terça-feira, julho 24, 2007

You must stay, because you are a reader of Pastoral Portuguesa



A sequela de um pseudo-clássico sobejamente conhecido, Damien: Omen II (1978), transmitido ontem à noite pela BBC, é um filme que não via desde os 14 anos, e sobre o qual a minha memória me tinha atraiçoado impiedosamente. Para benefício dos que não conhecem a trilogia: Damien conta a história aterradora do filho de Satanás, e de como forças sobrenaturais ao serviço do Príncipe das Trevas se apoderam de um bom conceito e o transformam gradualmente num filme muito mau. O processo é tortuoso, e requer o engenho dissimulado que os teólogos nos garantem ser um dos atributos do Demónio: a contratação de actores com prestígio, a posse de superiores meios técnicos, a utilização de uma impecável banda sonora de Jerry Goldsmith, e - a astúcia suprema - um guião que parece ter sido escrito pela mão esquerda do tipo que servia os cafés.
Isto é triste, muito triste. Mais grave que isso: é uma ofensa moral. É desperdiçar o tempo e testar a condescendência de um ferrenho adepto do género. Alguém que adora filmes de terror desde que tem memória cinematográfica, e munido de uma tolerância ao disparate do tamanho de um complexo residencial construído por cima de um antigo cemitério índio, devia ser teoricamente fácil de contentar. Porque o aficionado genuíno depressa aprende a nivelar por baixo os seus níveis de exigência. Tendo em conta que as obras-primas do género se podem enumerar com os dedos de mão e meia, e que mesmo um exemplar decente aparece, no máximo, umas cinco vezes em cada década, é do mais elementar bom-senso treinar o apetite para se satisfazer com lixo honesto e piroseiras competentes. Metade do prazer é hierarquizar o esterco, e aprender a captar as subtis diferenças de tom que tornam, por exemplo, Sexta-Feira 13 parte IV e Sexta-Feira 13 parte VI significativamente melhores que Sexta-Feira 13 parte III e Sexta-Feira 13 parte V, ainda que todos eles partam de uma premissa cujo nível de sofisticação está ao mesmo nível de um adolescente com um saco de plástico na cabeça a fazer "Bu!".
Dentro deste tolerante programa estético, o pior tipo de filme é o lixo desonesto, a piroseira desleixada; o filme que tenta maquilhar (com versículos da Bíblia, cenários imponentes, e William Holden) uma insanável inaptidão de base, que acaba inevitavelmente por corromper tudo o resto
Uma amostra antológica. Dezassete minutos depois do genérico inicial, os trolhas responsáveis pelo guião, ainda não confiantes na capacidade do espectador para perceber as intricadas nuances da sua trama, decidem encenar uma ridícula, supérflua e dramaticamente inerte cena de salão, cujo único objectivo aparente é servir frias colheradas de backstory. A dada altura, um dos personagens levanta-se da mesa, anunciando a sua intenção de estar noutro lugar (algo com que o espectador simpatiza de imediato), apenas para outra personagem lhe barrar a passagem, e lhe explicar alegremente o enredo ("No, you must stay, Dr. Warren, because you're the curator of the Thorne Museum, and I own 27 per cent of that.").
Segundos depois, esta troca impagável:
«They're not your sons, they're ours.»
«Neither boy is yours. May I remind you that Mark is Richard's son, from his first marriage, and Damien is his brother's son.»
Um dos mais flagrantes indícios de que estamos a assistir a um mau filme, escrito por argumentistas trapalhões, é ver os personagens relembrarem uns aos outros as suas respectivas genalogias. Nunca acontece num Sexta-Feira 13, seja qual for o episódio, não apenas porque o argumentista tem coisas muito mais importantes com que se preocupar (nomeadamente a decapitação sangrenta, mas honesta, da miúda em roupa interior), mas porque nesses filmes costuma encontrar-se um insólito equilíbrio natural entre a integridade e a exploração.
Num filme sobre o Anticristo, com um orçamento colossal, e com William Holden, o pecado é imperdoável, e revela apenas dois factos: que quem faz o filme não tem confiança na história para se contar a si própria; e que não tem confiança no espectador para fazer o trabalho adicional.
Soube pela IMDB que a série The Omen sofreu um segundo acrescento em 1981, The Final Conflict, que parece culminar num épico confronto entre um Damien adulto e um Jesus Cristo reencarnado. Se os padrões de qualidade foram preservados, essa é uma cena que gostaria de ver:
«Hello Damien, Satan's child. I can see that you are all grown up.»
«Yes, but may I take this opportunity to remind you, oh carpenter from Nazareth, that you are a direct descendant of Abraham, who begat Isaac, who begat Jacob, who begat Judas... » etc, etc, etc.

(P.S.: A mesma IMDB informa que o actor escolhido para interpretar o papel do filho de Satanás é hoje advogado. Limito-me a apresentar este facto, sem qualquer comentário adicional).

3 comentários:

tlpg disse...

Excelente.

Um abraço,
Tiago.

Anónimo disse...

Frase de bolso: «Um dos mais flagrantes indícios de que estamos a assistir a um mau filme, escrito por argumentistas trapalhões, é ver os personagens relembrarem uns aos outros as suas respectivas genalogias.»

Muito bom. Noutro registo, conheces "Possession" de Andrej Zulawski? Também só o vi uma vez, talvez com essa idade, e é quase certo que o sobrevalorizo por uma série de razões (camisolas de lã pesadíssimas, túneis de metro, papel de parede e Isabelle Adjani, só para citar algumas).

Tiago Cavaco disse...

És grande.