sorria; os meus pais nunca acreditaram nesta história. O segundo post pós-pausa tem uma ilustração da qual é impossível desviar o olhar. Há um livro de Isaiah Berlin cujo infeliz grafismo da capa da edição portuguesa (Gradiva, parece-me) sugere que existem oito inimigos da liberdade, entre os quais se incluem Rousseau, a cidade de Berlim e o profeta Isaías. Já aquela capa que ali está no MI parece insinuar que Vasco Graça Moura, Cyrano de Bergerac e Edmond Rostand colaboraram num romance histórico intitulado Bertrand. Ou que dois franceses escreveram um poema épico chamado Vasco Graça Moura.
O autor do blogue A Causa Foi Modificada. obrigou-me ontem a subir a Calçada da Ajuda em 7.4 segundos, uma audaz manobra estratégica que, no entanto, falhou o seu objectivo principal que era, claramente, matar-me.
Peguem num papel e num lápis e tentem fazer um anagrama a partir de Ex-Ivan Nunes. A sério, tentem. É impossível. Aliás, a brincadeira dos anagramas começa a cansar-me. Ando a experimentar algumas ideias para refazer a lista de links. Darei novidades em breve.
Tony Blair não sabe jogar à bola.
Também vasculhei o YouTube à procura de provas visuais de que o Derlei não percebe nada de política externa, mas em vão.
O Memória Inventada, surpreendendo tudo e todos, regressou de férias. O primeiro post de «fim de pausa» (categoria que já devia estar incluída no índice) pôs-me a pensar num casal de tartarugas que eu tive quando morei em Sacavém. Uma vez apanhei uma a mordiscar as patinhas da outra, que sorria; os meus pais nunca acreditaram nesta história. O segundo post pós-pausa tem uma ilustração da qual é impossível desviar o olhar. Há um livro de Isaiah Berlin cujo infeliz grafismo da capa da edição portuguesa (Gradiva, parece-me) sugere que existem oito inimigos da liberdade, entre os quais se incluem Rousseau, a cidade de Berlim e o profeta Isaías. Já aquela capa que ali está no MI parece insinuar que Vasco Graça Moura, Cyrano de Bergerac e Edmond Rostand colaboraram num romance histórico intitulado Bertrand. Ou que dois franceses escreveram um poema épico chamado Vasco Graça Moura.
O autor do blogue A Causa Foi Modificada. obrigou-me ontem a subir a Calçada da Ajuda em 7.4 segundos, uma audaz manobra estratégica que, no entanto, falhou o seu objectivo principal que era, claramente, matar-me.
Peguem num papel e num lápis e tentem fazer um anagrama a partir de Ex-Ivan Nunes. A sério, tentem. É impossível. Aliás, a brincadeira dos anagramas começa a cansar-me. Ando a experimentar algumas ideias para refazer a lista de links. Darei novidades em breve.
Tony Blair não sabe jogar à bola.
Também vasculhei o YouTube à procura de provas visuais de que o Derlei não percebe nada de política externa, mas em vão.
segunda-feira, junho 25, 2007
"Modern literature's finest drunken stupor"
Under the Volcano é o «livro da vida» de muita gente. Não será o meu, porque essa posição está muitíssimo bem ocupada, mas admito perfeitamente que pudesse ser, caso lhe tivesse chegado um pouco mais cedo, ou um pouco mais tarde. Tenciono confirmar as memórias difusas que dele tenho nos próximos dias (não lhe pego há quase dez anos); na altura, essa experiência adolescente representou uma turbulenta dilatação das possibilidades da literatura: a ideia de que um livro podia ser um enorme tecido alusivo, remetendo continuamente para precedentes, referenciando tanto a high como a low art; e a revelação (na altura) de que era possível escrever quatrocentas páginas lúcidas sobre uma broega infinita, em que muito pouca coisa acontece fora da consciência do protagonista.
