Há um texto recente de James Wood (que, caso o tenham esquecido nos últimos minutos, é o mais talentoso, inteligente, acutilante e calvo de todos os críticos literários contemporâneos) na New Republic, no qual são identificados, quase de raspão, dois géneros distintos no romance americano recente: «the 9/11 novel, and the 9/11 novel that is pretending not to be a 9/11 novel». Don DeLillo (que, caso o tenham esquecido nos últimos minutos, é o maior perseguidor de ambulâncias da literatura contemporânea) já tinha antecipado esta tendência, tendo passado grande parte da sua carreira a escrever '9/11 novels', muito antes até de ter havido um '9/11' sobre o qual escrever 'novels'. Falling Man parece ser a jogada para a qual DeLillo passou a vida a treinar.
Ainda não li Falling Man, e posso assegurar que se trata de uma não-leitura compulsiva. Aliás, é um dos livros que mais vezes não li nos últimos tempos. Desde que a encomenda da Amazon chegou já o devo não ter lido umas seis ou sete vezes, sempre com um enorme prazer.
Isto não é uma delação sobranceira, mas um reconhecimento embaraçado. Para que não restem dúvidas: isto custa-me. Todos estes parágrafos estão de luto. O percurso de DeLillo é o mais endechoso, enigmático e enfurecedor das letras modernas. E arrisca-se, pelas evidências da última década, a tranformá-lo numa parábola de criatividade diluída, num ícone do artista esgotado, como o 'fat Elvis' dos últimos anos em Las Vegas. Pessoalmente, noto na tragédia curiosos paralelos com o caso Herman José - e tenho plena consciência de que a analogia não dignifica qualquer um dos envolvidos, a começar por mim.
DeLillo tem um currículo notável, no qual se incluem pelo menos duas indiscutíveis obras-primas: White Noise, uma "campus novel" voluntariamente sabotada, onde tema, formato e talento atingiram uma simbiose perfeita (o seu «Tal Canal», digamos), e Libra, um compêndio de paranóias sobre o assassinato de JFK, e o trabalho onde, partindo de um modelo formulaico - o romance de espionagem - melhor conseguiu trabalhar as suas obsessões específicas (o seu «Crime na Pensão Estrelinha»).
Os primeiros maus augúrios surgiram com Mao II («Casino Royal»), onde já muitos vislumbraram as sementes da desgraça futura. Com Underworld («Herman Enciclopédia»), obteve uma magistral redenção, na qual a pura dimensão do artefacto abafou quaisquer dúvidas pontuais e localizadas.
O pior veio depois. The Body Artist parecia mau de mais para ser verdade, e apontava já para um caso extremo de fadiga criativa. Mas nada fizera prever Cosmopolis, um desastre estético da mais elevada magnitude. Aqui estava um livro que não era mau apenas pelos seus elevadíssimos padrões; Cosmopolis era mau pelos padrões dos «Malucos do Riso», e confirmava os piores receios: DeLillo era agora um louro oxigenado, condenado a apaparicar socialites nas noites de Domingo.
Como é que isto aconteceu? E porquê? E quem se deve fuzilar?
A crítica literária americana, se a decisão me pertencesse, já estaria amarrada aos postes. Inepta e impunemente, eles foram ajudando a balizar o percurso recente de DeLillo, através de um processo que podemos designar como "Astronomia Pré-Copernicana", e que consiste em apontar o telescópio aos objectos certos e tirar as conclusões erradas.
Os seus romances foram consistentemente elogiados pelas suas características menos estimulantes: o comprometimento pós-moderno com a "Cultura"; os diagnósticos pseudo-Baudrillardianos sobre o "deserto do real"; e os supostos dotes proféticos.
Exhibit one. Criou-se o mito de DeLillo como um escritor particularmente receptivo às flutuações do zeitgeist, um mito que não vai morrer tão cedo, embora não tenha qualquer base na realidade. O anglo-chanfrado que é J. G. Ballard foi um pouco vítima da mesma ansiedade da imprensa em empossar gurus, mas Ballard tem a vantagem de não se levar demasiado a sério, nem comprar acções no mercado da sua própria hagiografia.
Consta que quando a Princesa Diana morreu, muitos chefes de redacção de jornais britânicos terão dito aos seus repórteres: «Call Ballard. Get a quote». A combinação mórbida de uma celebridade global morta numa colisão automóvel parecia propícia ao seu comentário iluminador, por ter sido obliquamente profetizada na sua obra - não numa passagem específica de um livro específico, mas no recombinar de elementos e no repisar de um terreno temático ao longo de uma carreira.
Acho bastante plausível que os mesmos chefes de redacção tenham pensado em DeLillo depois do 11 de Setembro, e com ainda menos razão de ser. DeLillo ganhou uma imerecida legitimidade opinativa sobre terrorismo, especialmente depois de Mao II, obra na qual alinhavou uma vaga teoria sobre a capacidade do romancista em influenciar a "vida interior da Cultura" ter sido apropriada pelo terrorista. Isto é o tipo de ideia que finge uma profundidade inexistente; é uma metáfora inerte, em que os termos são tão vagos, que impossibilitam um forcing até ao concreto; a ideia fica ali, à deriva na página, à espera de um benevolente empurrão do leitor na direcção do significado. A ideia de que DeLillo tem coisas interessantes para dizer sobre o terrorismo em Mao II parece-me uma ideia preguiçosa e nunca cabalmente demonstrada. Mas ganhou uma insólita mobilidade, sendo periodicamente repetida em jornais, revistas, blogues e salões de cabeleireiro.
