Agita-se o actimel. Abre-se o actimel. Esquece-se que já se abriu o actimel e volta-se a agitá-lo. O estranho não é isto acontecer: é acontecer tantas vezes.
quinta-feira, março 29, 2007
Vem aí muita civilização
Segundo o fascinante Civilization and Climate, de Ellsworth Huntington (disponível aqui) a actividade mental dos seres humanos atinge o seu pico em noites de geada, com temperaturas de 38º F (3º C). Estas são precisamente as condições climatéricas previstas para Birmingham nos próximos dias.
Esperem grandes coisas deste blogue.
terça-feira, março 27, 2007
Grandes curtas
«E se o meu tempo de atenção chegou aos cinco minutos foi porque para aí quatro deles foram passados, quase em hipnose, durante uma intervenção de Odete Santos. Havia uma bolinha branca de natureza indefinível que ora lhe estava pendurada no lábio, ora lhe desaparecia dentro da boca, ora voltava a pendurar-se no lábio, e assim sucessivamente. Fez-me lembrar uma curta-metragem de Chaplin cujo nome agora não recordo. A televisão só tem interesse quando é genial, e só é genial quando um grão de areia (ou uma bolinha branca) entra na engrenagem.»
- As Aranhas
Presumo que tenha sido uma alusão à sequência da bola de golfe ressonada, no The Idle Class. A televisão portuguesa está muito mais subtil do que no meu tempo.
- As Aranhas
Presumo que tenha sido uma alusão à sequência da bola de golfe ressonada, no The Idle Class. A televisão portuguesa está muito mais subtil do que no meu tempo.
Ouvido no supermercado, ao pé da prateleira das conservas
"How did people get stuff before there was money?"
"Dunno. They probably just stole everything they needed."
"Dunno. They probably just stole everything they needed."
domingo, março 25, 2007
Everyman
Poucas semanas depois da morte de Saul Bellow em 2005, o editor literário da New Republic, Leon Wieseltier, escreveu um curto artigo sobre o funeral, realizado num cemitério judeu em Brattleboro. Os amigos e familiares de Bellow manusearam as pás e cobriram o caixão com terra. No final do serviço, Wieseltier afastou-se e olhou para trás, «... and suddenly I needed him. Three shovels stood rudely in the remains of the dirt pile. Like stubbed cigarettes, I thought—but that was no good. I needed Saul for his mighty power of metaphor, so that he could tell me what his own grave looked like, what unexpected word, what unimagined element of the universe, could unlock its meaning. Who will describe things now?»
Everyman, como Roth admitiu em várias entrevistas, foi uma resposta à perda sucessiva de vários amigos íntimos, Bellow incluído; o primeiro capítulo foi escrito no dia seguinte ao funeral. Na página 57, encontramos a mesma imagem do artigo de Wieseltier - três pás cravadas numa pirâmide de terra - e uma apta ilustração das diferenças estéticas entre dois grandes escritores, e daquilo que o leitor tem direito a esperar das respectivas prosas. Roth não tem qualquer interesse em fetichizar os objectos, tentando extrair deles significado metafísico. As pás são adereços, e estão em cena para fazer aquilo que as pás fazem:
His father was going to lie not only in the coffin but under the weight of that dirt, and all at once he saw his father's mouth as if there were no coffin, as if the dirt they were throwing into the grave was being deposited straight down on him, filling up his mouth, blinding his eyes, clogging his nostrils, and closing off his ears. He wanted to tell them to stop, to command them to go no further - he did not want them to cover his father's face (...) I've been looking at that face since I was born - stop burying my father's face!
---
O projecto literário que Roth tem vindo a desenvolver aproximadamente desde Patrimony (1991) é uma espécie de teologia da memória; uma tentativa de fixar secularmente na página um tempo e um local específicos (os bairros judeus de Newark nos anos do pós-guerra), evitando os sarilhos da vida eterna. Os seus personagens, que até então estavam no seu melhor quando davam largas à fúria histérica ou à luxúria frustrada, passaram a ter acesso a insuspeitos reservatórios de calma - e a recordar. Até Mickey Sabbath, o misantrópico protagonista do mais furioso livro de Roth, teve direito a inesperados interlúdios sobre o idílio antes da Queda. Everyman continua essa tendência, com o reaparecimento de alguns elementos já familiares: a infância idealizada, o heroísmo banal da figura paterna, o atleticismo protector de um irmão mais velho, etc. (E num insólito retro-flash da sua fase 'anos 80', como se a lembrar o leitor de que está a ler um livro de Philip Roth, uma jovem modelo escandinava é devidamente sodomizada). Mas o tom geral é sombrio, e as águas vitais estão inegavelmente mais turvas.
Era quase inevitável que o livro fosse descrito como uma "meditação sobre a morte", mas parece-me mais rigoroso falar de uma meditação sobre o sistema imunitário, ou de um catálogo não-exaustivo de intervenções cirúrgicas. Everyman é acima de tudo um livro sobre "não morrer", sobre o vandalismo perpetrado sobre o corpo pelo pior delinquente de todos: o Tempo.
(O próprio fluxo temporal é violentamente distorcido, moldado às preocupações dominantes do livro, que são preocupações clínicas. Uma hérnia e um apêndice perfurado têm direito a dezasseis páginas, enquanto 22 anos ("twenty-two years of excellent health") são despachados em cinco linhas).