A edição da HarperCollins - cuja capa se pode admirar três posts abaixo - é bastante recomendável. (Os livros com esta chancela têm várias vantagens, das quais destaco duas: uma boa relação peso-volume, que julgo dever-se ao tipo de cola utilizada, e uma encadernação extraordinária que permite manter o livro aberto durante a refeição sem a necessidade de recorrer a contrapesos, e sem afectar a sua integridade).
Vem também acompanhada de uma introdução inconstante e algo repetitiva de Stephen Spender, que denuncia irremediavelmente a sua vetustez (o texto é de 1965) com esta infeliz sugestão: «Someone should write a thesis on the influence of cinema on the novel». Quarenta anos depois, é possível navegar até ao México numa jangada construída com este tipo de teses.
Spender recolhe alguns aplausos da plateia quando tenta evitar a preguiçosa inclusão do romance numa tradição modernista específica dos anos 20 e 30, mostrando como a complexa utilização de mitos e símbolos por parte de Lowry é radicalmente diferente da de Joyce, Eliot ou Faulkner, mas deita tudo a perder quando recorre aos mais estafados lugares-comuns para explicar o horror que Lowry tinha à sobriedade. «The real cause of alcoholism is the complete baffling sterility of existence as sold to you». A frase é de Lowry, mas podia ser de qualquer outro bêbedo eloquente, meia-hora antes de ser corrido do bar. Spender engole o isco, a linha, o anzol, e ainda lança olhares gulosos à cana de pesca: «...Lowry anticipates later artists - Jackson Pollock, for example - self-involved yet selfless, intoxicated yet wholly lucid, drinking themselves into sobriety, who in their very excesses seem to acquire some quality of saintliness, as though undergoing what in others might appear to be vices, for the sake of the rest of us». A tese, portanto, é esta: Lowry, e outros mártires de taberna, enfrascavam-se não por eles, mas pelos pecados da humanidade. Uma ideia suficientemente lunática para induzir no leitor um desejo irreprimível de ir até ao bar mais próximo martirizar-se um bocadinho.
O que levou Lowry a vomitar órgãos internos em metade dos tascos do hemisfério norte não foi um qualquer complexo messiânico, mas sim a mesma pulsão masoquista que sempre coordenou a sua biografia. E parece-me igualmente evidente que se Lowry tivesse combatido a "esterilidade da existência" através do consumo compulsivo de amendoins ou da ocasional partidinha de canasta, as lombadas com o seu nome nas livrarias do mundo seriam muito mais numerosas, aí sim, com incontornáveis benefícios para a humanidade.
O livro esteve disponível na Fnac do Chiado pela muito razoável quantia de doze euros e cinquenta e seis cêntimos, mas eu comprei o último exemplar e trouxe-o para a margem Sul, o que não augura nada de bom para vocês, os privilegiados, os felizes, os do lado de lá.
(A propósito do mórbido alcoolismo de Lowry, uma teoria alternativa foi ensaiada por Martin Amis, num dos parágrafos mais cómicos da sua carreira:
«Dipsomaniacs are either born that way, or they just end up that way. Vastly distinguished in the sphere of dipsomania, Malcolm Lowry, it seems, actually planned to be that way, from childhood. The gift was not inherited. In an early short story the narrator records his (Methodist) father"s disapproval of a local lawyer, who lacked "self-discipline"."He did not know," Lowry wrote, "that secretly I had decided that I would be a drunkard when I grew up." While most schoolboys dreamt of becoming engine-drivers or cattle-punchers, little Malcolm dreamt of becoming an alcoholic. And the dream came true. Excluding a few dry-outs, in hospitals and prisons, and the very occasional self-imposed prohibition, Malcolm Lowry was shitfaced for thirty-five years.»
O texto está incluído na colecção The War Against Cliché)
Nove não chega sequer para meter as vírgulas no sítio
Foi o Horácio. Está na Ars Poetica. E quem joga pelo seguro aponta para os vinte anos.
Pequeno esboço de psicologia étnica
A frase que mais vezes ouço, sempre que venho a Portugal, continua a ser: «Não sei se tenho troco para isso».