(Se quisermos forçar a nota, podemos até admitir instruções redactoriais muito mais apropriadas: «Phone Conrad. Get a quote». O monólogo de Mr. Vladimir em The Secret Agent encerra mais relevância sobre o assunto do que as banalidades de DeLillo).
Tamanhas doses de banha da cobra crítica não se acumulam do dia para a noite e, como tal, não sobrou muito tempo para enaltecer as verdadeiras virtudes de DeLillo. O seu ouvido perfeito, por exemplo; há diálogos em Running Dog, White Noise e Libra que captam admiravelmente a fragmentação autista do discurso moderno. A sua precisão visual, aquela raríssima virtude que força o leitor a confessar uma apreensão incompleta de um objecto aparentemente familiar. E o humor, claro. DeLillo é - ou foi, ou pode voltar a ser - um escritor incrivelmente cómico. Nos seus primeiros romances, notava-se uma centelha de desespero erudito no slapstick, que parece ter desaparecido. Há uma piada excepcional em Great Jones Street: uma investigação académica sobre a Revolução Francesa revela a existência de uma facção dissidente de Sans-culottes, que se reunia secretamente com o propósito único de usar culottes. Este tipo de comédia desapareceu da obra de DeLillo mais ou menos em 1989, para dar lugar a um amontoado de micro-manifestos solenes. Cada texto reelabora as mesmas revelações, pela boca de personagens indistintas, que falam e pensam todas da mesma maneira: como o autor.
Num ensaio de 1997 chamado 'The Power of History', DeLillo escreveu que toda a ficção, na sua raíz, é uma espécie de fanatismo religioso, repleto de obsessões, superstições e deslumbramentos. Mas dentro da sua própria ficção DeLillo pratica um agnosticismo militante, insistindo que nada no dilúvio de informação que nos é imposto pela modernidade pode ser interpretado em termos binários, como verdadeiro ou falso. DeLillo renunciou não apenas ao humor, mas ao significado. Cosmopolis em particular limitava-se a debitar clichés de Estudos Culturais, uma manta de retalhos pós-modernos, clips da CNN filtrados pela Escola de Frankfurt. Em rigor, nem necessitava de se apresentar como obra ficcional, dada a recusa peremptória em usar os artifícios específicos da literatura. As únicas formas de expressão em que DeLillo parece confiar agora são o aforismo vápido e a generalização oca.
Não sei o que esperar de Falling Man, mas os excertos que li na New Yorker não me deixaram confiante. O passado de DeLillo continua a exigir segundas, terceiras, infinitas oportunidades. Mas o próprio tema inflama o desalento. Atentem no seguinte: «Writers who live passively within History may be more deeply aware of what is really going on than those who turn up in every spot where the news is breaking». V. S. Pritchett escreveu isto em 1962, num ensaio sobre Musil, um escritor que - se ignorarmos algumas semelhanças superficiais - é a antítese de DeLillo. O perigo que qualquer escritor corre quando se torna obcecado com a mera reportagem é ser lido como mera reportagem. Musil soube esquivar-se a esse fim. Mas, no corropio cego atrás do "espírito do tempo", DeLillo isolou-se do seu próprio talento. O que resta de Cosmopolis e Mao II, quando esvaziados da sua suposta "actualidade"? Uma vaniloquência desarmada, manchetes de tablóide e esqueletos de papel.
(Se Falling Man trouxer mais do que isto, esperem neste espaço o equivalente blogosférico de um engolir em seco e de um assobiar para o lado).
4 comentários:
Um DeLillo assim soa-me a verdadeiro, dá vontade de aprender bem o inglês (eu pego nele em inglês e não vou longe) mas a culpa é minha. Essa tese (ou realidade, até acredito) de os críticos lhe traçarem o desígnio e o destino é interessante, ainda bem que alguém lê os críticos e nos informa. Obrigado Casanova.
Pois é, os últimos livros de Delillo, que me esforço por gostar, até por esse danado "espírito do tempo", são deveras postiços, parecem de plástico, e nada tenho contra o plástico. No outro dia voltei a pegar no Mao II, de que Pynchon diz maravilhas, e não o consegui suportar. Os seus romances dos anos setenta e oitenta são indiscutivelmente melhores, mais delirantes. Não referiu o The Names que é magnífico.
Um a parte: não tivemos referências à sua leitura do último Pynchon, pelo menos que eu desse conta, e as que vi eram ainda prévias à leitura do calhamaço.
Excelente post! Sou leitor assíduo, com muito prazer.
O relatório sobre o calhamaço está aqui:
http://pastoralportuguesa.blogspot.com/2007/01/antes-do-arco-ris.html
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