quarta-feira, outubro 31, 2007

Ouvir vozes



É minha opinão formada - desde há muitos, muitos anos - que não há nenhum problema doméstico que não possa ser resolvido ouvindo calmamente a faixa 2 deste álbum. Testem a validade desta teoria da próxima vez que a máquina de lavar vos inutilize sete t-shirts sem qualquer justificação.

domingo, outubro 28, 2007

De modo a abalar as raízes

O Filipe Guerra teve a amabilidade de me passar, de sua livre e espontânea vontade, um desses sempre úteis memes blogosféricos. Isto é bom: escolher o livro mais próximo, abri-lo na página 161, e transcrever a quinta frase completa. O jogo toca-me particularmente pois, como se lembrarão os leitores mais atentos, foi assim que escolhi o nome do blogue: abrindo aleatoriamente o livro que tinha em cima da secretária e lendo a primeira palavra que me apareceu (o livro, felizmente, era um dicionário da Porto Editora e não Os 120 Dias de Sodoma).
Dada a conjuntura kármica da Margem Sul, era quase inevitável que o livro mais próximo neste preciso momento não chegasse às cento e sessenta e uma páginas. Caso chegasse, a página em questão teria certamente apenas quatro frases. A paginação de Truques do Jardineiro, das edições Girassol (não percebo nada de jardinagem e horticultura) termina ao número 93.
Por sorte, o livro imediatamente abaixo na pilha (sim, há uma pilha, eu não percebo mesmo nada de jardinagem e horticultura), o seminal Culturas Hortículas 1, de Alberto e Nydia Gardé, permite-me cumprir as instruções específicas da corrente. A quinta frase da página 161 é a seguinte: «Outra prática aconselhada para os repolhos e couves de Milão consiste no corte parcial do sistema radicular com a enxada ou na incisão anelar do caule, com um canivete, ou de forma mais atenuada, em tombar forçadamente as plantas de modo a abalar as raízes».
Creio não ser o único a achar esta "prática aconselhada" de uma brutalidade algo excessiva. Eu sou um rapazinho metropolitano: quando senti que os meus repolhos de Milão precisavam de ter as suas raízes questionadas, o meu primeiro impulso foi convidá-los para um café e um brandy no aeroporto da Portela (enfim, comigo funciona).
Fica, de qualquer forma, a informação, para os muitos leitores que decerto se defrontam com problemas semelhantes. Passo a corrente ao Julinho, ao major, ao Daniel do b-site (sempre foste às corridas em Kempton?), e a qualquer pessoa que ande a ler o Horticultura Prática, de A. Fersini.

sábado, outubro 27, 2007

Skip



(Um vídeo que é uma espécie de Painéis de São Vicente do blues, e que, por si só, serviria para justificar o YouTube, a Internet e até a civilização ocidental. Se eu calculasse publicamente o número de horas da minha vida que passei a ouvir Skip James, o mais provável era ninguém acreditar. E os gajos que estão ali de volta dele também não eram nada maus.)

Isto é um post do Terra Habitada

«Acrítica litrária (a partir de Ana Tureza do Mal)

A crítica literária de Pedro Mexia, raramente perfuntcória, é mesmo, quando adrega, de excepção.

A clítica hebdomadária em que o Pedro mexia, nuncamente mictória, é, mesmo quando aborrega, tão-balalão.

A mítica consuetudinária de tetraedro que chia, levemente inglória, é mesmo, quando escorrega, para o Cazaquistão.

A críptica quaternária do cedro em abulia nimiamente excretória é mesmo ao mando brega do capitão.