O idiosincrático método narrativo de Roth consiste em arrastar um dilema através da dialéctica interna de uma ou mais personagens; é um processo predominantemente vocal. Ao contrário de outros canónicos companheiros de geração - Bellow e Updike, os exemplos mais óbvios - Roth não possui o que se possa chamar um estilo próprio. Quando se recorre preguiçosamente ao jargão crítico e se define uma determinada passagem como 'rothiana' está-se a tactear numa direcção nebulosa onde 'estilo' se confunde com 'voz'. E é a inconfundível 'voz' rothiana - grávida de ecos, mas sempre frugal na distribuição de alusões - que filtra e modula o problema narrativo, ao longo de falsos começos e becos sem saída aparente, como numa linha de montagem invertida. De um lado entra o produto acabado, que costuma ser uma dúvida metafísica ("Como escapar à identidade que se herda?" em The Human Stain; "Como continuar a viver num mundo que se odeia?" em Sabbath's Theater; "Como dar uma queca sem a sombra materna por perto?" em Portnoy's Complaint); do outro lado da fábrica saem farrapos luminosos de matéria-prima, destituídos de congruência, e um corpo cicatrizado por todo o processo de inquérito - apenas um corpo, já que os personagens de Roth, ao contrário dos de Bellow, não têm alma: todas as feridas são sentidas na carne. Qualquer investida na direcção do espiritual vem acompanhada de garridos cartazes: "Perigo: Banha da Cobra". (A opinião de Philip 'figura pública' Roth sobre religião organizada faz Richard Dawkins parecer o arcebispo de Braga).
Mas talvez a violência da generalização seja excessiva. Roth sempre foi um escritor didáctico, mas capaz de aplicar uma estranha democracia. O dilúvio de vozes provém de uma fonte única, mas as personagens nunca repetem intenções, nem se comportam como meros porta-vozes, lendo competentemente de um auto-ponto (aquilo que me irrita em DeLillo, por exemplo): o provinciano, o generoso, o intelectual, o estafermo, o ateu, o pio, todos têm acesso ao púlpito - e a uma paleta emocional que não exclui as lágrimas, o humor inapropriado, o ridículo, o kitsch, o depravado, a queixa, e o azedume. A inconfundível retórica é partilhada, espumando uma maior ou menor quantidade de perdigotos, mas cancelando qualquer dogmatismo debaixo de uma torrente de contraditórios.
Em Everyman, contudo, esse ventriloquismo é sereno, discreto, quase cansado. A intenção pode muito bem ter sido a de universalizar tranquilamente um problema - intenção de resto sinalizada pela escolha de um protagonista sem nome - e prescrever uma atitude de estóica e racional resignação, sem recurso a consolos espirituais fraudulentos, mas o produto final assemelha-se mais a uma versão diluída do particularismo envenenado de Sabbath: a incapacidade de ver qualquer lógica na ideia de fim. «Envelhecer», diz-nos o narrador, «não é uma guerra. É um massacre».
O certo é que se nota ao longo de todo o livro um sentido de urgência - uma urgência diferente, não tanto em grau como em género, daquela a que Philip Roth nos habituou. O meu exemplar, adquirido na semana de lançamento, trazia uma tira de papel entre o frontspício e a epígrafe: uma errata, corrigindo um plural incorrecto em Latim ("anni horribili") e esclarecendo uma confusão com a residência de um personagem. O tipo de pormenores cuja responsabilidade deve ser atribuída ao revisor, mas ainda assim um sinal de edição apressada - e de uma novela que não podia correr o risco de ser póstuma. Para alguém que nega com tão lúcida veemência a possibilidade de uma vida depois do corpo, todos os debates - sobre a vida, sobre a morte, sobre a obra - são para ter agora.
Foi outro Philip, o crítico Philip Rahv, o primeiro a identificar dois arquétipos dominantes entre escritores americanos: os 'palefaces' e os 'redskins'. Os primeiros seriam os estetas formais e europeizados (Henry James, Poe, Fitzgerald); os segundos, os nativos energéticos e instintivos (Mark Twain, Whitman, Hemingway). Roth, caracteristicamente, preferiu subverter a classificação e auto-definir-se como 'redface'. Em Everyman, contudo, ele é temporariamente um 'paleskin'; o livro tem uma energia vacilante, que abafa os seus dons mais óbvios, e nos força a reparar no que se perdeu. A ausência mais notória é a do humor, o humor desesperado - a roçar a histeria - de Sabbath, de Portnoy. Um humor com raízes inconfundivelmente judaicas, mas temperado pela tradição literária europeia que mais influenciou Roth (a que vai de Rabelais a Céline), e redfaced pelas suas torres gémeas: a ira e a vergonha.
A velha irreverência traumatizada palpita apenas uma vez em Everyman, quando um jovem de 11 anos espera nervosamente por uma operação de rotina. É uma cena que não poderia ter sido escrita por mais ninguém, e que arranca a única gargalhada de um livro claustrofobicamente funéreo:
Em Everyman, contudo, esse ventriloquismo é sereno, discreto, quase cansado. A intenção pode muito bem ter sido a de universalizar tranquilamente um problema - intenção de resto sinalizada pela escolha de um protagonista sem nome - e prescrever uma atitude de estóica e racional resignação, sem recurso a consolos espirituais fraudulentos, mas o produto final assemelha-se mais a uma versão diluída do particularismo envenenado de Sabbath: a incapacidade de ver qualquer lógica na ideia de fim. «Envelhecer», diz-nos o narrador, «não é uma guerra. É um massacre».
O certo é que se nota ao longo de todo o livro um sentido de urgência - uma urgência diferente, não tanto em grau como em género, daquela a que Philip Roth nos habituou. O meu exemplar, adquirido na semana de lançamento, trazia uma tira de papel entre o frontspício e a epígrafe: uma errata, corrigindo um plural incorrecto em Latim ("anni horribili") e esclarecendo uma confusão com a residência de um personagem. O tipo de pormenores cuja responsabilidade deve ser atribuída ao revisor, mas ainda assim um sinal de edição apressada - e de uma novela que não podia correr o risco de ser póstuma. Para alguém que nega com tão lúcida veemência a possibilidade de uma vida depois do corpo, todos os debates - sobre a vida, sobre a morte, sobre a obra - são para ter agora.
