terça-feira, junho 30, 2009
segunda-feira, junho 29, 2009
quinta-feira, junho 25, 2009
Sou tão prestável
Agora do que eu gostaria mesmo era que alguém sugerisse um de Robert Browning (gosto de simetrias). (Linha dos Nodos)
No The Sweet Hereafter do Egoyan, antes do acidente, a rapariga maluca lê um excerto do "The Pied Piper of Hamelin" (do Browning) aos seus coleguinhas.
Já agora, no The Trouble With Harry o médico tropeça no cadáver do Harry porque vai a ler um soneto de Shakespeare (tenho uma história parecida que aconteceu em Monsanto, mas conto noutra altura). E, por falar em sonetos, no a todos os níveis excelente Exorcista III (o filme que inclui um dos melhores diálogos sobre carpas da história do cinema), ouve-se aquele soneto do John Donne em que o sujeito poético aconselha a Morte a bater a bolinha baixa, na medida em que o guarda-redes é anão.
No The Sweet Hereafter do Egoyan, antes do acidente, a rapariga maluca lê um excerto do "The Pied Piper of Hamelin" (do Browning) aos seus coleguinhas.
Já agora, no The Trouble With Harry o médico tropeça no cadáver do Harry porque vai a ler um soneto de Shakespeare (tenho uma história parecida que aconteceu em Monsanto, mas conto noutra altura). E, por falar em sonetos, no a todos os níveis excelente Exorcista III (o filme que inclui um dos melhores diálogos sobre carpas da história do cinema), ouve-se aquele soneto do John Donne em que o sujeito poético aconselha a Morte a bater a bolinha baixa, na medida em que o guarda-redes é anão.
quarta-feira, junho 24, 2009
Aldaily temático, seguido de modesto exercício de tipologia e de final abrupto por motivos de pequeno-almoço
Tendo relido por ordem cronológica toda a não-ficção que o homem escreveu (o absurdo e embaraçoso contexto emocional não vai ser abordado, até porque a absurda e embaraçosa sensação de que o seu suicídio foi um gesto que me ofendeu directamente ainda não se dissipou), estou em condições de afirmar que David Foster Wallace foi a pessoa mais inteligente que li na minha vida.
A afirmação é discutível, a vida em questão é curta, e a inteligência é difícil de quantificar, mas acho que se impõe aqui o post chato que aqui se impõe. Antes, contudo, my own private aldaily:
«Tennis, Trigonometry, Tornadoes» (pdf) - a mais inteligente biografia psíquica, intelectual e biomecânica de todos os tempos. Tem nove páginas. Permitam-me que vos mostre um bocadinho de cueca: « ... The point is I just wasn't the same, somehow, without deformities to play around. I'm thinking now that the wind and bugs and chuckholes formed a kind of inner boundary, my own personal set of lines. Once I hit a certain level of tournament facilities, I was disabled because I was unable to accomodate the absence of disabilities to accomodate».
«The Empty Plenum» (pdf) - uma recensão crítica ao romance de David Markson, “Wittgenstein's Mistress”, publicada na Review of Contemporary Fiction. Evidentemente a recensão crítica mais inteligente de todos os tempos. É que não há competição por perto, sequer.
«The String Theory» e «How Tracy Austin Broke My Heart» (já houve link para este, agora não há) - Os mais inteligentes textos sobre ténis de todos os tempos (reparem no padrão). O texto sobre Federer, que fique bem claro, é o terceiro texto sobre ténis mais inteligente de todos os tempos, mas ainda assim a uma larga distância deste díptico. O primeiro texto foi publicado originalmente na Harper's e uma versão não-editada aparece na primeira colecção de ensaios de Wallace, com o título original (“Tennis Player Michael Joyce's Professional Artistry as a Paradigm of Certain Stuff about Choice, Freedom, Discipline, Joy, Grotesquerie and Human Completeness”). O segundo é uma pequena crítica à autobiografia de Tracy Austin e aparece na segunda colecção de ensaios. Em conjunto, e entre muitas outras coisas que fazem ao cérebro, propõem uma teoria sobre a constituição do génio desportivo, que postula que o talento atlético é indissociável de uma ausência ontológica, uma espécie de vácuo neo-Zen que permite computar um número ridículo de variáveis de uma forma hiper-consciente mas ao mesmo tempo puramente mecânica, e criar uma simbiose entre agência e acção assente na adopção literal de clichés motivacionais, etc etc etc. Além de estabelecerem a melhor defesa teórica da beleza estética do ténis (de todos os tempos), e de articularem a melhor defesa teórica das limitações intelectuais dos atletas profissionais (de todos os tempos), os textos também incluem piadas.