A política de secretária em que medro de dia (mente notória) a esmo pensando numa esfrega ao setentrião.
»

Hoje fartei-me de trabalhar aqui no blogue (acima de tudo porque não encontrei um único multibanco com dinheiro)

Os links para os blogues do maradona e da Laura Abreu Cravo foram actualizados, reconhecendo a sua nova filiação no Sapo (espero que isto não seja o princípio de uma sangria; não tenho nada contra o Sapo, mas, ok, tenho, tenho uma carrada de coisas contra o Sapo). Há também um linque para o Terra Habitada, um blogue quase inacreditavelmente bem escrito, e que era talvez o último blogue quase inacreditavelmente bem escrito que eu ainda não conhecia. Reparem onde o enfiei, na listinha ali do lado, entre a Ana de Amsterdam e o Samuel Úria: julgam que foi por acaso? O Gattopardo, o novo blogue do Mexia e do Lomba, será adicionado assim que conseguir descobrir um anagrama para a expressão "o novo blogue do Mexia e do Lomba". Estive muito perto, tendo chegado a "vi logo o bom exame ao duodeno", mas sobravam-me duas pérfidas consoantes. Também não se pode pedir muito mais a um cérebro formado em duas escolas que não vão além da centésima octogésima sétima e ducentésima nonagésima posições, segundo a lista do JN.

quarta-feira, outubro 24, 2007

Solecismo de Inverno

Uma correspondente devidamente identificada, que tem o hábito intempestivo de vingar o Vasco Barreto corrigindo todas as calinadas que aqui vou dando, informou-me que, no post anterior, dobrei a consoante errada na palavra fellatio. Ora, é preciso estar de grande má-fé para interpretar isso como um erro e não como um corajoso statement fonético-moral sobre a realidade. Parece-me que o espaço onomatopeico tem latitude suficiente para que fellatio e felattio possam ter existências paralelas. É claro que, na sua forma canónica, a palavrinha se grafa com dois ll e apenas um t. Mas não contem comigo para prolongar a hedionda conspiração de silêncio à volta desse nobre acto - alternativo, eslavo, sofisticadíssimo - que é o felattio. Há quem goste de fellatio; e há quem prefira o felattio ao fellatio. Respeitemo-nos mutuamente, por favor, ou acabamos todos como a Dra. Patrícia Lança.

sábado, outubro 20, 2007

We hate it when our pets become unanimous

Depois do besuntado consenso que acolheu Philip Roth nas últimas semanas (até o barbeiro de Paio Pires se mostrou resignadamente cínico com o enésimo golpe de rins da Fundação Nobel) convém lembrar um detalhe menor: o homem não publica um bom livro desde 1998. The Dying Animal era aceitável, mas Roth-light; The Plot Against America era Roth-bored e, a espaços, Roth-boring; e Everyman era praticamente Roth-comatose. Pode parecer mesquinho apontar isto, não apenas porque o seu currículo prévio inclui pelo menos meia-dúzia de obras-primas, mas também porque Roth a meio-gás continua a ser melhor do que para aí 90% da hiper-actividade afectada pelo resto do pelotão. Não tenho nada contra a histeria: só contra a histeria uniforme.
Exit Ghost, que me chegou às mãos ontem à tarde (e aqui uma menção honrosa para a Amazon, que conseguiu decifrar o meu código postal antes da EDP, da PT Comunicações e dos taxistas do Seixal) apresenta todos os sinais de um regresso à boa forma, recuperando os três alicerces estruturais das melhores ficções de Roth: o rancor misógino, a estridência narrativa, e Zuckerman.
O melhor augúrio de todos foi a opinião negativa de Christopher "Soprano" Hitchens, cada vez mais inseguro sobre a sua própria classificação taxonómica (primata, sim, mas qual a sub-ordem?). Com o seu assombroso anti-talento para a imprecisão crítica, desperdiçou meia-dúzia de boas piadas a martelar o livro nas páginas da Atlantic. (O texto está disponível aqui e merece ser lido, de preferência em voz alta, com sotaque de Brooklyn e um revólver na peúga).
Para percepções astutas, como de costume, temos de consultar James Wood, que não tem tempo para se sentir ofendido com felattios compulsivos, e encapsula a essência de Roth (defeitos e virtudes) em duas passagens antológicas:

