2666, cujas mil páginas eu vou reler pela terceira vez durante o pequeno-almoço só para afrontar os koalas, está atulhado de sonhos. Os sonhos na literatura costumam ter má imprensa ("tell a dream, lose a reader", etc). O argumento canónico é o mesmo argumento contra o uso excessivo de símbolos: se encaixam organicamente, se funcionam, parecem artificiais e afectados; se não encaixam, se a sua incongruência é demasiado boa para ser eficaz, então é tudo uma grande perda de tempo. Há sementes de verdade neste quintal, mas não se deve atirar para o lixo um mecanismo narrativo que já cá andava a funcionar desde que o Agamemnon sonhou com a glória e que vai continuar a funcionar pelo menos durante o meu pequeno-almoço.
2666 está atulhado de sonhos; e todos funcionam. A maneira como funcionam já é outra conversa, pois estamos a falar de um romance que trata aquilo que nós mortais chamamos "significado" mais ou menos como um camionista mexicano trata uma prostituta. Os sonhos são quase todos sobre buracos: buracos metafóricos - que sepultam a memória da dor e da violência - e buracos reais - onde se enterram coisas, ou cadáveres. Um buraco em particular, que cumpre a função dupla de enterrar uma memória e uma resma de cadáveres é cavado por um Nazi chamado Sammer; e é o mesmo tipo de buraco de onde um judeu chamado Sammler saiu para ressuscitar a civilização. (Encontramos os amigos todos em 2666, é como ir ao café do bairro).
O segundo melhor sonho de 2666 tem a participação de Boris Yeltsin. É isto:
« ... Amalfitano sonhou que via aparecer num pátio de mármore cor-de-rosa o último filósofo comunista do século XX. Falava em russo. Ou melhor dizendo: cantava uma canção em russo enquanto o seu corpanzil se deslocava, fazendo esses, em direcção a um conjunto de majólicas listadas de vermelho intenso que sobressaía no plano regular do pátio como uma espécie de cratera ou latrina. (...) Quando o último filósofo do comunismo já estava finalmente a chegar à cratera ou à latrina, Amalfitano descobria com estupefacção que se tratava nem mais nem menos de Boris Yeltsin. É este o último filósofo do comunismo? Em que espécie de louco me estou a transformar se sou capaz de sonhar disparates? O sonho, contudo, estava em paz com o espírito de Amalfitano. Não era um pesadelo. Além disso, proporcionava-lhe uma espécie de bem-estar leve como uma pena. Então Boris Yeltsin olhava para Amalfitano com curiosidade, como se fosse Amalfitano a irromper no seu sonho e não ele no sonho de Amalfitano. E dizia-lhe: escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou explicar-te qual é a terceira perna da mesa humana. Eu vou explicar-te. E depois deixa-me em paz. A vida é procura e oferta, ou oferta e procura, tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia nas lixeiras da História, que por sua vez está permanentemente a desmoronar-se nas lixeiras do vazio. Por isso toma nota. A equação é esta: oferta + procura + magia. E o que é a magia? Magia é épica e também é sexo, e bruma dionísiaca e jogo. E depois Yeltsin sentava-se na cratera ou latrina, mostrava a Amalfitano os dedos que lhe faltavam e falava da sua infância, e dos Urales, e da Sibéria, e de um tigre branco que errava pelos infinitos espaços nevados. Seguidamente tirava uma garrafa de vodka da algibeira e dizia:
- Creio que está na hora de beber um copinho. »
(Roberto Bolaño, 2666, pp. 267-268)
2666 está atulhado de sonhos; e todos funcionam. A maneira como funcionam já é outra conversa, pois estamos a falar de um romance que trata aquilo que nós mortais chamamos "significado" mais ou menos como um camionista mexicano trata uma prostituta. Os sonhos são quase todos sobre buracos: buracos metafóricos - que sepultam a memória da dor e da violência - e buracos reais - onde se enterram coisas, ou cadáveres. Um buraco em particular, que cumpre a função dupla de enterrar uma memória e uma resma de cadáveres é cavado por um Nazi chamado Sammer; e é o mesmo tipo de buraco de onde um judeu chamado Sammler saiu para ressuscitar a civilização. (Encontramos os amigos todos em 2666, é como ir ao café do bairro).