Foi outro Philip, o crítico Philip Rahv, o primeiro a identificar dois arquétipos dominantes entre escritores americanos: os 'palefaces' e os 'redskins'. Os primeiros seriam os estetas formais e europeizados (Henry James, Poe, Fitzgerald); os segundos, os nativos energéticos e instintivos (Mark Twain, Whitman, Hemingway). Roth, caracteristicamente, preferiu subverter a classificação e auto-definir-se como 'redface'. Em Everyman, contudo, ele é temporariamente um 'paleskin'; o livro tem uma energia vacilante, que abafa os seus dons mais óbvios, e nos força a reparar no que se perdeu. A ausência mais notória é a do humor, o humor desesperado - a roçar a histeria - de Sabbath, de Portnoy. Um humor com raízes inconfundivelmente judaicas, mas temperado pela tradição literária europeia que mais influenciou Roth (a que vai de Rabelais a Céline), e redfaced pelas suas torres gémeas: a ira e a vergonha.
A velha irreverência traumatizada palpita apenas uma vez em Everyman, quando um jovem de 11 anos espera nervosamente por uma operação de rotina. É uma cena que não poderia ter sido escrita por mais ninguém, e que arranca a única gargalhada de um livro claustrofobicamente funéreo:
Dr. Smith was wearing a surgical gown and a white mask that changed everything about him - he might not even have been Dr. Smith. He could have been someone else entirely, someone who had not grown up the son of poor immigrants named Smulowitz, someone his father knew nothing about, someone nobody knew, someone who had just wandered into the operating room and picked up the knife. In that moment of terror, when they lowered the ehter mask over his face as though to smother him, he could have sworn that the surgeon, whoever he was, had whispered, "Now I'm going to turn you into a girl."
Post sem links, blogosfera sem lei
Esta relutante blogger - que já tinha inaugurado e terminado este e este - decidiu agora acabar também com este.
Prestado que está o esclarecimento, sugiro agora a leitura deste interessantíssimo artigo, que podem encontrar neste jornal.
Fernando Pessoa: nasty bitch
O resultado positivo mais tangível do concurso dos Grandes Portugueses terá sido o arrancar deste eremita às catacumbas labirínticas de Mafra - onde as minhas fontes me garantem que ele passa o seu tempo dando palestras sobre Semiótica às ratazanas, e mordiscando bolachinhas francesas à luz de velas - para escrever isto:
«(...) Continuando weberianos, há uma décalage histórica insanável entre a legitimação carismática do Afonso Henriques, que teria que sovar directamente muita gente para legitimar a coroa, e a legitimação administrativa do Salazar, com a virilidade enxovalhada no corpo afirmada sublimadamente na cavalice troglodita e assanhada dos esbirros de Estado. E se, à imagem do Highlander, até pode haver elementos modernos a concurso, como arremesso de câmaras de televisão ou, se tivermos sorte, da Maria Elisa, a dinâmica de jogo parece-me permanecer resolutamente medieval, a menos que chamem a PIDE outra vez, o que também não seria justo. De qualquer forma, para quem se queixe que assim o jogo está falho de equidade nas hipóteses regulamentares de cada concorrente, ou que será triste medir pelo espadeirar de Afonso Henriques os pusilânimes que fizeram a nossa triste história, vê-se logo que não sabem o que faz um bom show pedagógico de televisão de serviço público.»
«(...) Continuando weberianos, há uma décalage histórica insanável entre a legitimação carismática do Afonso Henriques, que teria que sovar directamente muita gente para legitimar a coroa, e a legitimação administrativa do Salazar, com a virilidade enxovalhada no corpo afirmada sublimadamente na cavalice troglodita e assanhada dos esbirros de Estado. E se, à imagem do Highlander, até pode haver elementos modernos a concurso, como arremesso de câmaras de televisão ou, se tivermos sorte, da Maria Elisa, a dinâmica de jogo parece-me permanecer resolutamente medieval, a menos que chamem a PIDE outra vez, o que também não seria justo. De qualquer forma, para quem se queixe que assim o jogo está falho de equidade nas hipóteses regulamentares de cada concorrente, ou que será triste medir pelo espadeirar de Afonso Henriques os pusilânimes que fizeram a nossa triste história, vê-se logo que não sabem o que faz um bom show pedagógico de televisão de serviço público.»
quinta-feira, março 22, 2007
Somebody else
Q: Did you dance as well as listen to jazz?
A: Dance, you mean dance? Dancing was very much more formal in those days. Not a jazz thing. For one thing you had to do it with somebody else, you couldn't dance alone. That presented problems for a start if you hadn't got somebody else.
(Philip Larkin, Observer interview 1979, Required Writings)
A minha anglofilia também está tingida
Lion or Zion? - um artigo interessante de Seth Freedman sobre as lealdades divididas dos judeus ingleses sobre o jogo de Sábado.
Jamie Levy acerta em cheio na cabeça do prego: «If England score, I'll be cheering - but it'll be tinged with guilt», uma frase onde, apesar de tudo, a sua 'jewishness' dá uma goleada semântica à sua 'englishness'.