He has a cunning plan
Segundo as opiniões dos leitores que participaram na sondagem ao longo dos últimos dias, o próximo presidente da Câmara de Lisboa será o candidato da Nova Democracia.
Favas contadas, amigos: os meus leitores nunca se enganam.
The Case is Altered
«...They all went to a tavern with some queer name, as 'The Case is Altered'...»
(Malcolm Lowry, Under the Volcano)
sábado, junho 23, 2007
A minha priminha de 4 anos, canalizando o espírito de Andrea Dworkin
- Catarina, que brinquedo é esse?
- É uma cama de princesa. Mas também pode ser uma prisão.
(Diálogo verídico, ocorrido ontem à noite)
- É uma cama de princesa. Mas também pode ser uma prisão.
(Diálogo verídico, ocorrido ontem à noite)
quinta-feira, junho 21, 2007
Free Super Saver Delivery!
Sabemos que a economia mundial está toda de pantanas quando um substancial investimento em Yeats não nos permite sequer começar a pensar em De Quincey.
Estas frases têm pessoas a mais
Há um nobre e enternecedor maneirismo na recensão literária curta que consiste em subjugar uma obra de difícil classificação através de uma imaginária triangulação de precursores, envolvendo-os em interactividades lunáticas. Murakami, um daqueles autores sem voz que usa as influências no peito como se fossem medalhinhas, tem sido uma vítima justa e recorrente desta tendência; os paperbacks ingleses das suas obras estão crivados de citações hilariantes. ("The kind of book that Raymond Carver would have written, after spending a drunken gay weekend with F. Scott Fitzgerald in a Tokyo brothel managed by William Gibson", ou coisas deste género).
O grande especialista nesta técnica é John Leonard, que escreve para a Nation e para o NYRB. Ultimamente em baixo de forma, Leonard conseguiu a proeza de escrever três peças consecutivas sem colocar autores mortos em bacanais autistas, mas neste texto para o NYRB (uma crítica ao mais recente calhamaço de Michael Chabon), apesar de não regressar aos tempos gloriosos em que empilhava toda a carne disponível no assador cultural, conseguiu sair-se com um bastante aceitável "as if Raymond Chandler and Philip K. Dick had smoked a joint with I. B. Singer".
O grande especialista nesta técnica é John Leonard, que escreve para a Nation e para o NYRB. Ultimamente em baixo de forma, Leonard conseguiu a proeza de escrever três peças consecutivas sem colocar autores mortos em bacanais autistas, mas neste texto para o NYRB (uma crítica ao mais recente calhamaço de Michael Chabon), apesar de não regressar aos tempos gloriosos em que empilhava toda a carne disponível no assador cultural, conseguiu sair-se com um bastante aceitável "as if Raymond Chandler and Philip K. Dick had smoked a joint with I. B. Singer".
O que importa aqui ter em conta é a componente surreal da ideia, que deve ser encarada como uma abstracção lúdica e nunca como uma útil especulação sobre a obra. (Até porque julgo existir um consenso neste ponto: se Chandler e Philip K. Dick tentassem partilhar um charro, com ou sem o beneplácito de Isaac, o resultado final não seria um romance de 400 páginas, mas sim um pequeno e triste incêndio num prédio em São Francisco).
Teoricamente, uma frase deste género poderia prolongar-se ad infinitum, acumulando referências absurdas e aberrações cronológicas. O tipo de maratona semântica idealizada por Douglas Adams, Arthur Balfour e pelo Duque de Palmela, depois de partilharem um furtivo croissant num cemitério em Viena - em que um dos coveiros é tio por afinidade de Franz Grillparzer - sob o olhar atento de uma delegação diplomática americana presidida por Jane Fonda, cuja gabardine revela uma mancha de humidade resultante de uma secreta e rancorosa urinadela de Edgar Allan Poe, num tasco em Baltimore que....
O Livro de Job reloaded
“Do que conheço dele, sou grande apreciador das suas qualidades.”