O segundo melhor sonho de 2666 tem a participação de Boris Yeltsin. É isto:
« ... Amalfitano sonhou que via aparecer num pátio de mármore cor-de-rosa o último filósofo comunista do século XX. Falava em russo. Ou melhor dizendo: cantava uma canção em russo enquanto o seu corpanzil se deslocava, fazendo esses, em direcção a um conjunto de majólicas listadas de vermelho intenso que sobressaía no plano regular do pátio como uma espécie de cratera ou latrina. (...) Quando o último filósofo do comunismo já estava finalmente a chegar à cratera ou à latrina, Amalfitano descobria com estupefacção que se tratava nem mais nem menos de Boris Yeltsin. É este o último filósofo do comunismo? Em que espécie de louco me estou a transformar se sou capaz de sonhar disparates? O sonho, contudo, estava em paz com o espírito de Amalfitano. Não era um pesadelo. Além disso, proporcionava-lhe uma espécie de bem-estar leve como uma pena. Então Boris Yeltsin olhava para Amalfitano com curiosidade, como se fosse Amalfitano a irromper no seu sonho e não ele no sonho de Amalfitano. E dizia-lhe: escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou explicar-te qual é a terceira perna da mesa humana. Eu vou explicar-te. E depois deixa-me em paz. A vida é procura e oferta, ou oferta e procura, tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia nas lixeiras da História, que por sua vez está permanentemente a desmoronar-se nas lixeiras do vazio. Por isso toma nota. A equação é esta: oferta + procura + magia. E o que é a magia? Magia é épica e também é sexo, e bruma dionísiaca e jogo. E depois Yeltsin sentava-se na cratera ou latrina, mostrava a Amalfitano os dedos que lhe faltavam e falava da sua infância, e dos Urales, e da Sibéria, e de um tigre branco que errava pelos infinitos espaços nevados. Seguidamente tirava uma garrafa de vodka da algibeira e dizia:
- Creio que está na hora de beber um copinho. »
(Roberto Bolaño, 2666, pp. 267-268)
12 comentários:
gostei da última frase.
Poooorra.
Este livro é o 2667º que não leio por aconselhamento de casanova. já o puchkin disse ao gogol quando este escreveu o Nariz como se se tratasse de um sonho: fica óptimo se lhe tirares o sonho. E ficou.
E ninguém disse ao Tolstoi que o Anna Karenina ficava óptimo se ele lhe tirasse os aproximadamente setenta sonhos? Não disse, porque não ficava. (Gosto muito do pesadelo que ela tem com o velho barbudo).
Mas devo esclarecer que eu não aconselho este livro a ninguém. Aliás, acho que devo ser a única pessoa a lê-lo. Vocês só vão sujá-lo com as vossas manápulas gordurosas.
Este livro é o 2667º que não leio por aconselhamento - PARA NÃO LER - de casanova, OU SERÁ QUE TRESLI MAIS UMA VEZ?
Ninguém tresleu nada. Eu estou aqui a falar sozinho. Não estou habituado a que as massas me venham incomodar com diálogos.
A minha intenção era que as pessoas achassem o livro espectacular e ficassem com muita vontade de o ler, mas depois não o fizessem - por vergonha, por medo de não estar à altura, etc.
ah!
livro mediano de um escritor talentoso. coisita pra quem ainda acha que os happy mondays até tinham talento.
No Minipreço, uma caixinha de torresmos irregulares custa à volta de 4 euros, é muito. Falamos de gordura de porco frita, a procura é baixa. Sou a única pessoa que conheço (e mal) que aprecia torresmos. Os do minipreço vêm em caixinhas e são bocados soltos, não são fatias de blocos cúbicos luzidios (mas também gosto desses). A oferta é pouca mas parece adequada ao preço. Se não é oferta, nem é procura, é a tal magia que os torresmos devem ter.
E eu cá gostei do trecho de sonho do senhor Bolaño.
o senhor anónimo não deve perceber lá muito de música... há mais talento nas maracas do Bez do que em toda a discografia dos Vampire Weekend (cerca de 14% a mais).
tolan? temos de falar r. ;)
beijos
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