«The Weasel, Twelve Monkeys and the Shrub» - A célebre reportagem sobre a campanha de John McCain nas Primárias Rebublicanas de 2000. A Rolling Stone acabou por publicar apenas 50% do texto original, mas a versão restaurada, e com notas de rodapé, pode ser lida na colecção Consider the Lobster (com o título «Up, Simba»). Isto é muito mais do que a mais inteligente reportagem política (agora em coro) de todos os tempos, embora também o seja. É uma condensação daquilo que, à falta de melhor alternativa, se pode chamar o tipo específico de inteligência de Wallace, algo de que falarei para aqui sozinho um pouco mais à frente.
«A Supposedly Fun Thing I'll Never Do Again» (pdf) - Temos aqui o apogeu de qualquer coisa, parece-me. O relato de uma viagem de cruzeiro, escrito em 1995, também para a Harper's, é o texto (sem qualificativo) mais inteligente de todos os tempos. Esta histérica certidão pode muito bem ser o resultado não apenas de um processo emocional cumulativo, como também do calor que se tem feito sentir, possibilidades que não voltarão a ser exploradas.
A afirmação é discutível, a vida em questão é curta, e a inteligência é difícil de quantificar, mas acho que se impõe aqui o post chato que aqui se impõe. Antes, contudo, my own private aldaily:
«Tennis, Trigonometry, Tornadoes» (pdf) - a mais inteligente biografia psíquica, intelectual e biomecânica de todos os tempos. Tem nove páginas. Permitam-me que vos mostre um bocadinho de cueca: « ... The point is I just wasn't the same, somehow, without deformities to play around. I'm thinking now that the wind and bugs and chuckholes formed a kind of inner boundary, my own personal set of lines. Once I hit a certain level of tournament facilities, I was disabled because I was unable to accomodate the absence of disabilities to accomodate».
«The Empty Plenum» (pdf) - uma recensão crítica ao romance de David Markson, “Wittgenstein's Mistress”, publicada na Review of Contemporary Fiction. Evidentemente a recensão crítica mais inteligente de todos os tempos. É que não há competição por perto, sequer.
«The String Theory» e «How Tracy Austin Broke My Heart» (já houve link para este, agora não há) - Os mais inteligentes textos sobre ténis de todos os tempos (reparem no padrão). O texto sobre Federer, que fique bem claro, é o terceiro texto sobre ténis mais inteligente de todos os tempos, mas ainda assim a uma larga distância deste díptico. O primeiro texto foi publicado originalmente na Harper's e uma versão não-editada aparece na primeira colecção de ensaios de Wallace, com o título original (“Tennis Player Michael Joyce's Professional Artistry as a Paradigm of Certain Stuff about Choice, Freedom, Discipline, Joy, Grotesquerie and Human Completeness”). O segundo é uma pequena crítica à autobiografia de Tracy Austin e aparece na segunda colecção de ensaios. Em conjunto, e entre muitas outras coisas que fazem ao cérebro, propõem uma teoria sobre a constituição do génio desportivo, que postula que o talento atlético é indissociável de uma ausência ontológica, uma espécie de vácuo neo-Zen que permite computar um número ridículo de variáveis de uma forma hiper-consciente mas ao mesmo tempo puramente mecânica, e criar uma simbiose entre agência e acção assente na adopção literal de clichés motivacionais, etc etc etc. Além de estabelecerem a melhor defesa teórica da beleza estética do ténis (de todos os tempos), e de articularem a melhor defesa teórica das limitações intelectuais dos atletas profissionais (de todos os tempos), os textos também incluem piadas.