(Liedson, em Metternichianas declarações sobre Derlei, no Record de hoje.)
Desde que chegou a Portugal, Liedson foi submetido aos seguintes testes de personalidade: Lourenço, Elpídeo Silva, Sá Pinto, Douala, Pinilla, Deivid, Alecsandro e Carlos Bueno. Tudo isto sem nunca ficar grisalho, sem nunca mergulhar no alcoolismo, sem nunca agredir ninguém em público, sem nunca renegar o seu Criador.
(Liedson, em Metternichianas declarações sobre Derlei, no Record de hoje.)
Desde que chegou a Portugal, Liedson foi submetido aos seguintes testes de personalidade: Lourenço, Elpídeo Silva, Sá Pinto, Douala, Pinilla, Deivid, Alecsandro e Carlos Bueno. Tudo isto sem nunca ficar grisalho, sem nunca mergulhar no alcoolismo, sem nunca agredir ninguém em público, sem nunca renegar o seu Criador.
Mas vir agora ameaçá-lo com uma parceria com Derlei parece-me uma provação too many, e temo que o gesto o conduza irreversivelmente ao nihilismo.
Panic on the aisles of Continente
A selecção musical imposta aos incautos consumidores matinais pelos altifalantes do Continente do Fogueteiro é um portento de esquizofrenia. Em escassos dez/doze minutos (o tempo que levei a localizar e pagar uma embalagem gigante de Maltesers) ouvi «Things Have Changed» de Bob Dylan, «Like a Bird» de Nelly Furtado, «Solsbury Hill» de Peter Gabriel, e «Sei Que Vou Mais Além» dos Anjos.
Por esta ordem, às dez da manhã.
terça-feira, junho 19, 2007
Participem, participem
Os leitores do Pastoral Portuguesa (e não apenas os lisboetas) podem, a partir de hoje, participar numa sondagem sobre as eleições em Lisboa. O exemplo que segui - e o código que roubei - foi o do Arrastão. Pequenas alterações foram introduzidas, no sentido de adaptar a realidade à minha cabeça.
Peço desculpa pela curta ausência, mas estive ali entretido a ver televisão
Domingo à noite, num dos canais do surpreendente pacote TV Cabo, duas aranhas gigantes cercavam estrategicamente a cabeça indefesa de Robin Williams, que manteve, mesmo perante tal ameaça, uma histérica insistência em terminar o jogo com um derradeiro lançamento dos dados, no que me pareceu ser uma metáfora visual de gosto duvidoso sobre o flagelo da ludopatia.
O incómodo provocado pela cena (o filme em questão chama-se Jumanji, e é conhecido entre os adeptos como o Citizen Kane dos filmes sobre jogos de tabuleiro assombrados) seria multiplicado com escusada brutalidade alguns minutos depois, quando uma circunstancialmente pré-púbere Kirsten Dunst apareceu sorridente no ecrã, no que me pareceu ser uma metáfora visual de gosto duvidoso sobre o flagelo do time-travelling hormonal.
Perturbado e juridicamente confuso, mudei para a RTP Memória (que conceito fabuloso), ainda a tempo de ver o Fernando Couto versão 1994 perder um lance em velocidade para Julio Salinas (um saudoso acrobata geriátrico, cuja idade já na altura devia rondar os 60 anos).
Num dos canais noticiosos (que conceito fabuloso), um residente de Setúbal dizia gravemente que "isto assim não pode ser", afirmação que considero irrefutável.
quinta-feira, junho 14, 2007
quarta-feira, junho 13, 2007
Last Night I Dreamt of Norman Mailer
«Por exemplo, se sair uma combinação ganhadora depois de um período em que não saiu nada, é provavel que nas dez jogadas seguintes essa combinação saia mais uma, duas ou três vezes (é o chamado “chorrilho”). Também é importante deixar a máquina descansar. As pausas de cinco a dez minutos tornam-na mais generosa. Por isso, ganha-se eficácia ao jogar em duas ou mais ao mesmo tempo. É, ainda, uma máquina com que se pode ter um diálogo mental. Já estou com saudades.»
