Vinte anos depois, continua a não ser arquivado nas secções de "Humor". A quantidade de gente que continua a levar este monte de entulho a sério é que nunca deixa de me surpreender. O Ibsen batia no cão, o Marx tinha bolhas na pilinha, o Edmund Wilson gostava de levar tau-tau - nunca houve reunião de costureiras com uma acta tão sofisticada.
Tentar invalidar um sistema de pensamento através da higiene pessoal não é uma metodologia particularmente revolucionária: a minha mãe anda a tentar a mesma coisa desde 1987. Mas não resulta, não resulta. Qualquer produção intelectual está enraizada numa personalidade, mas a correlação nunca é directa. Algumas abordagens conseguem ser interessantes mesmo quando são inadequadas; mas Paul Johnson tem o dom de induzir o desespero numa pessoa mesmo quando tem razão. O capítulo sobre Marx, valha-me Deus. O Aron e o Popper conseguiram demolir criticamente o marxismo sem precisarem de contar sabonetes. Há casos específicos em que a vida invalida as ideias, mas esses casos são raros. O facto de uma conduta pessoal não ser coerente com um conjunto de princípios não invalida os princípios - quando muito, invalida a conduta pessoal.
Paul Johnson critica a deficiente compreensão da História partilhada por Marx e Tolstoi, mas a sua própria compreensão é pouco mais do que uma caricatura sem bonecos. Para já, é possível ler-se as doze mil e setecentas páginas de Intellectuals sem perceber o que é um "intellectual". Segundo os atrapalhados parâmetros do autor, um intelectual é alguém que tenta usar a Razão para construir uma nova ordem social. A sério? Hemingway? Ibsen? Edmund Wilson? James Baldwin? A sério? E o Elton John? E o Eric Cantona? E o Carlos Daniel? Na tentativa de desmantelar bezerros de ouro, o Paul Johnson artilhou um de vapor. E ali está ele, entretido, a mandar cócó aos fantasmas.
Nessa elite espectral, Johnson vê uma espécie de clero secular: “aventureiros do espírito”, cujas inovações morais e ideológicas já não são limitadas pelos “cânones da autoridade externa” e pela “herança da tradição”. Mas esses mesmos limites foram eles próprios aventuras do espírito - sucessivamente melhorados e cronologicamente institucionalizados; a exterioridade que Johnson lhes atribui é uma mera convenção. Os grandes sistemas teóricos, e as restrições que os contêm, são manifestações humanas; mesmo ao seu melhor (e há poucos exemplos) limitam-se a resgatar uma aproximação à verdade e a intensificá-la. No processo, essa verdade é inevitavelmente distorcida, cabendo às gerações o trabalho de refinamento. Paul Johnson, que só é capaz de assimilar e aceitar uma cultura hierática, procura as vantagens de uma ideia na legitimidade de quem a professa. Quer idolatrar, não conteúdos falíveis, mas Livros inerrantes. Quer uma purezazinha aberrante que se possa seguir cegamente. O corolário lógico do seu catálogo de objecções é evidente: se uma teoria perigosamente deficiente, como o marxismo, tivesse sido Revelada no Monte Sinai, as suas deficiências teriam em Paul Johnson o seu mais infatigável acólito.
A conclusão de “Intelectuais” é que as pessoas têm sempre mais importância que os conceitos. Como conceito, isto é eminentemente defensável. Mas é um conceito; e um conceito pelo qual muitas pessoas entenderam que valia a pena morrer. O conceito no qual Paul Johnson predicou este livro indefensável é um mau conceito, que apenas se consegue invalidar a si próprio. Até o Paul Johnson - que passou a vida a beber que nem um mineiro siberiano, a bater em cães, e pelo menos treze anos numa relação adúltera com uma amante que lhe dava palmadinhas com implementos de cabedal - é mais importante do que isto.
10 comentários:
Segunda-Feira (já de si não augura nada de bom...), 26 de Janeiro. Que sessão de porrada! Depois de duas cabeçadas e três pontapés no "Ecuador", um enxerto destes no Paulo Johnson... Um resto de boa semana para si e, por amor de Deus, nunca critique nada que diga, escreva, faça, respire.... É que tenho uma constituição frágil e....
"When the seagulls follow the trawler, it's because they think sardines will be thrown in to the sea."
quanto aos os outros gajos citados nesta posta não sei, mas que o imortal Eric Cantona é um intelectual é inquestionável: esta frase inesquecível continua aí para esclarecer quaisquer dúvidas.
esse título não é roubado ao maradona?
Mas há alguém que ainda não percebeu que o maradona e o casanova são a mesma pessoa? Só quem não quer ver mesmo...
Tudo o que escreveu é muito razoável e Johnson teria perdido o seu tempo se o que subjaz ao Intelectuals não fosse um exercício de anti-hagiografia sobre autores que edificaram sistemas que validaram outros, morais. Que sim, também estes últimos - os morais - são independentes dos seus autores, mas lembra-se do superioridade moral dos comunistas de Cunhal, apenas para citar um exemplo dos mais frustes? E das anedotas piedosas sobre alguns dos autores, sempre servida com um ar beato? Uma gargalhada de desdém sobre tudo isso causar(-lhe) mais indignação do que os disparates laudatórios que ainda se publicam e que enfermam dos mesmos vícios de análise que V. bem aponta, é que me faz alguma confusão.
"mas lembra-se do superioridade moral dos comunistas de Cunhal"
Ui ui, o Casanova vai para a segunda ou terceira cagadela em cima das biblias, qualquer dia a malta do Frágil ainda lhe faz a folha.
Caro Casanova, tens razão, o Intellectuals não é um livro sério, não tem um único argumento, é (acho que foste tu que escreveste) a revista Caras para intelectuais, como ler na bíblia que entre a oração e o holocausto Abraão fez chichi nas calças. E por isso mesmo, é muito muito bom. Muito muito mau é este texto muito muito a sério. Um abraço.
Nem Johnson, nem Aron, nem Popper, nem Pedro Santana Lopes conseguiram demolir o marxismo. O marxismo foi apenas abalado criticamente mas aguarda nas sombras de um armazém abandonado onde prepara o seu regresso como Super Marx, o super-heroi das nacionalizações de bancos e empresas falidas. Ajudado pelo Flaming Lenin.
Vai lá vai. Demolidor. Certíssimo. E a conclusão é brilhante: eu também já abandonei a maionnaise há uns anos. Mas o sistema hepático não agradeceu.
Fiquei com uma dúvida pertinente: o que é um(a) "intellectual"?
O que esconderá Casanova por trás deste arraso ao Johnson? Foi-lhe recusada publicação de prosa no New Statesman? Achar-se-á ele, Casa Nova, um intelectual e como tal estará a defender o seu quintalucho? Achará que os chatos deste, os macacos de nariz daquele, as bastonadas sado-maso daqueloutro ou outra não influenciarão o respectivo discurso intelectual?
Menos alcalóides e absinto, SFF, e beba-lhe mais vinho NovaCasa. Arrime-se homem.
Bem Haja
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