«The Weasel, Twelve Monkeys and the Shrub» - A célebre reportagem sobre a campanha de John McCain nas Primárias Rebublicanas de 2000. A Rolling Stone acabou por publicar apenas 50% do texto original, mas a versão restaurada, e com notas de rodapé, pode ser lida na colecção Consider the Lobster (com o título «Up, Simba»). Isto é muito mais do que a mais inteligente reportagem política (agora em coro) de todos os tempos, embora também o seja. É uma condensação daquilo que, à falta de melhor alternativa, se pode chamar o tipo específico de inteligência de Wallace, algo de que falarei para aqui sozinho um pouco mais à frente.
«A Supposedly Fun Thing I'll Never Do Again» (pdf) - Temos aqui o apogeu de qualquer coisa, parece-me. O relato de uma viagem de cruzeiro, escrito em 1995, também para a Harper's, é o texto (sem qualificativo) mais inteligente de todos os tempos. Esta histérica certidão pode muito bem ser o resultado não apenas de um processo emocional cumulativo, como também do calor que se tem feito sentir, possibilidades que não voltarão a ser exploradas.
Definir algo como "o mais inteligente" requer provavelmente que se defina o termo, portanto façamos um modesto exercício - inspirado em Howard Gardner - sobre a minha definição operativa de inteligência, atributo que tive o cuidado e as férias de separar (com a ajuda inestimável do alfabeto) em cinco categorias, e que, para este efeito, está limitado à inteligência que pode ser apreendida através da escrita:
Tipo A - A inteligência cuja principal característica é a clareza de raciocínio: a fluência intelectual e a facilidade de exposição que cinzelam a complexidade até um linear encadeamento de factos. O estilo é um factor determinante, mas o seu impacto não é notório. É a inteligência de David Hume, William Hazlitt, George Orwell, V. S. Pritchett, Eric Hobsbawm e, para esticar os exemplos a “pessoas portuguesas com blogs” (que também são gente), Ivan Nunes, António Figueira e Pedro Picoito.
Tipo B - É a inteligência que mais depende de um estilo literário, a que pode mais facilmente ser imitada por pessoas não-inteligentes, e também a menos estanque e mais sujeita a overlaps com outras categorias, pelo que me vou socorrer de números para chafurdar em dois sub-tipos.
tipo B1 - A inteligência céptica e iconoclasta. É um tipo de inteligência semi-narcisista, muito confortável com as suas características, que tende a adoptar uma pose cínica e preconceitos teóricos que muitas vezes dão a ideia de poderem perfeitamente ser outros. Mais do que em qualquer outro tipo, a estabilidade é ancorada numa fórmula estilística. Exemplos: Frederick Crews, Vasco Pulido Valente e Gore Vidal, este último com nítido overlap para o tipo A. (H. L. Mencken e João Gonçalves, já agora, são exemplos do que acontece quando os portadores destas características se apaixonam pelo próprio esqueleto e se tornam paródias privadas, asfixiando a ex-inteligência num transtornante aparato auto-erótico davidcarradinesco).
tipo B2 - a inteligência especulativa, arrojada e insolente. É o tipo de inteligência que mais corteja o ridículo. Há uma marcada predilecção pela ligação insólita, pela interpretação oblíqua, pela exploração de tudo o que é contra-intuitivo. É frequentemente o tipo de inteligência mais entusiasmante e com maior valor de entretenimento, mas também a que mais tende a decepcionar. Exemplos: Henry Adams, Norman Mailer, Susan Sontag, George Steiner, Pedro Arroja.
Como referi, é a categoria mais fluida. Isaiah Berlin é um potencial tipo A a escorregar para o B2. Malcolm Gladwell é um tipo B2 que finge ser tipo A. O maradona é uma síntese espiritual quase perfeita dos tipos B1 e B2 que, certamente por motivos acidentais e não-planeados, consegue quase sempre ser tipo A.
(Apesar de todas estas condicionantes, tenho o tipo B sob controlo, não se preocupem).
Tipo C - A inteligência volumétrica, cuja medida não é necessariamente a qualidade, mas a quantidade e a intensidade. Isto não faz do tipo C o Ramires da tipologia, atenção. O tipo C é tão ou mais digno de respeito e assombro do que os outros. É uma inteligência de seriedade, de trabalho, de rigor, de organização - e de energia. Se houvesse um símbolo que evocasse o tipo C seria um arquivo infinito espalhado ao longo de uma pista de tartan. Os exemplos óbvios são Edmund Wilson, Pacheco Pereira e João Miranda.