(ENP, n'A Sexta Coluna)
À primeira leitura julguei que isto era um daquelas analogias codificadas sobre relações, nas quais a Laura Abreu Cravo se especializa, mas depois confirmei, não sem uma pontinha de desapontamento ("As pausas de cinco a dez minutos tornam-na mais generosa", enfim, isto tinha algum potencial eufemístico-analógico por espremer, já para não falar na noção exageradamente optimista de que se ganha "eficácia ao jogar em duas ou mais ao mesmo tempo"), que o Eduardo estava mesmo a escrever sobre fruit-machines. O meu veneno é muito outro, e até serei o primeiro a admitir que Monte Carlo e Blackpool orbitam em planetas diferentes, mas queria deixar aqui uns retalhos de cautionary tale. É que a minha experiência não tem nada a ver com aquilo.
Por exemplo, se sair uma combinação ganhadora depois de um período em que não saiu nada, é provável que o beneficiário não seja eu, mas sim um oriental baixinho, sorridente e seco de carnes, que ocupou o meu lugar depois de eu ter ido buscar um guardanapo para fazer taciturnos cálculos a lápis. E se, nas dez jogadas seguintes, essa combinação sair mais uma, duas ou três vezes, é provável que eu não dê por isso, ocupado que estarei a consolar um amigo com um orifício no bolso das calças superior à dívida externa de Moçambique, e o cartão de débito do Lloyd's aprisionado nas entranhas da ATM do casino. E, se houver diálogo, este não será mental, mas violentamente físico. E se houver saudades, será da escola primária, e do jogo do galo.
(ENP, n'A Sexta Coluna)
À primeira leitura julguei que isto era um daquelas analogias codificadas sobre relações, nas quais a Laura Abreu Cravo se especializa, mas depois confirmei, não sem uma pontinha de desapontamento ("As pausas de cinco a dez minutos tornam-na mais generosa", enfim, isto tinha algum potencial eufemístico-analógico por espremer, já para não falar na noção exageradamente optimista de que se ganha "eficácia ao jogar em duas ou mais ao mesmo tempo"), que o Eduardo estava mesmo a escrever sobre fruit-machines. O meu veneno é muito outro, e até serei o primeiro a admitir que Monte Carlo e Blackpool orbitam em planetas diferentes, mas queria deixar aqui uns retalhos de cautionary tale. É que a minha experiência não tem nada a ver com aquilo.
Por exemplo, se sair uma combinação ganhadora depois de um período em que não saiu nada, é provável que o beneficiário não seja eu, mas sim um oriental baixinho, sorridente e seco de carnes, que ocupou o meu lugar depois de eu ter ido buscar um guardanapo para fazer taciturnos cálculos a lápis. E se, nas dez jogadas seguintes, essa combinação sair mais uma, duas ou três vezes, é provável que eu não dê por isso, ocupado que estarei a consolar um amigo com um orifício no bolso das calças superior à dívida externa de Moçambique, e o cartão de débito do Lloyd's aprisionado nas entranhas da ATM do casino. E, se houver diálogo, este não será mental, mas violentamente físico. E se houver saudades, será da escola primária, e do jogo do galo.
Mas isto são pormenores, insignificantes pormenores. Um facto que importa reter: a única petição que assinei na vida foi dirigida à entidade que regula as fruit-machines no Reino Unido (Campanha Fairplay, 2003). Esta ocasião de intervenção cívica é algo de que me orgulho bastante*. Ajudei a mudar uma lei perversa. E tu, que me lês, já ajudaste a mudar alguma lei perversa?
Outro facto a reter: o indivíduo com maior sentido empresarial que eu conheço é um natural das ilhas Orkney que se mudou para Edimburgo, alugou uma superfície comercial mesmo ao lado do casino, e abriu uma loja de penhores. Em menos de um ano, já tinha mudado de carro, de casa e de esposa, para além de ter acumulado uma respeitável colecção de aquários. Em situações de crise financeira, disse-me ele, o peixinho dourado é sempre a primeira vítima.
