sexta-feira, setembro 04, 2009

O último filósofo comunista do século XX

2666, cujas mil páginas eu vou reler pela terceira vez durante o pequeno-almoço só para afrontar os koalas, está atulhado de sonhos. Os sonhos na literatura costumam ter má imprensa ("tell a dream, lose a reader", etc). O argumento canónico é o mesmo argumento contra o uso excessivo de símbolos: se encaixam organicamente, se funcionam, parecem artificiais e afectados; se não encaixam, se a sua incongruência é demasiado boa para ser eficaz, então é tudo uma grande perda de tempo. Há sementes de verdade neste quintal, mas não se deve atirar para o lixo um mecanismo narrativo que já cá andava a funcionar desde que o Agamemnon sonhou com a glória e que vai continuar a funcionar pelo menos durante o meu pequeno-almoço.
2666 está atulhado de sonhos; e todos funcionam. A maneira como funcionam já é outra conversa, pois estamos a falar de um romance que trata aquilo que nós mortais chamamos "significado" mais ou menos como um camionista mexicano trata uma prostituta. Os sonhos são quase todos sobre buracos: buracos metafóricos - que sepultam a memória da dor e da violência - e buracos reais - onde se enterram coisas, ou cadáveres. Um buraco em particular, que cumpre a função dupla de enterrar uma memória e uma resma de cadáveres é cavado por um Nazi chamado Sammer; e é o mesmo tipo de buraco de onde um judeu chamado Sammler saiu para ressuscitar a civilização. (Encontramos os amigos todos em 2666, é como ir ao café do bairro).
O segundo melhor sonho de 2666 tem a participação de Boris Yeltsin. É isto:

« ... Amalfitano sonhou que via aparecer num pátio de mármore cor-de-rosa o último filósofo comunista do século XX. Falava em russo. Ou melhor dizendo: cantava uma canção em russo enquanto o seu corpanzil se deslocava, fazendo esses, em direcção a um conjunto de majólicas listadas de vermelho intenso que sobressaía no plano regular do pátio como uma espécie de cratera ou latrina. (...) Quando o último filósofo do comunismo já estava finalmente a chegar à cratera ou à latrina, Amalfitano descobria com estupefacção que se tratava nem mais nem menos de Boris Yeltsin. É este o último filósofo do comunismo? Em que espécie de louco me estou a transformar se sou capaz de sonhar disparates? O sonho, contudo, estava em paz com o espírito de Amalfitano. Não era um pesadelo. Além disso, proporcionava-lhe uma espécie de bem-estar leve como uma pena. Então Boris Yeltsin olhava para Amalfitano com curiosidade, como se fosse Amalfitano a irromper no seu sonho e não ele no sonho de Amalfitano. E dizia-lhe: escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou explicar-te qual é a terceira perna da mesa humana. Eu vou explicar-te. E depois deixa-me em paz. A vida é procura e oferta, ou oferta e procura, tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia nas lixeiras da História, que por sua vez está permanentemente a desmoronar-se nas lixeiras do vazio. Por isso toma nota. A equação é esta: oferta + procura + magia. E o que é a magia? Magia é épica e também é sexo, e bruma dionísiaca e jogo. E depois Yeltsin sentava-se na cratera ou latrina, mostrava a Amalfitano os dedos que lhe faltavam e falava da sua infância, e dos Urales, e da Sibéria, e de um tigre branco que errava pelos infinitos espaços nevados. Seguidamente tirava uma garrafa de vodka da algibeira e dizia:
- Creio que está na hora de beber um copinho.
»

(Roberto Bolaño, 2666, pp. 267-268)

12 comentários:

bloom disse...

gostei da última frase.

marquesa disse...

Poooorra.

Filipe Guerra disse...

Este livro é o 2667º que não leio por aconselhamento de casanova. já o puchkin disse ao gogol quando este escreveu o Nariz como se se tratasse de um sonho: fica óptimo se lhe tirares o sonho. E ficou.

R. Casanova disse...

E ninguém disse ao Tolstoi que o Anna Karenina ficava óptimo se ele lhe tirasse os aproximadamente setenta sonhos? Não disse, porque não ficava. (Gosto muito do pesadelo que ela tem com o velho barbudo).
Mas devo esclarecer que eu não aconselho este livro a ninguém. Aliás, acho que devo ser a única pessoa a lê-lo. Vocês só vão sujá-lo com as vossas manápulas gordurosas.

Filipe Guerra disse...

Este livro é o 2667º que não leio por aconselhamento - PARA NÃO LER - de casanova, OU SERÁ QUE TRESLI MAIS UMA VEZ?

R. Casanova disse...

Ninguém tresleu nada. Eu estou aqui a falar sozinho. Não estou habituado a que as massas me venham incomodar com diálogos.
A minha intenção era que as pessoas achassem o livro espectacular e ficassem com muita vontade de o ler, mas depois não o fizessem - por vergonha, por medo de não estar à altura, etc.

Anónimo disse...

ah!

Anónimo disse...

livro mediano de um escritor talentoso. coisita pra quem ainda acha que os happy mondays até tinham talento.

Tolan disse...

No Minipreço, uma caixinha de torresmos irregulares custa à volta de 4 euros, é muito. Falamos de gordura de porco frita, a procura é baixa. Sou a única pessoa que conheço (e mal) que aprecia torresmos. Os do minipreço vêm em caixinhas e são bocados soltos, não são fatias de blocos cúbicos luzidios (mas também gosto desses). A oferta é pouca mas parece adequada ao preço. Se não é oferta, nem é procura, é a tal magia que os torresmos devem ter.

Tolan disse...

E eu cá gostei do trecho de sonho do senhor Bolaño.

Tolan disse...

o senhor anónimo não deve perceber lá muito de música... há mais talento nas maracas do Bez do que em toda a discografia dos Vampire Weekend (cerca de 14% a mais).

ana vidigal disse...

tolan? temos de falar r. ;)
beijos