Tipo D - A inteligência mais avassaladora. É a mais profunda (uso o termo “profundo” no seu sentido superficial) mas também a de perímetro mais reduzido (uso o termo “reduzido” no seu sentido lato). É uma inteligência de fôlego, confortável com abstracções, que tende para a sistematização (é a mais frequente em académicos), e que extrai a maior densidade intelectual do menos promissor aglomerado factual. Tem lacunas, mas lacunas que costumam resultar de demolições controladas e auto-induzidas. Exemplos: Pierre Bourdieu, Frederic Jameson (ambos com laivos de B2, mas enfim), Clifford Geertz, João Galamba e Yesterday Man (embora este último caso seja muito mais complicado).
Tipo A - A inteligência cuja principal característica é a clareza de raciocínio: a fluência intelectual e a facilidade de exposição que cinzelam a complexidade até um linear encadeamento de factos. O estilo é um factor determinante, mas o seu impacto não é notório. É a inteligência de David Hume, William Hazlitt, George Orwell, V. S. Pritchett, Eric Hobsbawm e, para esticar os exemplos a “pessoas portuguesas com blogs” (que também são gente), Ivan Nunes, António Figueira e Pedro Picoito.
Tipo B - É a inteligência que mais depende de um estilo literário, a que pode mais facilmente ser imitada por pessoas não-inteligentes, e também a menos estanque e mais sujeita a overlaps com outras categorias, pelo que me vou socorrer de números para chafurdar em dois sub-tipos.
tipo B1 - A inteligência céptica e iconoclasta. É um tipo de inteligência semi-narcisista, muito confortável com as suas características, que tende a adoptar uma pose cínica e preconceitos teóricos que muitas vezes dão a ideia de poderem perfeitamente ser outros. Mais do que em qualquer outro tipo, a estabilidade é ancorada numa fórmula estilística. Exemplos: Frederick Crews, Vasco Pulido Valente e Gore Vidal, este último com nítido overlap para o tipo A. (H. L. Mencken e João Gonçalves, já agora, são exemplos do que acontece quando os portadores destas características se apaixonam pelo próprio esqueleto e se tornam paródias privadas, asfixiando a ex-inteligência num transtornante aparato auto-erótico davidcarradinesco).
tipo B2 - a inteligência especulativa, arrojada e insolente. É o tipo de inteligência que mais corteja o ridículo. Há uma marcada predilecção pela ligação insólita, pela interpretação oblíqua, pela exploração de tudo o que é contra-intuitivo. É frequentemente o tipo de inteligência mais entusiasmante e com maior valor de entretenimento, mas também a que mais tende a decepcionar. Exemplos: Henry Adams, Norman Mailer, Susan Sontag, George Steiner, Pedro Arroja.
Como referi, é a categoria mais fluida. Isaiah Berlin é um potencial tipo A a escorregar para o B2. Malcolm Gladwell é um tipo B2 que finge ser tipo A. O maradona é uma síntese espiritual quase perfeita dos tipos B1 e B2 que, certamente por motivos acidentais e não-planeados, consegue quase sempre ser tipo A.
(Apesar de todas estas condicionantes, tenho o tipo B sob controlo, não se preocupem).
Tipo C - A inteligência volumétrica, cuja medida não é necessariamente a qualidade, mas a quantidade e a intensidade. Isto não faz do tipo C o Ramires da tipologia, atenção. O tipo C é tão ou mais digno de respeito e assombro do que os outros. É uma inteligência de seriedade, de trabalho, de rigor, de organização - e de energia. Se houvesse um símbolo que evocasse o tipo C seria um arquivo infinito espalhado ao longo de uma pista de tartan. Os exemplos óbvios são Edmund Wilson, Pacheco Pereira e João Miranda.
