segunda-feira, dezembro 17, 2007

Eu e Os Presidentes: uma comédia romântica



Passei a semana enrolado com este livro , mas não foi nada fácil. Sempre tive um fraquinho por Presidentes. O fetiche não é monolítico, nem me cega aos encantos do resto da Espécie: gosto de Reis, sou brejeiro com Caudilhos e quando passo por um Kaiser mais roliço na rua, também lhe lanço os mirones. Mas são os Presidentes que me deixam os joelhos a tremer e me fazem ouvir passarinhos.
Quando vi estes Presidentes na Fnac soube logo que estava em apuros. Não me atirei de cabeça, mas senti uma reciprocidade faiscante, indicativa de que os Presidentes também engraçaram comigo. Houve trocas de olhares, houve encostos furtivos; houve química. A corte foi curta. Os Presidentes estavam vulneráveis, vinham de uma relação tumultuosa (com o Stephen Graubard, que os escreveu), e acabei por sair com eles debaixo do braço ao fim de dois dias.
Há quem não goste de Presidentes. Os vice-presidentes não os suportam. Os monárquicos acham-nos feios. O Mencken desprezava-os: o seu Presidente favorito era Calvin Coolidge, que transformou o seu mandato numa longa e inócua siestaHe had no ideas, and he was not a nuisance». (Mencken nunca teria votado em mim, já agora: ando com uma média de três horas de sono por dia, o que me transforma numa monumental nuisance).
Stephen Graubard é um caso mais complicado: ele gosta claramente de Presidentes, mas é aquele amor doentio, possessivo, fechado, que resulta frequentemente em violência doméstica. O seu ciúme é totalitário; os Presidentes, com ele, não têm autorização para se pintarem, nem para usarem decotes. Eu, mesmo nos momentos menos lúcidos, sei do que gosto nos meus Presidentes, e sou esteticamente tolerante (caracóis soltos, baton discreto, um bocadinho de perna à mostra). Graubard só os quer enrolados em sarapilheira, e a fazer ponto-cruz no quarto dos fundos.
Não é fácil abordar um livro assombrado por um passado tão problemático. Dei o meu melhor: passeei de mão dada com os Presidentes ao som de Elvis Costello, levei os Presidentes a jantar, fingi interesse nos seus problemas. Ouvi a história dos Presidentes com compaixão atenta. Fiquei ali sentado enquanto os Presidentes soluçavam e se atafulhavam daquela comida pós-moderna que não teve papá nem mamã. Graubard, explicaram-me eles, não tinha más intenções (já ouvi esta tantas vezes). Graubard era capaz de momentos doces, em privado. Graubard tinha uma teoria.
Graubard queria provar que é o Homem que molda o Cargo, e não o contrário. Graubard queria demonstrar que a pujança institucional - real e simbólica - da Presidência dos Estados Unidos sofre expansões ou contracções de acordo com a gravitas do seu ocupante, mas que o excesso de elasticidade sistémica, e a natureza intangível dos processos de evolução institucional, resultam numa tranferência de poderes para sucessores menos capazes. Graubard queria fazer tudo isto sem transformar o exercício numa prosaica procissão de heróis e vilões. Nesta linha, não se entusiasmou tanto como o raposão Paul Johnson, que, no seu espartilho revisionista – cujo recomendável programa era estilhaçar o mito de Camelot e a sua ressurreição Clintoniana – conseguiu transformar Nixon num mártir e Reagan num colosso intelectual. Graubard tem as suas preferências (Roosevelt I, Roosevelt II e Truman), nomeia os seus trapalhões (Harding e Eisenhower) e as suas nulidades (JFK, Carter e Bush I), mas consegue fazê-lo sem cair na histeria das claques sectárias.
Tudo isto resulta, e convence; e tudo se percebe nas primeiras páginas. O pior é o resto, que é pouco mais do que uma desavergonhada sessão de bitch-slapping verbal, prolongada por quase novecentas páginas.
Consideremos a seguinte salganhada semântica, do capítulo sobre Warren Harding:
«The first President born after the Civil War, in Blooming Grove, Ohio, the oldest of six children who survived, his middle name, Galamiel, chosen by his devoutly religious mother, reflected her pride in a son who could bear the name of the teacher of Saint Paul, noted for his tolerant and pacific nature.» Isto é um grand slam de prosa amnésica; a frase (que, dada a evidente falta de talento, devia ser três) vai-se esquecendo de si própria a caminho do ponto final.
As coisas pioram:
«These words, never heard by the American public, still shielded from such obscenities, learned only that the vice-president had bested the Soviet leader in their kitchen debate where the vice president, sweating profusely, went ‘toe-to-toe’ – Nixon’s words – with the chairman and scored impressively.» Aqui Graubard perde mesmo a compostura: não se devia fazer isto à língua inglesa, muito menos em público. Temos o dangling modifier, temos a repetição evitável, temos o despejo de clichés, temos os advérbios de modo penosamente mal escolhidos e mal colocados, temos a injecção de vernáculo com um apêndice ridículo. . . A única maneira de tornar esta frase mais feia seria enfiar-lhe uma peruca de palhaço e crescer-lhe um bigode.
Os dois exemplos não foram escolhidos a dedo: representam o modo de expressão básico do autor. Como é que os Presidentes se sujeitaram a esta prosa? Porque é que não saíram de casa com a mala às costas, e telefonaram para um advogado? A elogiosa citação da capa, para quem não tiver lupa, é de Peter Jay, da Spectator: «Gallops through the century with style, wit and scrumptious readability». 'Style' e 'wit', diz ele. Não sei quem é Peter Jay, mas deve ser o tipo de pessoa que defende que entre autor e Presidentes não se mete a colher. Ou então acha que os Presidentes estavam a pedi-las.
Fiz o que pude, mas nenhuma relação séria e duradoura floresce neste pântano. Paguei a sobremesa e o café aos Presidentes, mas venho aqui informar-vos de que eles estão disponíveis.
Fade out. Robbie Williams.

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