Revolutionary Titanic Beauty
Revolutionary Road, um dos grandes romances americanos, vai ter adaptação cinematográfica. Sam Mendes (de quem não gosto nem um só um bocadinho) vai realizar; DiCaprio e Kate Winslet vão interpretar Frank e April Wheeler. Assim de repente, não consigo imaginar uma maior receita para o desastre. O livro é quase feito de encomenda para Paul Schrader. Mas enfim, ninguém me pergunta estas coisas antes de os contratos serem assinados e depois o mundo está no estado em que está.
quarta-feira, março 21, 2007
Hoje é dia da poesia portanto vim aqui postar um poema
On the Antiquity of Microbes
Adam
Had 'em.
(Strickland Gillilan)
Adam
Had 'em.
(Strickland Gillilan)
terça-feira, março 20, 2007
Never Work
Never work again,
ne travaillez jamais, call a general strike in May
I invented a century today
I rest my case, I demand the right to
Never work in May
Or in the summertime, we'll call a general strike
For the right to never work
I rest today, I'll leave the century today
(...)
Just say no
Just say no
Just say no
Just say no
And don't you ever work.
(Luke Haines, «Never Work», The Oliver Twist Manifesto)
ne travaillez jamais, call a general strike in May
I invented a century today
I rest my case, I demand the right to
Never work in May
Or in the summertime, we'll call a general strike
For the right to never work
I rest today, I'll leave the century today
(...)
Just say no
Just say no
Just say no
Just say no
And don't you ever work.
(Luke Haines, «Never Work», The Oliver Twist Manifesto)
segunda-feira, março 19, 2007
יוֹם הֻלֶּדֶת שָֹמֵחַ
domingo, março 18, 2007
I am first going to talk to you about rabbits
O momento em que me endireitei no sofá e passei ao grupo dos convertidos lynchianos é fácil de situar; ocorre no segundo episódio da série que reconciliou uma geração inteira com o televisor: o Agente Cooper, antes do que prometia ser uma mera palestra sobre técnicas de detecção modernas, perante sua pequena equipa provinciana, saca de um ponteiro extensível, e diz: «Mas primeiro vou falar-vos um pouco sobre um país chamado Tibete». Foi como se Edward Lear, de repente, se tivesse materializado no tubo catódico.
A mesma técnica parece ter sido apropriada por David Lynch, que tem passado grande parte da sua carreira a apontar uma muito pouco professorial vareta em várias direcções da sua topografia interna, mas explicando sempre muito pouco, e normalmente sobre outra coisa qualquer.
(É, aliás, duvidoso que os criadores desta estirpe específica sejam os melhores exegetas da sua própria obra, e convém ressuscitar a Falácia Intencional para os impedir de causar danos retroactivos. Posso estar a cometer uma tremenda injustiça, mas a ideia que retenho de Lynch, baseada numa mão-cheia de entrevistas, é a de um homem profundamente desinteressante - certamente muito menos interessante do que os seus filmes - com um entusiasmo quase adolescente por charlatanismos místicos, sendo frequente ouvi-lo falar de "reencarnação", "energias negativas" e "oceanos de consciência pura"; o tipo de conversa que me leva imediatamente a consultar o horóscopo mais próximo, à procura de explicações para tamanha má sorte).
INLAND EMPIRE (em maiúsculas, aparentemente), rodado ao longo de cinco anos, e sem guião, é a culminação natural de um método que sempre teve muito de instintivo - lembre-se o operador de som de Twin Peaks, transformado em demónio depois de uma aparição acidental diante da câmara - e arrisca-se a estilhaçar o precário mas justíssimo consenso crítico que acolheu Mulholland Drive. A maneira de interpretar um filme de Lynch tem dividido opiniões desde Eraserhead; questões de "significado" são ciclicamente remexidas, com os duvidosos Tomáses a deplorarem a sua falta, e os pacientes zelotas a explicarem que isso é o que menos importa. (Os carentes de "significado", já agora, poderão achar algum consolo na presença de Ian Abercrombie - o saudoso Mr. Pitt, de Seinfeld - que aqui interpreta um mordomo algo suspeito. A culpa, em teoria, pode muito bem ser dele). O próprio filme providencia um manual de instruções condensado para o seu visionamento: colocar um relógio de pulso, perfurar um pedaço de seda com um cigarro aceso, e espreitar através do orifício. Confiem em mim: tudo isto é útil. Menos a parte do relógio, que só atrapalha.
Nominalmente, o filme é sobre filmes, sobre actores, e sobre buracos. O filme dentro do filme é On High in Blue Tomorrows, um melodrama gótico sulista sub-Tennessee Williams, que é já o remake de um anterior filme polaco, nunca finalizado devido a complicações "dentro da história", que podem ou não estar relacionadas com uma maldição. «Actions have consequences», advertem duas personagens na primeira meia-hora, axioma que o resto do filme parece indeciso em negar ou confirmar. O fluxo temporal é minuciosamente vandalizado, e relações de causa-efeito subvertidas a um ritmo preocupante. Um tique recorrente em Lynch é a análise obsessiva de reacções emocionais desajustadas das situações que as despoletam: personagens riem ou choram por motivos que raramente são aparentes; uma sitcom que consiste em três coelhos gigantes num apartamento (don't ask...) arranca gargalhadas de conserva nos momentos mais inesperados.
Entremeado com a "narrativa" (resolutamente entre aspas, esta da "narrativa"), há um comentário recorrente sobre os próprios processos técnicos do filme. A sensação de desorientação, tão familiar em Lynch, é sempre amplificada pelo seu uso de efeitos sonoros, e INLAND EMPIRE encontra-o em boa forma nessa vertente. As sequências em polaco (retalhos fantasmagóricos da versão original de On High in Blue Tomorrows) são acompanhadas por um pano de fundo de chuva contínua, aludindo aos sons do vinil, como se aquilo que ouvimos pertencesse a um plano temporal diferente das imagens. Noutras cenas, em que se nota mais a textura granulada da câmara digital, que como toda a gente já saberá nesta altura, foi uma estreia para Lynch, o potencial de inquietação é exponenciado pelo insólito feel de vídeo caseiro.