(*Também me orgulho muitíssimo da minha atitude numa situação mais recente, que pode parecer, ao leitor mais organizado, pertencer a um post diferente: ontem à noite, na fila para os táxis no Cais do Sodré - 50 ridículos minutos de espera - um turista americano passou uma eternidade a queixar-se dos calos nos pés, mergulhando indecorosamente no detalhe clínico específico (aprendi uma palavra inglesa nova: 'glabrous'). Revelando enorme empatia, acabei por me abrir com ele, confessando os meus problemas gástricos, a minha insónia crónica, e a minha mágoa por não ser um romancista judeu de 80 anos, com milhares de dólares em pensões alimentícias para pagar. A diferença que essa condição em particular provocaria na minha rotina diária é algo que apenas posso imaginar com um brilho nos olhos.)
Amis on Blair
(O Guardian convidou Martin Amis a acompanhar o farewell tour de Tony Blair. Amis parece-me estar nitidamente em baixo de forma neste tipo de peças. Ainda assim, e apesar de ficar muito aquém do brilho de textos gloriosos do passado, como aquele sobre a convenção Republicana de 1988 [recolhido salvo erro em The Moronic Inferno] é um evento jornalístico a não perder.)
Mötley Crüe
“I did actually throw a television out of the window, but I had checked that there was nobody coming beforehand and it was my television to do what I like with.”
(Da autobiografia de Alex James, esse grande maluco, citada no Times)
(Da autobiografia de Alex James, esse grande maluco, citada no Times)
terça-feira, junho 12, 2007
Andam os meus amigos a casar e a procriar...
domingo, junho 10, 2007
The movies, screwing it up
Walker Percy era um espécime raro: um escritor católico norte-americano. Além dele, só me ocorrem Flannery O'Connor, J. F. Powers e William Peter Blatty (o autor de O Exorcista), mas é provável que me esteja a escapar algum.
Mas o catolicismo de Percy era muito particular, mais tributário de Kierkegaard do que de qualquer colecção de sacramentos. Aliás, The Moviegoer parece-me - ainda vou nas primeiras páginas - fortemente ancorado num irresistível mecanismo narrativo: transportar o típico flâneur Kierkegaardiano (o Esteta Observador) para o séc. XX, e transformá-lo um cinéfilo obsessivo.
«The search is what anyone would undertake if he were not sunk in the everydayness of his own life. This morning, for example, I felt as if I had come to myself on a strange island. And what does such a castaway do? Why, he pokes around the neighborhood and he doesn't miss a trick. To become aware of the possibility of the search is to be onto something. Not to be onto something is to be in despair.
The movies are onto the search, but they screw it up. The search always ends in despair. They like to show a fellow coming to himself in a strange place - but what does he do? He takes up with the local librarian, sets about proving to the local children what a nice fellow he is, and settles down with a vengeance.»
(Walker Percy, The Moviegoer, Methuen, p. 13)
(Reparei que, no índice onomástico do Prova de Vida do Pedro Mexia, "Kierkegaard" tem o mesmo número de menções que "Jesus Cristo". O catolicismo de Walker Percy, palpita-me, tinha mais ou menos a mesma ratio.)
Alpha female
Sair do gueto
Fui quatro vezes à Feira do Livro este ano, e fiz compras em pelo menos oito pavilhões. Com cada mísera aquisição, deram-me saquinhos de plástico com laçarotes, catálogos coloridos, cupões de desconto, preçários, bookmarks, sorrisos, sugestões, ramos de flores, etc, etc.
Ontem, pela primeira vez, comprei uma recolha de textos de um blogue. O senhor feirante enfiou apressadamente o exemplar num saco de papel pardo amarrotado, como se faz às revistas pornográficas, e deu-me troco a mais.
Ainda há um longo caminho a percorrer.