Tipo D - A inteligência mais avassaladora. É a mais profunda (uso o termo “profundo” no seu sentido superficial) mas também a de perímetro mais reduzido (uso o termo “reduzido” no seu sentido lato). É uma inteligência de fôlego, confortável com abstracções, que tende para a sistematização (é a mais frequente em académicos), e que extrai a maior densidade intelectual do menos promissor aglomerado factual. Tem lacunas, mas lacunas que costumam resultar de demolições controladas e auto-induzidas. Exemplos: Pierre Bourdieu, Frederic Jameson (ambos com laivos de B2, mas enfim), Clifford Geertz, João Galamba e Yesterday Man (embora este último caso seja muito mais complicado).
A inteligência de David Foster Wallace, com assinalável desrespeito pelo alfabeto e pelo meu trabalho, não cabe em nenhuma destas categorias. Reune características de todas elas (com a clara excepção do tipo B2), mas é falível, enrodilha-se em nós cegos e mete-se em becos sem saída, pois adiciona tantas camadas de auto-reflexividade a cada característica individual que, aplicadas à motricidade, fariam com que fosse impossível atar um sapato sem entrar em convulsões. É uma inteligência exaustiva, no duplo sentido da palavra: esgota-se a esgotar possiblidades.
Quando observa os outros (McCain, Michael Joyce ou o rapaz das toalhas no cruzeiro), quando se observa a si próprio, Wallace dá o benefício da dúvida a cada gesto, a cada frase; e dar o benefício da dúvida é uma das actividades mais fatigantes que conheço. É uma posição ética que nasce da curiosidade e da empatia, mas também resulta de um pânico filosófico genuíno sobre questões de autenticidade emocional, que pode ser forjada não apenas para terceiros, mas também (e isto para ele era uma história de terror) ao nível interno. Se a minha consciência sobre um determinado sentimento é total, como é que posso ter a certeza de que o sentimento é autêntico e não uma construção? (etc)
Wallace aprendeu que a liberdade mais importante é a auto-consciência, mas que esta (por definição) precisa de si própria para aprender a ser utilizada, o que inaugura dificuldades enormes nisto de ser pessoa. Também aprendeu que ser boa pessoa é a melhor forma de inteligência. A sua inteligência antecipa cada passo de quem o lê, mas também permite que os seus próprios passos sejam antecipados. É a inteligência que expande e eleva o que a rodeia. É a inteligência da civilização, e de tudo o que veio a seguir aos calhaus e aos bichos. E faz falta, faz tanta falta.
quinta-feira, junho 18, 2009
Algumas considerações sócio-políticas sobre a entrevista de José Sócrates à SIC
Estou a brincar, por amor de Deus. Mas não devo ter sido o único a reparar na nova voz estreada hoje em primeira mão na presença da Ana Lourenço. Como é sabido, o primeiro-ministro era, até hoje, talvez o único líder mundial que falava em jazz. Cada palavrinha era cuidadosamente sincopada, com a acentuação a ser sempre deslocada para a sílaba mais inesperada - os "tambéns" e os "portantos" de Sócrates pareciam os "powers" e os "peoples" de Stevie Wonder em «Higher Ground»:
Pelo pouco que ouvi, a noite de hoje marcou o momento em que passámos a ter um primeiro-ministro em compasso normal, o que provavelmente explica as dificuldades sentidas por Ana Lourenço em disfarçar aquele ar de quem se enganou a contar os sedativos. Tudo isto me deixou um bocadinho triste, mas rogo-vos que não se preocupem comigo que isto já passa. O importante é Portugal.
Pelo pouco que ouvi, a noite de hoje marcou o momento em que passámos a ter um primeiro-ministro em compasso normal, o que provavelmente explica as dificuldades sentidas por Ana Lourenço em disfarçar aquele ar de quem se enganou a contar os sedativos. Tudo isto me deixou um bocadinho triste, mas rogo-vos que não se preocupem comigo que isto já passa. O importante é Portugal.
quarta-feira, junho 17, 2009
Ficção engomada
Foram umas férias excelentes, cuja excelência não foi sequer posta em causa pela súbita e inesperada revelação de que a direcção do Sporting prestes a ser substituída pelo tio do Pedro Granger poderia ter angariado fundos suficientes para financiar a recontratação do atleta português Cristiano Ronaldo através de um expediente logisticamente complexo, mas perfeitamente ao alcance da família sportinguista: matar oito milhões de criancinhas à fome. Não sei como é que nenhum núcleo se lembrou de fazer um abaixo-assinado.