Entretanto, no que passa por enredo, temas e motivos são chocalhados e repetidos, desenhando padrões fugazes: há um filho morto, raramente mencionado, mas cuja presença parece assombrar o próprio coração do filme; há múltiplas referências a orifícios de várias espécies; numa das sequências com os coelhos humanóides, o anel incandescente no canto superior direito da tela (que assinala a mudança de bobine) prolonga-se por vários segundos, até o espectador se aperceber que é um efeito visual do próprio filme: uma conflagração minúscula no cenário, como se houvesse uma segunda audiência do outro lado do ecrã, munida com os seus próprios relógios e cigarros, espreitando através da seda perfurada.
INLAND EMPIRE é também um repositório de clichés genéricos. Personagens mudam de identidades e cenários, perseguidas pelos mesmos elementos formulaicos de telenovela: o diálogo familiar entre marido e mulher em que uma gravidez é dramaticamente revelada; a confissão brutal de uma criminosa num gabinete policial; a 'girl's night in', em que amigas de roupa interior trocam confissões amorosas. Todas estas cenas fazem parte da memória colectiva do cinéfilo (ou, em nome da inclusividade, do espectador); constituem, por assim dizer, a nossa gramática universal. Divorciadas, contudo, de uma linha narrativa, esvaziadas de personagens sólidas, e à deriva na instabilidade cronológica que molda o filme, adquirem aqui um estranho e inefável poder, que quase nos força a subscrever o que parece ser a tese central de INLAND EMPIRE: fazer e ver filmes são as actividades mais estranhas do Mundo.
O nervosismo confuso dos personagens acaba por se alastrar a toda a sala. A três quartos da duração do filme, fiquei muito satisfeito comigo próprio quando julguei descortinar um nexo entre os personagens que tinham relógio de pulso e os que não tinham, apenas para ver a teoria estilhaçada no plano seguinte. Foi mais ou menos nesta altura que um espectador na fila da frente - o terceiro da noite - se levantou e saiu da sala com um resmungo sonoro, à procura de "significado" noutras paragens. (Nas ruas de Birmingham? Boa sorte.)
Mais algumas coisas acontecem. Alguém vomita sangue no Passeio das Estrelas; um grupo de desalojados debate a melhor maneira de chegar a Pomona de autocarro (again, don't ask); e fala-se de uma rapariga com as entranhas destroçadas, que apenas quer viver os meses que lhe restam em paz com o seu macaco (presumivelmente numa mansão delapidada, e com von Stroheim como mordomo). Tal como a cena de maior impacto emocional em Mulholland Drive é cortada abruptamente, expondo de forma cruel a falsidade da mesma (o playback no Club Silencio), também o aparente clímax de INLAND EMPIRE é brutalmente interrompido pelo revelar de uma câmara, e pela voz do realizador do filme dentro do filme gritando: "Corta!".
À saída da sala, com uma pequena mas familiar multidão de devotos lynchianos trocando acenos de cabeça, e tentando decidir qual o melhor sítio da cidade para se verter uma chávena de mau café sobre um imaculado guardanapo branco, ouvi alguém dizer o seguinte atrás de mim, num tom de voz com o seu quê de gratidão exausta: «Man, that was a really long short-circuit».
Não, não sou o único
Durante algum tempo, vivi convencido de que eu era o único fã português de John Berryman.
sexta-feira, março 16, 2007
O pesadelo do ateu
O GodTube foi-me recomendado por um simpático leitor brasileiro, e ainda não passei lá tempo suficiente para confirmar que não se trata de sátira maldosa; este vídeo é inconclusivo.
Que a banana é o mais sinistro de todos os frutos tropicais parece-me incontestável. Mas também me parece pertinente notar o seguinte: argumentos muito semelhantes podem ser utilizados para provar que a ilustre carreira do pepino no campo da pornografia doméstica faz parte do Plano Divino.
(Já sobre este não tenho dúvidas: é stand-up camuflada. O segmento revelador é o fabuloso "argumento Moulinex", minuto 2:10. Um clarão de génio para envergonhar Stephen Colbert.)
(Já sobre este não tenho dúvidas: é stand-up camuflada. O segmento revelador é o fabuloso "argumento Moulinex", minuto 2:10. Um clarão de génio para envergonhar Stephen Colbert.)
Blogues novos (e respeitinho pelos esquimós)
- O inqualificável e viciante Ana de Amsterdam (descoberto pelo José Mário);
- o Assim Mesmo (uma pérola recomendada pelo CJ, um gajo porreiro que me estraga com mimos);
- o De Rerum Natura, de um colectivo lucreciano em cruzada pelo bom senso (indicado pelo Vasco Barreto, que, depois de uma embaraçosamente vagabunda crise de meia-idade, regressou a casa com o rabinho entre as pernas);
- o Language Log. Não é novo, mas creio nunca o ter referido aqui. Há oito ou nove blogues que tento visitar todos os dias - mesmo quando há corridas, ou emprego - e o Language Log é frequentemente o primeiro da lista. O colectivo de linguistas americanos que o mantém partilha com o meu vizinho Neil um ódio visceral pela hipótese Sapir-Whorf, e partilha comigo uma incurável irritação com a popularidade do velho mito da profusão sinonímica da palavra 'neve' entre as línguas esquimo-aleutianas (já vai em quantas? quinhentas? mil?). Enfim, leiam se quiserem, que eu já aborreci demasiadas pessoas a falar disto.