Força Roger
Em pouco mais de três horas, Federer cometeu sessenta erros não-forçados. O que costuma ser a minha média em interacções sociais diversas. E eu ainda aqui ando, para as curvas, sem renunciar à terra batida.
sexta-feira, junho 08, 2007
Há pessoal que ainda não se esqueceu do imposto comunitário
No Ípsilon da semana passada, o Pedro Mexia escrevia sobre «Guts», o conto-choque de Chuck Palahniuk que tem virado tripas em salas de leitura um pouco por todo o lado. A ideia que retenho de Palahniuk (um razoável escritor, mas um excelente entrevistado) é a de um homem vigorosamente perseguido pelo pormenor gótico. Lembro-me de lhe ler uma história horripilante, que não consegui, infelizmente, localizar, mas que posso parafrasear em poucas linhas (assim que as crianças saírem da sala).
Certo dia, numa sessão de autógrafos em Londres, Palahniuk foi abordado por um sujeito que se apresentou como empregado de mesa num restaurante da City, e que lhe confidenciou ter apreciado muitíssimo a referência ao «terrorismo gastronómico» em Fight Club, até porque - sorrisinho canalha - ele sabia por experiência própria que isso era uma ocorrência comum em alguns restaurantes frequentados por celebridades. Após demorada insistência de Palahniuk, que lhe agarrou o braço e ameaçou não autografar o livro até ele revelar pelo menos um nome, o homem inclinou-se e segredou isto na orelha autorial: «Margaret Thatcher has eaten my sperm. At least five times.»
Dead Celebrity Watch
Na noite de quarta-feira, no Casino Lisboa (Parque das Nações), encontrei um homem extraordinariamente parecido com Saul Bellow - incluindo o desmazelo oco nos ombros, o impecável Borsalino, e aquele olhar húmido e inchado do observador veterano - sentado diante de uma das slots Star Wars.
Devo ter andado por ali em círculos uns bons vinte minutos, à espera que o homem jogasse, falasse, respirasse, sei lá.
Quando já me preparava para abandonar esta deprimente vigilância, um funcionário do casino aproximou-se do senhor Bellow com um sorriso solícito. Só então reparei que a luzinha no topo da máquina estava acesa, sinal de que o cliente pediu assistência técnica. Antes de virar costas, ainda ouvi Saul Bellow queixar-se, num sotaque inconfundivelmente beirão: «Veja lá isso, que a puta da nota ficou encravada».
(Entretanto, na mesa da roleta, que ia fiscalizando com este meu outro olho, notei que a cor 'Preto' saiu sete - sete! - vezes seguidas, facto que me parece eminentemente investigável pelas autoridades competentes).
quarta-feira, junho 06, 2007
terça-feira, junho 05, 2007
Leite democraticamente coalhado por meio de um fermento
A minha tendência natural para levar imediatamente o dedo ao gatilho sempre que ouço ou leio algum comentário, por mais pertinente e racional que seja, sobre a necessidade de haver certos limites na comédia, é algo de que não me orgulho, e que tenho vindo a tentar refrear com a ajuda de bastantes iogurtes naturais. A prova de um relativo sucesso terá sido uma ocasião recente, em que, evidenciando notável tolerância, decidi não partir uma única secção óssea do corpo de um conterrâneo de Jonathan Swift que afirmou à minha frente, e de uma forma muito séria, que a Sarah Silverman era uma cripto-fascista que merecia ser presa. A Sarah Silverman, esclareço, é alguém em quem não descortino um valor por aí além, com quem me rio apenas esporadicamente, e por quem nunca passarei noites na prisão. Mas há princípios com os quais não se brinca, até porque os iogurtes não são infalíveis.
(Para que as minhas caixas de comentários não comecem a ficar para trás em matéria de epítetos à queima-roupa, quero aqui relembrar que cada vez gosto mais do blogue do Luis Miguel Oliveira.