«The danger in Roth’s work has always been a slightly sentimental didacticism; an example is the coercive way he has leaned on the word “human” in the past few years—one of those words which always answer their own questions. In Roth’s world, to be human is to have the “human stain,” is to get things wrong, to get people wrong, to make mistakes, to have a sexual body, to be messy and vital and, above all, male. Roth has sometimes resembled a man standing on a corner wearing a huge sandwich board bearing the words, in irritatingly hectoring capitals, “WE ARE ONLY HUMAN”; “Everyman,” a book both deeply moving and somewhat self-pitying, seemed to switch the board for one with the message “WE ARE DYING.” His new novel is a better novel than “Everyman,” intricate, artful, and pressing, and avoids sentimentality with the comedy that the latter novel lacked.
(...)
Roth has been the great stealth postmodernist of American letters, able to have his cake and eat it without any evidence of crumbs. This is because he does not regard himself as a postmodernist. He is intensely interested in fabrication, in the performance of the self, in the reality that we make up in order to live; but his fiction examines this “without sacrificing the factuality of time and place to surreal fakery or magic-realist gimmickry,” as Zuckerman approvingly says of Lonoff’s work. Roth does not want to use his games to remind us, tediously and self-consciously, that Nathan and Amy and Lonoff are just “invented characters.” Quite the opposite. Unstartled by their inventedness, he swims through depthless skepticism toward a series of questions that are gravely metaphysical, and more Jamesian than Pynchonian: How much of any self is pure invention? Isn’t such invention as real to us as reality? But then how much reality can we bear? Roth knows that this kind of inquiry, far from robbing his fiction of reality, provokes an intense desire in his readers to invest his invented characters with solid reality, just as Nathan once invested the opaque Amy Bellette with the reality of Anne Frank. In this kind of work, the reader and the writer do something similar—they are both creating real fictions.
Fiction, for Roth, is not what Plato thought mimesis was: an imitation of an imitation. Fiction is a rival life, a “counterlife,” to use the title of one of Roth’s greatest novels, and this is why his work has managed so brilliantly the paradox of being at once playfully artful and seriously real

A última afronta que um autor destes merece é unanimidade; gostava de ler mais reacções como as de Hitchens. E o Nobel, merece? Sinceramente, desde Dario Fo, deixei de fazer perguntas dessas em voz alta. Acho muito mais provável que lhe entreguem o da Paz, pelo projecto do Diasporismo desenvolvido em Operation Shylock.

Pensamento do dia

Eu acho que há algo de profundamente errado com tudo isto.

domingo, outubro 14, 2007

O inconsciente, esse grande name-dropper

Num eventual catálogo Borgesiano de sonhos pretensiosos, não sei que posição este ocuparia, mas na noite passada sonhei que estava na Praia das Maçãs, a jogar matraquilhos com Edmund Wilson e Mary McCarthy. Eu jogava com o Sporting e eles com o Benfica. Levei uma abada. Às tantas, para disfarçar, comecei a dar uma palestra sobre a história das respectivas instituições e disse que o Sporting tinha sido fundado em 1905. Edmund Wilson corrigiu-me imediatamente, mas o ar desapontado com que o fez estragou-me o Domingo inteiro. Ser corrigido pelo meu próprio inconsciente: não era isto que eu queria da minha vida adulta.