- o Assim Mesmo (uma pérola recomendada pelo CJ, um gajo porreiro que me estraga com mimos);
- o De Rerum Natura, de um colectivo lucreciano em cruzada pelo bom senso (indicado pelo Vasco Barreto, que, depois de uma embaraçosamente vagabunda crise de meia-idade, regressou a casa com o rabinho entre as pernas);
- o Language Log. Não é novo, mas creio nunca o ter referido aqui. Há oito ou nove blogues que tento visitar todos os dias - mesmo quando há corridas, ou emprego - e o Language Log é frequentemente o primeiro da lista. O colectivo de linguistas americanos que o mantém partilha com o meu vizinho Neil um ódio visceral pela hipótese Sapir-Whorf, e partilha comigo uma incurável irritação com a popularidade do velho mito da profusão sinonímica da palavra 'neve' entre as línguas esquimo-aleutianas (já vai em quantas? quinhentas? mil?). Enfim, leiam se quiserem, que eu já aborreci demasiadas pessoas a falar disto.
Arsenalski
quarta-feira, março 14, 2007
Lista feita por pessoas que leram os mesmos livros que eu
33 Names of Things You Never Knew had Names.
(A verdade é que se aprende a nº1 em Underworld, de Don DeLillo, a nº4 em V., de Thomas Pynchon, a nº16 em Giles Goat-Boy, de John Barth, a nº21 em Humboldt's Gift, de Saul Bellow, a nº23 em Infinite Jest, de David Foster Wallace, a nº24 em Despair de Nabokov e a nº27 em The Mezzanine, de Nicholson Baker. Acrescentaria a palavra 'marabu', que não vinha no dicionário da Porto Editora em 1996, e que confundiu toda uma turma de leitores d' A Sibila. Curiosamente, o nome inglês para o bicho - que não passa de uma cegonha inflaccionada - serviu de título a um livro de Irvine Welsh, cujas subtis parábolas espirituais tanto evocam Agustina.
(A verdade é que se aprende a nº1 em Underworld, de Don DeLillo, a nº4 em V., de Thomas Pynchon, a nº16 em Giles Goat-Boy, de John Barth, a nº21 em Humboldt's Gift, de Saul Bellow, a nº23 em Infinite Jest, de David Foster Wallace, a nº24 em Despair de Nabokov e a nº27 em The Mezzanine, de Nicholson Baker. Acrescentaria a palavra 'marabu', que não vinha no dicionário da Porto Editora em 1996, e que confundiu toda uma turma de leitores d' A Sibila. Curiosamente, o nome inglês para o bicho - que não passa de uma cegonha inflaccionada - serviu de título a um livro de Irvine Welsh, cujas subtis parábolas espirituais tanto evocam Agustina.
Uma lista ainda melhor pode ser encontrada aqui. Gostei muito de «Gynotikolobomassophile - One who likes to nibble on a woman's earlobes»; e também de «Peristerophobia - Fear of pigeons» e «Resistentialism - Seemingly spiteful behaviour manifested by inanimate objects». Se alguém tiver conhecimento de termos equivalentes na língua portuguesa, especialmente os dois últimos, não hesite em informar-me; nunca é cedo de mais para planear a autobiografia.)
segunda-feira, março 12, 2007
O problema
As considerações que se tecem aqui e aqui sobre a forma como o comum adepto inglês (eu alargaria a coisa ao comum adepto britânico) percebe um lance de futebol podem não me agradar, mas tenho de reconhecer que são certeiras.
A melhor ilustração que conheço desse curioso defeito no equipamento estético foi feita inadvertidamente por Jack Charlton, então seleccionador da Irlanda, no Estádio da Luz. O jogo era, salvo erro o último da fase de apuramento para o Euro '96. Com poucos minutos de jogo, o Rui Costa recebeu um passe de João Pinto antes da linha de área, com três ou quatro defesas irlandeses à sua frente e sem colegas desmarcados; o que ele fez, naturalmente, foi picar a bola sobre o guarda-redes e enfiá-la na sua baliza preferida. Na conferência de imprensa pós-jogo Charlton elogiou o lance com a seguinte escolha de palavras: «Não conheço muitos jogadores que resolvessem aquele problema daquela maneira». Para ele, receber a bola em condições, e com espaço, a cinco metros da linha de área é um "problema". Segundo o manual de instruções britânico, o "problema" é melhor resolvido com uma sapatada na direcção geral dos postes. Um gesto subtil é contra-natura. E fintar é anátema - o recurso do oleoso prestidigitador continental e, como bem notou o maradona, tido como um gesto algo indelicado para o defesa (um amigo escocês, adepto do Celtic, continua a referir-se ao Deco como "that rude player of yours", não por ter insultado ou cuspido em alguém, mas por ter feito uma cueca ao Neil Lennon na final de Sevilha).
A melhor ilustração que conheço desse curioso defeito no equipamento estético foi feita inadvertidamente por Jack Charlton, então seleccionador da Irlanda, no Estádio da Luz. O jogo era, salvo erro o último da fase de apuramento para o Euro '96. Com poucos minutos de jogo, o Rui Costa recebeu um passe de João Pinto antes da linha de área, com três ou quatro defesas irlandeses à sua frente e sem colegas desmarcados; o que ele fez, naturalmente, foi picar a bola sobre o guarda-redes e enfiá-la na sua baliza preferida. Na conferência de imprensa pós-jogo Charlton elogiou o lance com a seguinte escolha de palavras: «Não conheço muitos jogadores que resolvessem aquele problema daquela maneira». Para ele, receber a bola em condições, e com espaço, a cinco metros da linha de área é um "problema". Segundo o manual de instruções britânico, o "problema" é melhor resolvido com uma sapatada na direcção geral dos postes. Um gesto subtil é contra-natura. E fintar é anátema - o recurso do oleoso prestidigitador continental e, como bem notou o maradona, tido como um gesto algo indelicado para o defesa (um amigo escocês, adepto do Celtic, continua a referir-se ao Deco como "that rude player of yours", não por ter insultado ou cuspido em alguém, mas por ter feito uma cueca ao Neil Lennon na final de Sevilha).