Há duas maneiras de ver isto. Uma é pensar que houve uma pessoa que conduziu um automóvel alcoolizada, colocando potencialmente em risco a integridade física de terceiros. Que foi posta sob liberdade condicional e que violou prontamente essas ditas condições. Que poucas horas antes de ter de se apresentar na cadeia para cumprir pena, e num clima noticioso totalmente dominado por esse facto, decide assistir ao vivo a uma cerimónia da MTV apresentada por uma comediante notoriamente avessa a piadinhas sobre amendoins ou "airline food", perante uma plateia constituída por pessoas que não me parecem estar a dar largas a nenhuma orgia de "moralismo sexual" ou "let's-all-laugh-at-the-rich-girl" (embora concorde com quase tudo o que o Bruno diz, custa-me ver a teoria do «momento de justiça/vingança (a ética do trabalho junta-se a algum moralismo sexual)» imputada a uma plateia que inclui Jack "orgy" Nicholson e Rogério "serially unemployed" Casanova).
Esta maneira de ver a coisa permite-me pensar que me ri daquilo sem grande desconforto porque aquilo tem piada (os fantasmas passíveis de análise sociológica também são um factor, mas não assumem maior ou menor relevância do que em todas as outras coisas a que eu acho piada, nomeadamente cartoons sobre ovelhas, vídeos com gatinhos, entrevistas do Norman Mailer, ou a Zita Seabra). No dia em que os comediantes começarem a dilatar o critério (que até considero válido) da «permeabilidade/fragilidade de quem é visado» para que este exclua a possibilidade de ser um bocadinho mauzinho para a Paris Hilton numa entrega de prémios da MTfuckingV, será, convenhamos, o dia em que a Via Láctea começará discretamente a cair aos bocados.
A outra maneira de ver as coisas é encarar tudo aquilo como "um nojo", "desumano" e "repugnante", posição adoptada por duas pessoas na caixa de comentários do Avatares (que também inclui o clássico gâmbito da "inveja, as pessoas que riem têm é inveja"). O que me põe a pensar, entre colheradas frenéticas de Adagio Simbiótico: que vocabulário é que restará a esta gente para descrever aquelas coisas - que nunca se passam em cima de um palco - e que são efectivamente "um nojo", "desumanas" ou "repugnantes"?
Esta maneira de ver a coisa permite-me pensar que me ri daquilo sem grande desconforto porque aquilo tem piada (os fantasmas passíveis de análise sociológica também são um factor, mas não assumem maior ou menor relevância do que em todas as outras coisas a que eu acho piada, nomeadamente cartoons sobre ovelhas, vídeos com gatinhos, entrevistas do Norman Mailer, ou a Zita Seabra). No dia em que os comediantes começarem a dilatar o critério (que até considero válido) da «permeabilidade/fragilidade de quem é visado» para que este exclua a possibilidade de ser um bocadinho mauzinho para a Paris Hilton numa entrega de prémios da MTfuckingV, será, convenhamos, o dia em que a Via Láctea começará discretamente a cair aos bocados.
A outra maneira de ver as coisas é encarar tudo aquilo como "um nojo", "desumano" e "repugnante", posição adoptada por duas pessoas na caixa de comentários do Avatares (que também inclui o clássico gâmbito da "inveja, as pessoas que riem têm é inveja"). O que me põe a pensar, entre colheradas frenéticas de Adagio Simbiótico: que vocabulário é que restará a esta gente para descrever aquelas coisas - que nunca se passam em cima de um palco - e que são efectivamente "um nojo", "desumanas" ou "repugnantes"?
(Para que as minhas caixas de comentários não comecem a ficar para trás em matéria de epítetos à queima-roupa, quero aqui relembrar que cada vez gosto mais do blogue do Luis Miguel Oliveira.
E num assunto à parte, alertar para a manchete mais incorrecta de todos os tempos, que se podia ler hoje, até há poucas horas atrás, na edição online d' A Bola: "Tudo certo com Peseiro". Meus senhores: com Peseiro, nunca esteve, nem nunca estará "tudo certo".)
domingo, junho 03, 2007
Subscrever:
Mensagens (Atom)