quarta-feira, outubro 10, 2007

Três pontos para o Duque de Portland

Se existe, neste momento, um maior festival de kitsch em exibição nos lares portugueses do que Os Tudors (Canal 1, ontem à noite) agradecia que me informassem o quanto antes. Com a possível excepção do Benfica-Shakhtar, foi a hora e meia de televisão mais divertida dos últimos tempos.
Aderindo ao rígido livro de estilo das piores séries históricas, grande parte do diálogo é escandalosamente expositivo. O tio do Rei é assassinado em Urbino antes dos créditos iniciais, o que suscita o seguinte comentário por parte de um conselheiro: «Majestade, o seu tio foi assassinado em Urbino.» Receando não ter processado tanta informação à primeira, Sua Majestade tenta confirmar os factos: «Estás a dizer-me que o meu tio foi assassinado em Urbino?» Um terceiro personagem é destacado para resolver a controvérsia, indicando que sim, efectivamente, o tio de Sua Majestade fora assassinado, e que toda a complexa situação ocorrera em Urbino.
Minutos depois, Catarina de Aragão pergunta a Henrique VIII porque é que ele não responde às cartas do seu sobrinho. O seu sobrinho é o Rei de Espanha, portanto há que introduzir esse dado no diálogo com o maior grau possível de subtileza: «Lá por o seu sobrinho ser o Rei de Espanha, isso não significa que eu...» etc, etc.
Entretanto, envolvido em intensas negociações diplomáticas com enviados de França e da Santa Sé, o Cardeal Wolsey (desesperadamente interpretado pelo filho de Satanás, Sam Neill, que também tem renda da casa para pagar) apresenta as más notícias: «Não sei se conseguiremos evitar a guerra.» «Então, por quem sois, entremos em guerra.» Diálogos destes recompensam décadas inteiras de devoção televisiva não-correspondida.
Henrique VIII, cujo actor recupera a panóplia completa de maneirismos usados por Joaquin Phoenix em Gladiator, é astuciosamente actualizado com alguns anacronismos inofensivos: boxers Calvin Klein, escanhoado Versace e peitorais firmemente ancorados no século XXI; não sei se foram restrições orçamentais ou falta de coerência artística que lhe negaram um par de óculos de sol e um Marlboro ao canto da boca. Nos primeiros 25 minutos, os boxers reais são três vezes removidos para a lubrificação real de cortesãs. O útero real recusa-se terminantemente a produzir varões. (Para evitar dúvidas, a esterilidade Dworkiniana da Rainha é confirmada por 78 personagens diferentes).
A decisão de transmutar um dos monarcas mais gordos das dinastias inglesas numa proto-rock star revela-se inspirada, e é levada até às últimas consequências, culminando numa destruição de mobília que deixaria Little Richard orgulhoso. Tal como uma estrela de rock, a qualidade das linhas de engate vai decrescendo em proporção inversa ao sucesso. Quando chega a altura de explorar a irmã mais velha de Ana Bolena, o melhor que Sua Majestade consegue é «Mostra-me então o que aprendeste nos teus anos em França.» Surpreendentemente, a resposta não envolve uma exaltação das lutas estudantis na Sorbonne, ou uma defesa da semana de trabalho reduzida, mas sim nova remoção vertical dos boxers Calvin Klein mais activos da Idade Média.
Os cameos vão-se sucedendo, à velocidade da luz: Thomas Tallis, Francisco I e, no mais corajoso golpe anacronístico (numa série que é fértil neles; conseguiram até matar um Papa duas décadas depois da data certa) o vigésimo-oitavo Presidente dos Estados Unidos da América, Woodrow Wilson, que entra em cena com a retórica idealista do costume: um tratado de paz universal, uma Liga de Nações, sufrágio feminino, e princípios humanistas aplicados às relações internacionais. O personagem em questão acaba por ser mais tarde estabelecido como Thomas More («I've read your little book, 'Utopia'»), que rapidamente se revela o grande falhanço criativo da série.
Evocar o passado num ecrã não é fácil, mas quando esse passado é rico em figuras como More, bastaria um texto minimamente competente e uma aderência relativa aos factos para resgatar o produto final à insipidez. O More histórico era um folião reptiliano, que, entre enviar alegremente Protestantes para a fogueira, ou apelidar o casal Lutero de 'Friar Tuck & Maid Marion', insistia em mostrar a nudez das suas filhas aos seus pretendentes, em nome da honestidade, e fazia piadas a caminho da sua própria decapitação. O Thomas More de Os Tudors é um taciturno tédiocrata, balbuciando frouxidões sobre a sua própria integridade. Uma oportunidade de ouro desperdiçada; sei de argumentistas que foram assassinados em Urbino por pecados menores.
A sessão dupla terminou com a execução do Duque de Buckingham, que passara o episódio inteiro a conspirar freneticamente para ter o seu contrato renovado e poder participar nos episódios seguintes. A estratégia falhou, e o Duque encarou o carrasco com o genuíno ar de pânico do actor que sabe estar prestes a regressar ao teatro local. Foi o momento mais comovente da noite.