Tudo isto seria mais irritante - e faria mais sentido - se o futebol inglês tivesse uma tradição de eficiência vencedora, um pouco como o alemão. Mas num povo geneticamente incapaz de marcar uma grande penalidade, e com um palmarés desportivo completamente desfazado da sua auto-estima, esta noção paradoxal de associar o cavalheirismo à falta de jeito acaba por ter um valor pitoresco que redime tudo o resto. A minha ternura por eles não tem limites.
Os cinco melhores anagramas (do Oxford Guide to Word Games)
- circumstancial evidence = can ruin a selected victim
- Clint Eastwood = old West action
- Victoria, England's Queen = governs a nice, quiet land
- Eurovision Song Contest = I vote on cretinous songs
- 'April is the cruellest month' = hurt poet tells lies in March
- Clint Eastwood = old West action
- Victoria, England's Queen = governs a nice, quiet land
- Eurovision Song Contest = I vote on cretinous songs
- 'April is the cruellest month' = hurt poet tells lies in March
domingo, março 11, 2007
sábado, março 10, 2007
Nature abhors a vacuum
Durante a minha curta ausência, as caixas de comentários do blogue transformaram-se em actas de uma conferência sobre teoria literária e os limites da interpretação*. Nada contra. Parece-me até que esse deve ser o rumo a seguir na próxima semana, durante a qual uma carga laboral acrescida e o Festival de Cheltenham vão dificultar ainda mais a actualização deste espaço pelo seu putativo senhorio. Neste interregno, não se façam rogados: desconstruam-se uns aos outros; usem o Pastoral Portuguesa como fórum de ideias; sejam os Julinhos da Adelaide que este blogue faz por merecer.
Prometo, para quando voltar, um rescaldo exaustivo da Totesport Gold Cup (na qual todos nós apoiaremos o cavalinho State of Play). E prometo também contar-vos tudo sobre aquela noite memorável no Queen's Arms, em que o meu vizinho Neil refutou a hipótese Sapir-Whorf com a ajuda de um pacote de amendoins.
Prometo, para quando voltar, um rescaldo exaustivo da Totesport Gold Cup (na qual todos nós apoiaremos o cavalinho State of Play). E prometo também contar-vos tudo sobre aquela noite memorável no Queen's Arms, em que o meu vizinho Neil refutou a hipótese Sapir-Whorf com a ajuda de um pacote de amendoins.
* Os comentários são pertinentes e mereciam que lhes dedicasse alguma atenção; infelizmente foram escritos há vários dias atrás, num país diferente, por pessoas de quem nunca li diários ou correspondência. Além disso, não me parece possível analisar por completo um comentário de Quarta-feira passada no mesmo plano semântico em que o comentário foi redigido.
O meu Pipi
Nos dias de hoje, em que Ivan Dragos de proveta como Cristiano Ronaldo passam um jogo a fazer sprints de 60 metros - culminados com frequente e perturbante objectividade - sem sequer terem a decência de transpirarem, é sempre um prazer ver o meu Pipi completamente esgotado antes do intervalo, recusando passes dos companheiros com trágicos acenos de cabeça, e uma heróica resignação estampada naquele rosto de fumador que acabou de subir dois lanços de escadas.
Não consigo explicar o quanto gosto deste rapaz. Nasceu no mesmo ano que eu, presumo que tenha uma dieta muito mais racional, e mesmo assim aposto que lhe ganhava numa teste de Cooper. O futebol tem minutos a mais para tanto talento. Não sei se o merecemos, mas espero sinceramente que fique por muitos anos.
quarta-feira, março 07, 2007
James in Greeneland
Graham Greene escreveu admiravelmente sobre James, mas devemos sempre desconfiar da honestidade de um homem capaz de se converter ao catolicismo por conveniência estética: um homem assim - capaz de alugar a alma por uma boa base simbólica - estará sempre tentado a deformar qualquer interpretação literária até ela caber na prateleira, arrumadinha ao lado da King James Bible. Esse ensaio acaba por nos revelar menos sobre o 'universo privado' de Henry James do que sobre Graham Greene; a 'figure in the carpet' que ele finge descortinar na obra do Mestre é pouco mais do que uma tentativa de validação das suas próprias preocupações narrativas.
Parece-me também que ele confunde dois conceitos distintos em James: o sacro terrore, definido como «the witheld glimpse of dreadful matter», e que tanto pode ser despoletado pelo que é divino como pelo que é mitológico; e uma noção de evil muito idiossincrática. O Mal, para James, era uma deformação moral individual, não admitindo (com a provável excepção de Turn of the Screw e de alguns dos contos de fantasmas) uma fonte sobrenatural, ou exterior, nem podendo ser cancelado pela Graça Divina. É um Mal abrangente, que tanto inclui o comprazimento na corrupção dos outros, como falta de etiqueta à mesa de jantar, mas que tem muito pouco a ver com a teologia católica.
Parece-me também que ele confunde dois conceitos distintos em James: o sacro terrore, definido como «the witheld glimpse of dreadful matter», e que tanto pode ser despoletado pelo que é divino como pelo que é mitológico; e uma noção de evil muito idiossincrática. O Mal, para James, era uma deformação moral individual, não admitindo (com a provável excepção de Turn of the Screw e de alguns dos contos de fantasmas) uma fonte sobrenatural, ou exterior, nem podendo ser cancelado pela Graça Divina. É um Mal abrangente, que tanto inclui o comprazimento na corrupção dos outros, como falta de etiqueta à mesa de jantar, mas que tem muito pouco a ver com a teologia católica.
