sexta-feira, junho 29, 2007

Química real na Tailândia

"É a festa, a festa dos touros" explicou a voz, na RTP. A voz pertencia a uma pessoa que julgo chamar-se José Castro. Outra voz, que pertencia a outra pessoa, confirmava: "É de facto a festa dos touros". A presidente da Câmara Municipal do Montijo, Maria Amélia Antunes, apareceu de repente no ecrã, revelando a sua felicidade por estar ali, a participar naquela "festa, a festa dos touros". Tentou ainda, durante vários segundos, pronunciar a palavra "intervenientes", mas acabou por abandonar esse projecto em favor de um projecto alternativo, que consistia em pronunciar novamente a palavra "festa", o qual conseguiu concluir com um moderado grau de sucesso. O entrevistador desejou-lhe "uma boa corrida", o que a deixou com um ar compreensivelmente alarmado.
No AXN, que passava o filme Devil's Own, Brad Pitt aperfeiçoava a sua imitação do mais implausível sotaque irlandês da história do cinema (que viria a sublimar em Snatch). Harrison Ford fazia trejeitos com a boca. "How can you say that?", perguntou ele. Todas as evidências apontam para que se estivesse a referir ao sotaque de Brad Pitt. Um argumentista honesto teria alterado a deixa para: "How can you say it that way?"
Após um zapping de vários minutos por quarenta e dois canais, a voz que julgo pertencer a José Castro continuava a enumerar os motivos pelos quais todos estávamos em festa: "A praça de touros do Montijo completa este ano cinquenta anos"; "Sónia Matias estreia hoje uma casaca nova"; e o crucial "É isto que é a festa, a festa dos touros".
Na MTV podia ver-se um programa chamado «The Real World», no qual um número real de pessoas reais é catapultado pelos produtores em diversas direcções reais, até que duas delas, por mero encolher de ombros estatístico, decidam dormir juntas, de uma forma real. Uma loura real chamada Jennifer revelou a sua ansiedade em encontrar-se de novo com Stephen em Denver, porque "we had real chemistry in Thailand". O mundo não se torna muito mais real que isto.
De volta à festa na RTP, um grupo de adolescentes descritos como sendo «forcados amadores de Alcochete» prepararam uma manobra no sentido de evitar que um touro com um ar muito pouco festivo se deslocasse do ponto A ao ponto C. Para este efeito, um dos adolescentes colocou-se no ponto B, tendo ainda o cuidado de informar a audiència sobre a espécie de animal que ali se encontrava para participar na festa: "É touro! É touro! É touro!"
O plano, contudo, foi evidentemente mal ensaiado. O touro, talvez com o pensamento ocupado por chapéus coloridos, línguas-da-sogra, e outros artigos festivos, insistiu em deslocar-se até uma determinada secção da arena, situada precisamente atrás do grupo de adolescentes. O primeiro adolescente tentou abraçar o touro. O segundo adolescente tentou abraçar o primeiro adolescente. O terceiro, quarto e quinto adolescentes tentaram abraçar-se a si próprios, enquanto o touro se esquivava a todas as manifestações de camaradagem, mostrando uma indiferença pelo clima próprio das festas que foi descrita pelo comentador da RTP nestes termos: "o touro a mostrar ali alguma maldade".
Não consigo, sinceramente, decidir o que penso sobre as touradas. Contavam-se alguns aficionados entre os Casanovas e, durante a infância, o espectáculo assumiu a banalidade do que é familiar (e poucas coisas são mais banais para uma criança do que aquilo que os avós gostam de ver na televisão). Alguns anos de afastamento obliteraram por completo essa familiaridade; é inquestionável que uma corrida de touros, para alguém alheado dos ingredientes históricos e coreográficos da modalidade, é um espectáculo que pode perfeitamente ser descrito como ridículo, cruel ou degradante. Poder-se-ia dizer o mesmo de certos reality shows, é certo, mas nenhum daqueles a que assisti se baseava numa representação cénica de um ritual arcaico, actualizado com óbvias vantagens para uma das partes, e na qual um elemento fulcral é o sofrimento escusado da outra. (Esclareço que nunca consegui ver o 1º Big Brother dos Famosos, e que me pode faltar informação relevante).
As frases mais lúcidas da noite foram os elogios dirigidos aos cavalos de João Moura. Ter de andar a fugir de um touro bravo, num espaço reduzido, com os olhos tapados, e montado por um rotundo homem aos berros, não deve ser tarefa nada fácil, e revela grandes doses de Química Real. Mal sabem os velozes cavalinhos do Reino Unido a sorte que têm, nascendo, como o fazem, numa espécie de "Horsie Heaven" na Terra.

1 comentário:

Lourenço Bray disse...

muito muito muito bom.