Enfim, a ficção “experimental”. De vez em quando, normalmente quando estou a passar a ferro, dou comigo a reflectir sobre a ficção "experimental". Estas soberbas reflexões, que já colocaram em risco a integridade de inúmeras t-shirts do catálogo Printemps, não se costumam afastar muito da mesma crosta, que é o facto de a ficção "experimental" ser, regra geral, praticada por dois tipos de autores: génios aborrecidos com o seu próprio talento, e mediocridades indignadas com a sua ausência de talento.
A última vaga de reflexões foi despoletada por dois objectos recém-adquiridos: um exemplar do livro The Raw Shark Texts, de Steven Hall, e umas calças extraordinariamente obstinadas, adquiridas por 39 euros (para evocar a quantia em termos mais actuais, esclareço que o atleta português Cristiano Ronaldo poderia adquir 25 calças idênticas por hora durante os próximos cinco anos e ainda ficar com dinheiro suficiente para cobrir as despesas de alimentação do João Gobern). Como tantos outros livros hoje em dia, The Raw Shark Texts é a história de um homem perseguido por um tubarão conceptual. As perspectivas de vida não são boas, mas um capítulo intitulado "The Crypto-Zoology of Purely Conceptual Sharks, Dictaphone Defense Systems and Light Bulb Code Cracking" sugere algumas medidas preventivas. A mais segura é montar um sistema de defesa formado por quatro dictafones de reprodução contínua, cujo objectivo é “gerar um ciclo conceptual não divergente”, e presumivelmente permitir ao protagonista ser processado por plágio pelos herdeiros de John Cage.
O livro pertence a uma nova estirpe literária: o livro-evento. Evento, não no sentido publicitário, mas no sentido comunitário, em que o acto de estar sentado a virar páginas é apenas metade da experiência. Depois, num géiser de geekalhice, somos arremessados para os fóruns, para os wikis, à procura de ovos de Páscoa e de co-obcecados. Também há fotos e rabiscos,
o mais arrojado dos quais se prolonga por quarenta e cinco páginas, e consiste na representação gráfica da aproximação de um tubarão feito de palavras, uma versão ligeiramente mais sofisticada daquilo que qualquer pessoa aprende a fazer aos sete anos, com duas tiras de papel e um lápis:
Isto é tudo muito divertido, e já se fizeram livros excelentes através de métodos semelhantes (o fabuloso House of Leaves estabeleceu o padrão de qualidade a que se deve almejar). Mas também sugere que a linha de evolução na ficção experimental - que começou por traduzir impaciência com um espartilho específico de convenções do realismo - começa agora a traduzir impaciência com tudo e mais alguma coisa. Uma coisa é usar as estratégias da ficção para explorar limites formais e estruturais; outra, bem diferente, é abraçar métodos tão radicalmente diferentes que resultarão inevitavelmente numa forma de expressão que só por hábito ou condescendência continuará a merecer a designação de literatura. Quando o foco do "experimentalismo" é apenas o moldar do texto à última inovação - ficção hiper-textual, ficção twitter, etc. - a literatura arrisca-se a ser apenas a expressão de uma tecnologia, o que não deve ser nada bom, e é provavelmente altura de perder uns minutinhos a passar a ferro e a pensar na vida. (Provavelmente havia escritores vitorianos entusiasmadíssimos com a ideia de "épico metalúrgico" ou de "poesia a vapor", mas os seus esforços não perduraram).
The Raw Shark Texts, já agora, foi recentemente traduzido e publicado pela Presença (com o título Memória de Tubarão), e pode ser adquirido por 22 euros. Para evocar a quantia em termos mais actuais, digamos que o atleta português Cristiano Ronaldo poderia adquirir um exemplar de dois em dois minutos durante os próximos cinco anos, e ainda ficar com dinheiro suficiente para snifar oitocentas linhas de cocaína directamente da nádega da esposa do autor através de uma palhinha com banho de ouro, rodeado por uma trupe de anões montados em uniciclos cantando versões a capella dos grandes êxitos dos Oasis.
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