A blogosfera teve um pequeno regabofe às custas de Patrícia Lança, e não é difícil perceber porquê, mas a ferocidade das reacções chegou a estimular o meu instinto protector. Não venho defender a tese de que a idade da senhora, ou o seu respeitável currículo (que inclui, e isto tem muito mais valor do que qualquer mandato na Assembleia, uma imaculada tradução d'Os Maias para inglês) lhe devem conceder automaticamente um estatuto especial no meio da traulitada, mas acho que percebi finalmente a teoria do "alvo fácil" que me tentaram explicar durante a discussão sobre Paris Hilton, naquela minha fase complicada sans-iogurte.
Urge também salientar que Patrícia Lança não é tanto o avatar de Mary Whitehouse que alguns querem ver nela, como uma versão luso-inglesa de Malcolm Muggeridge; o seu estilo não é o moralismo militante de quem quer prisioneiros nas guerras culturais, mas a pedagogia resignada de quem sabe que a batalha está perdida. Ela acredita piamente habitar na última cidadela da Verdade, cercada por hordas de adolescentes idiotas e tenebrosos grupos de interesse, mas não descortino nos seus panfletos nenhum desejo de moldar o mundo à imagem do seu enclave, até porque a baixa densidade populacional desse enclave deve explicar grande parte do seu conforto. Quanto aos temas que a interessam, até admito que possam existir argumentos lúcidos para defender as teorias sexuais de Patrícia Lança, mas suspeito que nunca os ouviremos; enquanto existirem argumentos lúcidos na encosta, podemos contar com ela para os circundar, em diligente slalom retórico.
As suas ternas veemências são os efeitos secundários do seu trajecto ideológico, que é o trajecto-padrão dos órfãos utópicos do séc. XX: percorrer a auto-estrada para Damasco em excesso de velocidade, sem passar pela casa de partida e sem receber dois mil escudos. O arrebatado momentum linear que os afasta das superstições de juventude só lhes permite travar quando chegam às superstições opostas. Há aprazíveis e moderadas rampas de saída em ambas as direcções, mas as Patrícias Lanças deste mundo só acreditam que chegaram ao lugar certo quando já não vêem asfalto
Mas nada disto é caso para alarme. É apenas um exemplo invulgarmente deprimente do que acontece a uma inteligência aguda e inquisitiva quando se enamora pela parede contra a qual esbarrou.
Mas nada disto é caso para alarme. É apenas um exemplo invulgarmente deprimente do que acontece a uma inteligência aguda e inquisitiva quando se enamora pela parede contra a qual esbarrou.
4 comentários:
ora, até que enfim...
louvo-lhe a clarividência do seu excelente post.
Não concordarei totalmente com o que diz, mas ler o seu post foi a coisa mais inteligente e agradável que fiz hoje.
Em primeiro lugar, agradecer os pedagógicos links para a wikipédia.
Em segundo, esta frase magistral « É apenas um exemplo invulgarmente deprimente do que acontece a uma inteligência aguda e inquisitiva quando se enamora pela parede contra a qual esbarrou» lembra-me muitos casos que conheço. Só acho que - e isto pode ser um disparate - acho que o enamorar-se com uma parede contra a qual se esbarrou possibilita um fenómeno curioso, um efeito a que chamaria de efeito Dom Quixote (que esbarrou nos livros de cavalaria), que consiste numa alienação daquilo que é razoável, racional, e que permite dar asas às ideias mais absurdas. Só que muitas vezes, é no absurdo que reside algo interessante porque é estranho. Neste capítulo, confesso a minha admiração/ódio por João Cesar das Neves. Há anos que venho a dizer que ele é dos cronistas mais interessantes que temos, porque permite um olhar sobre uma forma de pensar diferente, e só isso já é interessante.
meu, os teus comentadores (e os do maradona, já agora) começam a ser uma seca que nem te conto.
bom, aquele tipo da prisão que escreveu na Causa era fixe.
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