segunda-feira, outubro 08, 2007

O dark, dark, dark



O sketch parlamentar, como tantas outras instituições britânicas, evoluiu estaticamente durante dois séculos, desenvolvendo uma coerência interna e consolidando um formato tão reconhecível como o haiku ou o soneto petrarquiano; novos praticantes limitavam-se a aderir a um modelo pré-estabelecido, sem fazer ondas, nem barulho, nem nada de tangencialmente interessante.
Esta inércia formal funcionou como um excelente recurso de curto-alcance, permitindo um reflexo rigorosamente inóspito do processo político: tal como os mecanismos parlamentares que descrevia, o sketch parlamentar era solene, esporadicamente ridículo e frequentemente enfadonho. Um casamento feito no céu, que durou quase duzentos anos.
(Isto, já agora, não é necessariamente negativo. Há efeitos bem piores que o ramo legislativo de uma democracia pode induzir do que tédio ou humor involuntário; nomeadamente estridência e terror voluntário. Uma democracia representativa que não seja um bocadinho entediante e um bocadinho ridícula, arrisca-se a deixar rapidamente de ser representativa e até democracia.)
Foi um iconoclasta, o mítico Frank Johnson, a aparecer em cena com o seu álcool e o seu charuto, reformulando o paradigma e aperfeiçoando o modelo actual, nas páginas do Telegraph durante a década de 70. Johnson limitou-se a descartar o entediante e a conceder maior atenção ao ridículo, injectando um cinismo bem-disposto e informado no lugar da solenidade papagaia de outrora. Esta revolução táctica inverteu a tradição; o sketch parlamentar é hoje - quase sem excepções - a página mais interessante das secções de política na maioria dos jornais britânicos, ainda que os eventos relatados sejam tão soporíferos como sempre.
Simon Hoggart, que pode e deve ser lido diariamente no The Guardian, é o mais talentoso dos seus sucessores. The Hands of History agrupa dez anos de colunas, estrategicamente acomodadas de forma a coincidirem com a década de Blair no poder, e providencia o primeiro estudo documental do New Labour com interesse residual para o não-masoquista. Antes das inevitáveis análises profundas e contextualizações de larga escala, vêm os arlequins e o seu malabarismo de rumores. Um aviso à navegação: o livro é inapelavelmente mais interessante do que os monstruosos Campbell Diaries, que foram o maior embuste editorial do ano. Separado de 25 libras pela promessa implícita de boataria Vidaliana e revelações de alto nível West Wing-style, acabei por levar com o equivalente literário da cena de voleibol no Top Gun ("You rocked tonight, Tony." "Yeah, Alistair, I was on fire.") Gostaria de martelar com imparcialidade as suas 816 páginas, mas o livro perdeu-me algures nas primeiras 80, logo a seguir a um parágrafo que incluía a frase "Tony's choice of underwear".
Hoggart compensa a falta de acesso com duas ou três vantagens: fundamentalmente, o facto de escrever melhor e de não ser um mitómano semi-sociopata. Em termos metodológicos, o catecismo de Frank Johnson é seguido à risca: ceder a pá aos visados e deixá-los cavar sozinhos. A subida ao poder do séquito Blairista foi imediatamente reconhecido pelos sketch-writers do Reino como uma benção sem precedentes, facto assumido logo no prefácio: «Who could fail with this material? All we have to do is write down what they say and how they say it. The job is done for us. It has been, from our point of view, a wonderful ten years.»
E de outros pontos de vista, o que fica de dez anos de Blairismo? O consenso simplificante da opinião pública não anda muito longe da verdade; conseguiu captar a essência de um momento em meia-dúzia de lugares-comuns: esperança e apatia; confiança e desilusão; Blair como o homem que recuperou os Trabalhistas para a governação substituindo ideologia por intuição mediática; e que comprometeu irremediavelmente a sua popularidade e o seu legado quando a sensata proximidade estratégica à Casa Branca o arrastou para a guerra mais impopular da História recente.