Num texto sobre Turgeniev, James elogia-o pelo seu entendimento de que « ...Evil is insolent and strong; beauty enchanting but rare; goodness very apt to be weak; folly very apt to be defiant; wickedness to carry the day; imbeciles to be in great places, people of sense in small, and mankind generally, unhappy... ». Lá está: isto diz-nos mais sobre James do que sobre Turgeniev; e explica melhor a sua noção de Mal do que o ensaio de Graham Greene (que, volto a dizer, com a magnanimidade que me caracteriza, é muito bom).
Aliás, o parágrafo explica quase tudo, menos isto: como é que este homem recebia tantos convites para festas.
domingo, março 04, 2007
Wood, woodpecker
James Wood leu Against the Day. É sintomático do seu modus operandi que a crítica tenha sido, entre os principais periódicos americanos, a última a aparecer.
A peça é longa e ponderada; revela a habitual atenção à linguagem, e a escolha precisa de citações (que é, ou deve ser, a principal ferramenta do crítico); e é enfaticamente negativa, o que só surpreende quem não tem acompanhado a carreira de Wood.
Se a minha nova e divertidíssima entidade patronal me conceder o tempo necessário, tentarei esta semana explicar porque continuo a considerar James Wood o arquétipo do leitor ideal, apesar das ocasionais imbecilidades que pontuam o texto sobre Pynchon. Tentarei explicar porque é que o seu recente e desconcertante hábito de bicar artefactos de plástico ou cimento como se fossem de madeira não obsta a que continue a ver nele o herdeiro espiritual de V. S. Pritchett, e o melhor crítico literário contemporâneo. E tentarei explicar porque é que faria questão em lhe apertar a mão caso o encontrasse na rua, independentemente da sua vontade em ter a mão apertada.
Esclareço ainda, a propósito desta ambígua graçola, que partilho a opinião de Clive James: não creio que a crítica literária seja essencial à literatura; mas creio que ambas são essenciais à Civilização. A Era de Ouro pode ter acabado, e sacerdotes estéticos como Eliot ou Leavis podem ser irrepetíveis, mas acho que a crítica literária actual está bem e recomenda-se, particularmente a de pendor não-académico (a que prefiro), e anglófona (a que conheço melhor). Para além de James Wood, destaco Louis Menand (da New Yorker), John Leonard (Harper's e The Nation), Daniel Mendelsohn (NYRB), e também três escritores talvez mais conhecidos como ficcionistas, mas cujos ensaios me parecem indiscutivelmente superiores aos seus desiguais romances: Martin Amis, John Updike e Cynthia Ozick.
Nestas mãos atentas e carinhosas, a Crítica Literária poderá sempre aconchegar-se despreocupadamente; a sua saúde não corre perigo.
sábado, março 03, 2007
sexta-feira, março 02, 2007
Buried Alive
Ontem, num programa da BBC Radio 4, debatia-se a possibilidade de a Crítica Literária estar morta. Os vultos culturais chamados a pronunciar-se sobre o assunto foram incapazes de chegar a uma conclusão peremptória.
Isto parece-me simples. O que se deve fazer é estender cuidadosamente a Crítica Literária no chão, de rosto virado para cima; segurar um espelho de bolso diante das narinas da Crítica Literária; e esperar uns segundos. Se o espelho permanecer limpo, a Crítica Literária está efectivamente morta; se, por outro lado, a superfície se embaciar, então a Crítica Literária está viva, e provavelmente precisa apenas de sais de frutos, e de apanhar ar fresco.
quinta-feira, março 01, 2007
Três citações sobre um blog sobre Kleist
«Recuso-me a aceitar um qualquer fenómeno de índole miraculosa capaz de libertar aquela ou aquele que age no texto, na tela ou na partitura, da sua condição de ser social, ou um qualquer parêntesis que possa isolar o gesto da criação artística dos restantes gestos da existência. E uma intervenção no Mundo nunca o deixa incólume: deforma, modula, filtra, exalta e suprime.
(Alexandre Andrade, Nota Prévia às Não-Metamorfoses)
«Scepticism is not, despite much popular misconception, a point of view. It is, instead, an essential component of intelectual inquiry, a method of determining the facts whatever they may be and wherever they may lead. It is a part of what we call common sense. It is a part of the way science works. All who are interested in the search for knowledge and the advancement of understanding, imperfect as those enterprises may be, should, it seems to me, support critical inquiry, whatever the subject and whatever the outcome.»
(Kendrick Frazier, Skeptical Inquirer)
«Good evening. Tonight on "Is There?" we examine the question of life after death. And here to discuss it are three dead people. The late Sir Brian Hardacre, former curator of the Imperial War Museum; the late Professor Thynne, until recently an academic, critic, and broadcaster; and putting the view of the Church of England, the very late Prebendary Reverend Ross. Gentlemen, is there a life after death or not? Sir Brian?
[silence]
Professor?
[silence]
Prebendary?
[silence]
Well there we have it, three say no. On "Is There?" next week, we'll be discussing the question "Is there enough of it about?" Until then, goodnight.»
(Monty Python's Flying Circus)
O Alexandre Andrade cumpre hoje quatro anos de blogosfera. Se eu entendi bem a Teoria da Evolução, todos nós, um dia, daqui por milhões de anos, teremos um blogue como o do Alexandre. E guelras. Mas ainda falta muito tempo.
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