segunda-feira, julho 14, 2008

Mephisto



A imagem mais aterradora da semana apareceu sábado à noite, no fabuloso programa de Artur Albarran. Mostrava simplesmente uma mulher a escrever. Com um marcador de tinta fluorescente em cada mão, ela escrevia em simultâneo uma frase e o seu reflexo, num indefeso painel de vidro. «Não é difícil», explicou. «O mais complicado é decidir o que fazer com cada olho».
O neurocirurgião de serviço, Bandeira e Costa, debitou os subterfúgios da praxe. Falou de uma «invulgar disfunção cerebral» e de «ligações entre os dois hemisférios», sem nunca se atrever a enunciar a única verdade científica que o caso admite: a mulher é uma bruxa e deve ser lançada à fogueira o mais rapidamente possível.
Artur Albarran estava presente para providenciar o contexto histórico: «o espectador sabe que célebre figura tinha também esta capacidade?» Milhares de portugueses devem ter gritado o nome de Patrick Branwell Brontë. Alcoólico, desempregado crónico, e tristonho figurante na biografia das suas irmãs, Branwell tinha a transtornante habilidade de escrever duas cartas ao mesmo tempo (presumivelmente, uma para a Segurança Social e outra para a destilaria mais próxima). Albarran, contudo, tinha um ícone diferente no teleponto. «Isso mesmo: Leonardo Da Vinci!»
Pobre Leonardo; é retrospectivamente acusado de qualquer coisa de cinco em cinco minutos. Sabemos que, mais cedo ou mais tarde, qualquer observação mordaz será abtribuída a Oscar Wilde, qualquer insulto político a Winston Churchill e qualquer tecnologia moderna a Da Vinci, mas o seu currículo, até no que diz respeito a destreza manual e proezas atléticas, começa a estar ridiculamente inflacionado. Nunca li os famosos cadernos, mas pelo que pude aferir através de fontes secundárias, além de ter deixado esboços para o escafandro, a metralhadora, a bebida gaseificada, o leitor de mp3 e o metro de superfície do Porto, Leonardo terá sido também o primeiro ser humano a dançar o twist, a escalar o K2, e a preencher correctamente uma declaração de rendimentos. Nem a faculdade de escrever com as duas mãos ao mesmo tempo explica tamanha fecundidade.
Desconheço se Da Vinci também foi o precursor do autómato comunicativo que chegou aos nossos dias sob a designação de “Manuela Moura Guedes”. A primeira e mais natural reacção ao presenciar esta estonteante, ainda que rudimentar, manifestação de inteligência artificial é uma espécie de espanto religioso. Mas depressa o espanto dá lugar à desconfiança. Como aquelas populações boquiabertas que assistiram às triunfais exibições dos primeiros autómatos jogadores de xadrez, rapidamente nos perguntamos se não haverá um anão talentoso envolvido no processo. Na verdade, o últimos destes autómatos - o Mephisto - ao contrário dos seus ilustres predecessores (o Turco e o Ajeeb) era operado por controlo remoto, de uma sala diferente. Alguns dos melhores xadrezistas da época, como Isidor Gunsberg e Jean Taubenhaus, encarregaram-se de premir os botões certos. Não sei quem são os estagiários da TVI responsáveis pelo controlo remoto de “Manuela Moura Guedes”, mas creio que não estão minimamente à altura do legado de Gunsberg e Taubenhaus.
A entrevista ao futuro ex-treinador do Sport Lisboa e Benfica, no Jornal da Noite de sexta-feira, foi um exemplo invulgarmente confrangedor do que pode acontecer quando uma tecnologia a vapor colide com a era digital. O autómato esbracejou e balbuciou. Esperneou e suspirou. Microchips perdidos ziguezaguearam-lhe pelas córneas. O seu auricular berrava as instruções num volume tal que Quique Flores quase respondeu a duas perguntas antes de elas serem feitas. Mas o pobre andaluz foi um modelo de decoro. Começou por pedir desculpa aos telespectadores por não se exprimir fluentemente em português, algo que os operadores de “Manuela Moura Guedes” nunca tiveram a delicadeza de a pôr a fazer. A dada altura, o autómato tentou explicar a expressão “ferver em pouca água” com toda a eloquência de um curto-circuito. Quique ignorou-o com cavalheirismo e respondeu a perguntas que não chegaram a ser feitas. Só não confirmou se o Benfica 2008/09 vai jogar em 4-5-1 ou se, pelo contrário, vai ser a mais recente equipa nacional a aderir ao 4-4-2 em losango, táctica desenhada pela primeira vez em Florença no séc. XV, por uma das mãos de Leonardo Da Vinci.

13 comentários:

ruialme disse...

Óscar Viana Rego, I presume...

(anda na minha cabeça há meses, mas só hoje é q me deu para o exprimir...)

Anónimo disse...

Rogério Casanova, jure-nos que não escreveu inflaccionado e percursor com a outra mão.
Peço desculpa de não ter telefonado.
Deniz Costa

Lourenço Cordeiro disse...

Esta paturlha do erro ortrográfico é açustadora. E já agora, como é que se faz bolds nesta coisa?

Anónimo disse...

Sr. Casanova, devo-lhe dizer que Quique Flores passou a primeira grande prova. Foi, de facto, o primeiro treinador em Portugal a enfrentar uma tecnologia que desconhecia (o mesmo só aconteceu a Queiroz quando descobriu que os jogadores podiam ter mais de 75 kg). Ainda por cima, os lançamentos de botox estavam fortíssimos, o que com o esbracejar mostrava que estávamos perante um desafio que só Pulido Valente tem a serenidade suficiente para enfrentar.
É um herói, Quique Flores.

Souto Moura disse...

Chiça Casanova, isto até parece fácil...

T disse...

bolds fazem-se assim < b > Palavra no meio e o que está entre < > é sem espaços) < / b >. Para itálicos, a mesma coisa, só que com i.

Assim, assado.

Nuno disse...

Qual das mãos, já agora?

Anónimo disse...

Mais tarde ou mais cedo o estilo vai-te foder, por trás.

naked sniper disse...

e o poste sobre o Grimi, caralho?

Lourenço Bray disse...

Rogério, podias agora fazer um blog diving, somos muitos e suficientemente compactos para isso! \o/ \o/ \o/

Lourenço Cordeiro disse...

bold itálico

Lourenço Cordeiro disse...

(Faço casamentos e baptizados, bar mitzvahs e celebrações de lua cheia.)

Anónimo disse...

Já agora, mais uma coisa que da Vinci fazia e que está documentada.
Escrevia com a mão esquerda e espelhado. Ou seja, só se consegue ler alguns dos seus cadernos olhando a reflexão num espelho.
Eu não preciso de um espelho. Também escrevo com a mão esquerda espelhado (técnica desenvolvida nas aulas que não me interessavam).
Entretanto estou a desenvolver outra técnica, que ao que sei nem o da Vinci imaginou.
Escrever com os pés.
Este é o terceiro comentário que deixo num blogue nacional, dactilografado com os pés.
Para a semana tenho intenções de começar a escrever em estrangeiro. Com os pés.