New Labour não foi uma revolução. A inovadora apropriação do legado económico Thatcheriano, e a sua agregação a preocupações de justiça social era um salto quase inevitável na altura, e representou, acima de tudo, uma estratégia eleitoral: um sensacional esforço de pan-sedução, incluindo na mesma ideologia vaga os órfãos operários apoiantes do Old Labour, o patrocínio corporativo que os Tories alienaram com a sua estridente paranóia anti-Europeia, e o apoio dos media sedentos de novidade adolescente.
A avalanche de 1997 trouxe ao poder a primeira geração de ministros e secretários formados não em filosofia ou ciência política, mas em cursos de gestão e seminários motivacionais. Os centros de poder foram sendo sucessivamente ocupados por pessoas cujo modo de expressão básico era o memorando inter-departamental, infectado pelo jargão demente do management-speak. "Politics and the English Language" é aqui o texto operacional, funcionando não tanto como cautionary tale, mas como manual de instruções. A comunicação com o público passou a ser acolchoada numa malévola plasticina linguística, moldada de forma a tornar o processo político simultaneamente obscuro e inócuo, competentemente inofensivo e purgado de qualquer significado. O acto de governar era agora tão esotérico como a Poesia Modernista dos anos 20. Blair, particularmente a partir do segundo mandato, cometeu desvios ocasionais de retórica sub-Churchilliana, mas os seus funcionários nunca mais olharam para trás.
Uma tríade de exemplos, mais ou menos ao acaso:
«Secure removal centres will enable us to protect the integrity of the system»; «A diverse selection of individual stakeholders, within a framework of equal opportunity for personal development, aknowledging the pursuit of the best practice»; «leadind and supporting a delivery programme, by shared endeavour with the ministers, coupled with regular stocktake meetings and flexible delivery structures». Seguem-se incontáveis referências a "trajectórias de sucesso", "alvos realistas", "competição e contestabilidade", "matérias de consequência managerial", e "unidades estruturais integradas".
O pináculo estilístico do livro é a intervenção de Barbara Follet, que falou nestes termos de uma iniciativa para reduzir a poluição sonora perto do aeroporto de Luton:
«Using noise controls and encouraging measures such as noise preferential routes, and in the civil aviation bill we have the power to clarify powers (...) The government encouraging social responses... profiling local noise contours...» Uma performance memorável, terminando com um aforismo gnómico para enfiar rapidamente nos livros: «The power of designation remains». Não existe, na obra inteira de Eliot ou Pound, um verso tão impenetravelmente soberbo como este.
Julgando pelas parcas intervenções de Brown e Cameron documentadas no livro, o verdadeiro legado de Blair está mais do que seguro. Nas catacumbas, centenas de funcionários continuarão a trabalhar arduamente, a estender os limites da língua inglesa até milímetros do ponto de rotura.
They all go into the dark, and we também.

Alan Smithee

Assim de repente, o melhor que se conseguiu arranjar foi "Helena Mista". Atiremos ao ar a ideia, a ver quem lhe pega.

terça-feira, outubro 02, 2007

Stinking the Mitchum way


Duvido que o incidente tenha lugar nas biografias, mas Robert Mitchum esteve no Festival de Cinema de Tróia há alguns anos (década de 80, creio). Faz (ou fazia) parte do protocolo, o convidado de honra inaugurar o baile dançando com a esposa do Presidente da Câmara. Mitchum, que durante toda a noite desempenhara competentemente o sempre difícil papel de "convidado de honra sóbrio", desculpou-se e recusou. A justificação que deu - e garante-me quem esteve presente que a citação é exacta - foi a seguinte: «I'm sorry, but when I dance with a beautiful woman, I sweat. And when I sweat, I stink.»